Fotografia do rio Gurgueia, meramente ilustrativa (colhida livremente na Internet)
Fotografia do rio Gurgueia, meramente ilustrativa (colhida livremente na Internet)

                                                                                                                                                                                                                                                                                      Reginaldo Miranda*

               Foi Bernardo Pereira Gago, um personagem importante no devassamento e conquista do território piauiense, mas que ficou ofuscado pela presença do irmão primogênito, o coronel Francisco Dias d’Ávila, assim como pela ausência de descendência em linha direta. Ele custeou equitativamente com seu patrimônio e integrou, ao lado do irmão primogênito, as tropas pioneiras que no encalço dos índios gurgueias, descobriram, conquistaram e desceram pelas cabeceiras do rio de mesmo nome, no ano de 1674, assim como de outros vales ribeirinhos do sul do Piauí. E, também, conforme se verá mais à frente, foi aquinhoado com um quarto das sesmarias concedidas em solo piauiense, durante o século XVII.

               Mas quem foi este personagem importante, sempre mencionado mas pouco conhecido de nossa história? Bernardo Pereira Gago, nasceu no ano de 1654, na Casa da Torre, situada no litoral norte da Bahia, sendo batizado em 2 de agosto daquele ano. Era filho[1] do capitão de ordenanças e cavaleiro fidalgo da Casa Real, Garcia de Ávila (1622 – 1675) e de sua esposa Leonor Pereira[2], esta falecida em 13 de junho de 1686, sendo sepultada na capela da Torre.

               Pelo costado paterno era descendente de uma grande geração de conquistadores do sertão, renomados militares, ricos sesmeiros e abastados criadores, os Senhores da Casa da Torre. Essa geração teve início com o português Garcia d’Ávila, o primeiro do nome, e a cada geração foi prestando relevantes serviços no processo de colonização e assentamento da base colonial portuguesa, inclusive nas guerras de conquista e manutenção do território, tanto contra as mais diversas nações indígenas quanto contra holandeses e franceses, assim fazendo-se merecedora de honras e privilégios. Como resultado adquiriram patentes militares, títulos nobiliárquicos e conquistaram imensas áreas de terras que se transformaram no maior latifúndio da colônia portuguesa e, provavelmente, de toda a América. Foram seus avós paternos Francisco Dias de Ávila e Ana Pereira, estes casados em 8 de junho de 1642, sendo ela filha de filha de Manoel Pereira Gago e de sua esposa Catharina Fogaça. Por aquela linha, era bisneto de Isabel d’Ávila, falecida em 18 de outubro de 1593, com 39 anos de idade, e de Diogo Dias, este falecido em 10 de novembro de 1597, com 45 anos de idade, filho de Genebra Álvares[3] e Vicente Dias, cavaleiro da Casa Real; por fim, trineto do pioneiro fundador de Tatuapara, o português Garcia d’Ávila e da índia tupinambá, Francisca Rodrigues.

               Foram seus avós maternos, a baiana Catharina Fogaça e o lusitano Manoel Pereira Gago, de quem herdou o apelido familiar, sendo este natural de Vila Nova do Porto, em Portugal, passando ainda menino[4] para a cidade da Bahia; também pais da bisavó paterna do biografado, por ter havido casamento de tia com sobrinho. Este avô era considerado “gente honrada de Porto Seguro”, na expressão de frei Jaboatão[5], onde vivia abastadamente e como nobre, porém, não tinha origem ilustrada, não tendo sido encontrada informação das origens genealógicas em Portugal, o que dificultou o nobilitamento dos netos. Desde cedo fez-se aliado da Casa da Torre, sendo amigo de longa data e procurador do velho Garcia d’Ávila, de quem recebera como legado pelos bons serviços terras no vale do rio S. Francisco. Mais tarde fez-se protetor do neto deste, Francisco Dias d’Ávila, o velho, a quem defendeu contra a cobiça dos monges do Mosteiro de São Bento e zelosamente o fez casar com sua filha Ana Pereira[6].

               No entanto, parece que Bernardo Pereira Gago foi um menino frágil, sem a vigorosa saúde do irmão Francisco Dias d’Ávila, neto, porque menores são os registros sobre a fase inicial de sua vida. Enquanto o irmão desde a mocidade acompanhava o pai em suas andanças pelo sertão, no combate ao elemento indígena, na busca de minas e na conquista de terras, sobre ele calam os registros históricos até agora analisados. Certamente, acompanhou o genitor em algumas dessas diligências, como era o costume da época, fazendo entradas pelo rio São Francisco. Deste são inúmeros os registros. Porém, parece que a sua maior atividade nos anos da mocidade foi a administração das muitas fazendas e o zelo com os rebanhos de gado bovino e cavalar, entre outros. Enquanto o irmão se dedicava mais à carreira militar ficou ele encarregado da administração do patrimônio familiar, comercializando o gado para sustentar a soldadesca e as campanhas pelo sertão, inclusive na luta para expulsão dos holandeses de Pernambuco.

               Em face desses feitos em conjunto com o de seus familiares, em 1657, juntamente com seu pai, o capitão Garcia d’Ávila, os irmãos Francisco Dias d’Ávila, neto, e Catarina Fogaça, neta, assim como o padre Antônio Pereira, seu tio materno, requereram e obtiveram do governador de Sergipe d’El Rei, Jerônimo de Albuquerque, 10 léguas de terra cada um, perfazendo um total de 50 léguas, no sertão do rio S. Francisco. Em 16 de outubro de 1658, o governador de Pernambuco, André Vidal de Negreiros, concedeu-lhes mais uma extensa sesmaria com limites imprecisos, do rio S. Francisco acima, começando das terras povoadas até a última aldeia dos índios moipiras e, para a parte do norte, até a serra do Paripe, tomando por pião as serras que ficam junto do mesmo rio, fronteiras ao sul do Salitre. Esta última sesmaria foi concedida como recompensa pelo fornecimento de gado às tropas que lutaram contra os invasores holandeses.

               Porém, um fato eloquente que vai inserir o nome de Bernardo Pereira Gago em nossa história, foi a pioneira entrada que fez pelas cabeceiras do Gurgueia e a conquista pelo rio baixo até sua foz, em companhia do irmão e de outros sócios[7], no verão de 1674. Tudo começou com o levante dos índios gurgueias no sertão do rio São Francisco e a obtenção de licença[8] para fazer a guerra ofensiva contra aquela nação indígena. Formaram tropa composta por cem homens brancos armados, acrescida de mulatos, negros e indígenas aliados, com o auxílio de outros criadores. Durante um ano e meio ocuparam-se nessa guerra e conquista da bacia do Gurgueia.  Em princípio, entram pelo vale do rio Salitre acima, encontrando a caminho aqueles indígenas rebelados. Então, enfrentam o primeiro combate, dividindo-se os indígenas em hordas guerreiras combatendo por terra, munidas de arco e flecha, enquanto índios canoeiros, com as mesmas armas, os apoiavam pelo rio. Foi um momento dramático, em que ambos os lados mostraram seu valor. No entanto, porque a disparidade de armas era enorme, depois de muitas baixas recuam os valentes indígenas pelo rio São Francisco acima, alcançando Santo Sé, mais tarde o rio Verde e o rio Grande, subindo por este último até à barra do rio Preto. Em seu encalço seguiam os sanguinários soldados da Casa da Torre.  Não havia descanso, nem mesmo para curar os feridos. E os gurgueias recuavam, não por covardia, mas porque desconheciam guerra naquele nível, nunca tendo combatido contra armas de fogo. Muitas eram as baixas e numerosos os feridos. Buscavam tempo para refazer as forças. No entanto, contra eles seguiam as tropas de Francisco Dias d’Ávila e Bernardo Pereira Gago, porque sabiam que aquele momento poderia ser o da vitória total. Queriam a qualquer custo liquidar o inimigo para abrir caminho a novas conquistas. Nessa altura, a horda indígena que seguia em fuga não era formada somente pelos guerreiros, mas também por suas mulheres, idosos e crianças, o que muito os atrasava. E subindo pelo rio Preto acima, provavelmente, depois de longa marcha torceram pela vereda do Sapé, de onde por menos de três léguas alcançaram as vertentes do riacho Fresco, que deságua na lagoa de Parnaguá, formadora de um rio perene e de curso mediano, com vale fértil e campinas verdejantes. No encalço desses indígenas, Bernardo Pereira Gago, ao lado de seu irmão e de muitos soldados, seguindo esse aludido caminho das águas descobriram aquele rio que passaram a chamar de rio dos Gurgueias, em alusão à nação indígena que, sem a intenção, os levou àquela descoberta. As mesmas nascentes, por veias diversas, na cumeada da serra, derramam água para os dois lados formando córregos que correm para a bacia do São Francisco e para a do Parnaíba. É o caminho das águas interligando as grandes bacias hidrográficas do norte-nordeste do Brasil, que permitiu desde tempos imemoriais o percurso das mais diversas nações indígenas em movimento migratório desde a bacia do rio São Francisco, que desce das montanhas de Minas Gerais até o litoral nordestino; e pelas vertentes do rio Parnaíba se interliga à bacia do Araguaia-Tocantins e, consequentemente, à hinterlândia amazônica. Mais tarde, esse caminho seria percorrido pelos bandeirantes, sertanistas e colonizadores que alargaram nosso território, a exemplo de nosso biografado.

               E nessa conjuntura dramática em que muitas foram as perdas, perecendo os doentes e feridos no caminho, somente têm descanso os gurgueias com o cair das primeiras chuvas, depois de sete meses de peleja, porque recuaram às suas moradas em busca de abrigo os conquistadores da Casa da Torre. Então, puderam os indígenas respirar em paz e recuperar as forças enquanto os conquistadores também refaziam as suas, preparando-se para nova investida. Em princípio do mês de maio do ano seguinte, com o fim das águas, Bernardo Pereira Gago e seu irmão Francisco Dias d’Ávila, estão novamente à frente de cento e vinte cavaleiros armados com armas de fogo e muitos índios aliados em tropas pedestres, inclusive os missionados por frei Martim de Nantes, estabelecendo arraial militar no sertão do Pajeú. Depois de rastejarem os gurgueias por seis ou sete dias de marcha contínua, através de agrestes e caatingas, surpreendem a tribo espavorida e faminta, destroçando-a em ligeira peleja. Foi no dia 30 de maio de 1675, em que os gurgueias se renderam aos soldados da Casa da Torre, sendo presos e manietados. No entanto, dois dias depois, vai ser escrita uma página indigna de nossa história, porque sob fútil pretexto degolam eles 400 indígenas desarmados, presos e famintos, reduzindo à escravidão mulheres e crianças. Parece mais que, por motivo de segurança, queriam livrar-se dos homens guerreiros e de quebra, não se comprometerem com alimento para tantas bocas famintas.

               Porém, os conquistadores da Casa da Torre ainda permanecem em campanha durante todo o restante do verão, em busca dos indígenas remanescentes, conforme informou o coronel Antônio da Silva Pimentel, que os ajudou com homens e mantimentos. Esclareceu que a campanha, tendo começado em abril ou maio de 1674, demorou um ano e meio[9], tendo as tropas percorrido mais de 120 léguas, matando muitos índios porque se não quiseram reduzir à paz. E, assim, completaram o devassamento e conquista do rio a que chamaram Gurgueia, em alusão aos indígenas massacrados. De fato, ao seu final, em 27 de novembro de 1675, Francisco Dias d’Ávila, que comandava a tropa de que o irmão fazia parte, vai ser promovido à patente de coronel de infantaria das mesmas ordenanças (AHU. Bahia, verbete 4224).

             Como recompensa da campanha, em 13 de outubro de 1676, o governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida, concede a Bernardo Pereira Gago, Francisco Dias d’Ávila, Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra, todos sócios na conquista, quarenta léguas de sesmaria em quadra, a ser dividida entre eles em partes iguais. Foi esta a primeira concessão de terras na bacia do rio Gurgueia e, consequentemente, no território piauiense, ao que se seguiram muitas outras.

              Em 30 de janeiro de 1681, foi feita outra concessão de igual tamanho aos mesmos sócios, pelo governador Aires de Souza e Castro. Em 29 de dezembro de 1683, mais uma concessão de doze léguas a cada um, feita pelo governador D. João de Sousa. Em 13 de outubro de 1684, novamente este mesmo governador de Pernambuco, D. João de Sousa, concedeu a cada um dos mesmos sócios, entre outros, mais “dez léguas a cada um, resolvendo em todas as Datas, caatingas e terras inúteis de criar gado, com cuja declaração, que se vê nas mesmas sesmarias, compreendendo estas, duzentas quarenta e duas léguas em quadra, pode ser, que seiscentas léguas não sejam bastantes para preencherem as léguas concedidas em campos e terras próprias, para a criação e conservação dos gados”. Por fim, o mesmo governador concedeu vinte léguas em quadra a cada sócio, em 23 de outubro de 1684.

               De certa forma, essas excessivas concessões, algumas com subterfúgios para alargá-las, como a penúltima, era a compensação da Coroa pelo empreendimento por eles realizado. Mais terra conquistada resultava em mais fazendas e, consequentemente, mais impostos para o erário real. Assim, todos ganhavam com a conquista, menos os indígenas massacrados. Essas terras recebidas em sesmarias eram arrendadas a posseiros que as cultivavam e nelas situavam fazendas mediante o pagamento de rendas anuais. A constituição desse latifúndio iria assinalar indelevelmente a formação histórica do Piauí, com repercussões até os dias de hoje em sua vida política e administrativa.

           Conforme demonstrado, Bernardo Pereira Gago viveu durante toda a sua existência de forma nababesca, comandando imenso latifúndio, de onde auferia vultosa renda paga pelos sesmeiros a quem arrendava as suas terras. Esse pagamento era quase sempre de dez mil reis anuais por cada fazenda. E ainda comandava as suas próprias fazendas, no vale do rio São Francisco, de forma que era um dos homens mais ricos do Brasil, só igualado aos parentes, sócios e alguns poucos outros conquistadores. Além das suas próprias conquistas, que já eram suficientes para torná-lo excessivamente abastado, ainda herdou terras dos genitores e do tio, padre Antônio Pereira.

               Faleceu Bernardo Pereira Gago, no fastígio da fortuna, em 1689, com apenas 35 anos de idade, sem deixar descendência. Foi seu herdeiro universal o irmão de sangue e alma, Francisco Dias d’Ávila, coronel de infantaria e companheiro de lutas memoráveis.

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* REGINALDO MIRANDA, advogado, membro titular da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.


[1] Possuía dois irmãos, o primogênito Francisco Dias d’Ávila e a caçula Catarina Fogaça, esta casada com Vasco Marinho Falcão, sendo ele o irmão intermediário.

 

[2] Tia do esposo.

[3] Filha da índia Catarina Álvares com Diogo Álvares, o Caramuru.

[4] PT/TT/MCO/A-C/002-006/0034/00126. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra F, mç. 34, n.º 126.

[5] Jaboatão, 1889, p. 88. In: BANDEIRA, Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

[6] BANDEIRA. Op. cit.

[7] A tropa tinha por imediato Domingos Rodrigues de Carvalho. Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra, também comandaram um troço de combatentes.

[8] A licença foi concedida pelo capitão-general do Estado do Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça, visconde de Barbacena.

[9] Em sendo assim, como confirma a data da patente dada a Francisco Dias d’Ávila, a chacina dos gurgueias deu-se no ano de 1675, e não 1676, como anotou frei Martim de Nantes.