Capa de BR2466, de Nélio Silzantóv
Capa de BR2466, de Nélio Silzantóv

BR 2466 ou a pátria que os pariu

 

Décio Torres Cruz*

 

BR 2466 ou a pátria que os pariu (Penalux, 2022) é o título da coletânea de contos (semifinalista do Prêmio Jabuti 2023) de Nélio Silzantov, escritor baiano de Vitória da Conquista que hoje mora em São Carlos (SP). A capa é ilustrada pela pintura renascentista flamenga “A luta entre o Carnaval e a Quaresma” (1555), de Peter Bruegel, o Velho. Nela, aparece uma pessoa literalmente devorando outra, imagem que estabelece um diálogo com o grotesco e o perverso e a luta entre o (falso) religioso e o profano, características da Idade Média que retornaram na nossa contemporaneidade, antecipando alguns dos temas que serão tratados pelo autor.

O livro tece críticas ácidas ao estado de imbecilidade que vem se instalando com o avanço da idiotice torpe e da canalhice sórdida, mesquinha e abjeta, instaurada por governos de extrema-direita ao tomarem o poder no Brasil e em algumas partes do mundo. Sem qualquer prurido ou “papas na língua”, o título já declara a que veio. A própria enunciação do trocadilho nele presente remete à  linguagem chula característica do tipo de gente retratada na obra. O estilo e o tratamento da linguagem e dos temas de Silzantov nos lembram aqueles dos chamados “escritores malditos” franceses e estadunidenses (de Baudelaire e Rimbaud aos beatniks Ginsberg, Kerouac e Bukowski), ou dos brasileiros Augusto dos Anjos e Sousândrade, dentre outros.

Não esperem encontrar lirismo ou bom-mocismo na linguagem e nos temas deste livro, já que o autor enfrenta de peito aberto a realidade distópica que aqui se instaurou, quando valores foram invertidos e conceitos científicos arraigados foram destruídos por uma propaganda fomentada pelo governo vigente, transformando o próprio real no mundo da ficção, da mentira, do fake, da seita mítica e do arremedo de realidade (ou no "deserto do real" de que nos fala Baudrillard). Embora o livro não assuma um tom panfletário, como o próprio autor declara em entrevista a Bianca Silva no programa “enLIVRE-se Podcast”, sua obra é uma “sátira sobre a barbárie”. E como tal, Silzantov se utiliza de uma linguagem bastante objetiva, direta, coloquial para retratar o estado de coisas absurdas gerados pela estupidez e maldade humanas, um estado opressor que se disseminou por nosso país com a instalação do antigo governo.

Como escreve Silva em comentário no seu programa no You Tube, a proposta da arte ruidosa e antiestética de BR 2466 “nos remete à uma hiper-realidade delineada a partir da barbárie que nos assola e nos compõe” e sua “leitura nos desperta para o absurdo que impregna os noticiários, os debates públicos, as redes sociais, a vida, como um todo e, até, a morte.” E assim, segundo ela, temas como “o sagrado e o profano, a fé e a descrença, a solidariedade e o narcisismo” situam-se  “para além da discussão dos paradoxos” para nos mostrar a bondade transmutada em perversão.

Além dos temas já citados, o livro aborda vários outros ligados à distopia e sua consequente instauração da decadência e do surreal: a violência, o caos, o apocalipse, o absurdo, o terror, a dor da destruição de nossa terra, de nossos sonhos, e da nossa esperança, como podemos ver neste trecho do conto Os Cavaleiros do Apocalipse – pp7:113:

“E já não há mais relato na poesia ou na prosa que sustente a beleza ou qualquer intenção artística, ainda que a arte persista e no centro da própria engrenagem, inventa contra a mola que resiste à necropolítica que nos assola. As vezes que ri foi por desespero, e embora o riso seja um ato de resistência, não espere de minha parte algo esperançoso, pois já vim natimorto neste mundo enfermo. Mas se for pra ter esperança e acaso ela seja a última que morre, só espero que antes ela leve tudo o que a vida não merece, inclusive essa outra parte que ainda resiste – antes que em outro opressor eu me torne.” (p. 21)

Os contos estão organizados em quatro partes: “O estado é uma máquina de triturar homens”, “Os homens são bestas que se devoram e louvam”, “O credo é a peste sedenta de morte”, e “Com quantos caracteres se constitui um caráter?”. Os títulos de cada seção enfatizam não só a crítica à política vigente e à manipulação de corpos e mentes, mas também a todo o aparato estatal e religioso, utilizado para dar apoio e estabelecer um culto mítico a uma personalidade governamental espúria, exatamente como occorreu com o personagem orwelliano Big Brother do romance 1984. Como já mencionado por Alexandre Kovacs em uma resenha bastante detalhada do livro no blog O mundo de K, a primeira seção refere-se às leis absurdas de controle dos cidadãos de estados totalitários (tanto da extrema-direita quanto da extrema-esquerda). A segunda e terceira seções tratam do fanatismo religioso e a maldade dos falsos moralistas que dela se utilizam para perseguir minorias e grupos vulneráveis, com censura aos meios de comunicação, restrição às liberdades individuais e negação dos direitos humanos de qualquer espécie. A última parte traz para o nosso presente a distopia engendrada por fatores econômicos. Em vez de uma distante ameaça futura, as formas de pobreza e desigualdade social se acentuam no nosso presente devido à concentração de riqueza nas mãos dos “happy few”.

Há, também, a presença da música. Trechos de diversas letras de música, brasileiras e estrangeiras, são, por vezes, incorporados ao texto, embora elas não aliviem a tensão nem o desespero causado pela desesperança.  Encontramos, ainda, trechos pontilhados do humor ácido e escrachado do autor. Como salienta Leonardo Araújo Oliveira na orelha, Nélio Silzantov brinca com seus leitores via metalinguagem, instigando sua curiosidade e reflexão, e utiliza personagens que incorporam e abandonam modismos ao penetrarem o contemporâneo, direcionados “ao futuro (e além), que ultrapassam normas (cultas, morais), optando em alguns momentos pelo abandono – no silêncio, nas reticências, nos lugares inesperados do texto, abismos que podem aparecer em menos de uma linha escrita, desvios abruptos que podem causar náuseas.”

Em suma, BR 2466 expõe diversas formas de distopia e o modo como ela se apresenta de forma ameaçadora em regimes ditatoriais, tornando realidade aquilo que antes se configurava como uma futura e longínqua ficção científica, delineada em livros de autores como George Orwell (1984 e A revolução dos bichos), Ray Bradbury (Fahrenheit 451), Aldous Huxley (Admirável mundo novo), Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum) e José. J. Veiga (Sombras de reis barbudos). Alexandre Kovacs fala dessas distopias e, além do clássico futuro controle repressivo e totalitário de regimes políticos, menciona aqueles refletidos na nossa realidade contemporânea. Esta realidade distópica recente está  presente na obra de Phillip K. Dick Do androids dream of electric sheep? (adaptado para filme como Blade Runner) que inclui o fanatismo religioso, a violência gratuita, as tragédias ambientais provocadas pelos interesses de grandes corporações, e a corrupção política disseminada sob a forma de micropoderes foucaultianos em detrimento da saúde, da educação e de outras formas de civilidade do convívio social estabelecidas pelo chamado processo civilizatório. Estes mesmos temas ressurgem no livro de Nélio Silzantov para nos fazer ver que, infelizmente, o nosso presente já atingiu aquele futuro previsto pela ficção de maneira sórdida e cruel. Adentramos a ficção pós-moderna distópica de corpo e alma e só nos resta tentar conviver com ela da melhor forma possível para não cedermos à loucura coletiva de vivermos em devaneios alucinatórios nas bolhas de realidades paralelas que nos cercam.

 

   

Nélio Silzantov         Fonte: Ambrosia

 

Sobre o autor

Nélio Silzantov nasceu em Vitória da Conquista, Bahia. É professor de filosofia, escritor e crítico literário. Licenciado em Filosofia pela UESB, é mestre em Estudos de Literatura pela UFSCar, e doutorando em Educação pelo PPGE/UFSCar. Em 2020, estreou no romance com a obra Desumanizados (Editora Penalux).  Foi membro do grupo de pesquisa Ética e Educação em Kierkegaard e Paulo Freire (UESB), do corpo editorial da Revista Filosofando (UESB), do Grupo de Estudos Literários Portugueses e Africanos (GELPA/UFSCar) e co-editor da Revista Textou.  Além do livro BR2466 ou a pátria que os pariu (2022), publicou, ainda, A finitude das coisas (Patuá, 2023). É editor da Ágora Literária (blog, podcast e canal no Youtube). Seus livros podem ser encontrados nos sites das editoras.

 

 

 

 

 

 

 


* Escritor membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de A poesia da matemática (2024) e Histórias roubadas (2022).