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LUCILENE GOMES LIMA

 

 

Beiradão é um romance que abrange integralmente o ciclo econômico da borracha, da fase áurea à derrocada. Como as demais ficções do ciclo, aponta a ilusão dos seringueiros com o processo de extração do látex, que os leva muitas vezes a consumir a vida nas estradas de corte e depois dissipar o saldo que por ventura tirem com gastos fúteis na cidade, deixando escapar a possibilidade de retornarem a sua terra; o endividamento inevitável com as despesas de viagem, instrumentos de trabalho e alimentação, comprometendo a possibilidade de saldo no primeiro ano de produção; a dura realidade dos centros, onde encontram a morte pelas febres; a disputa pelo sexo feminino; o bloqueio tropical, expressão utilizada pelo narrador para caracterizar a impossibilidade de fuga dos seringais, seja pelas barreiras impostas pelo ambiente, seja pelo consórcio dos patrões que se irmanavam na perseguição e captura dos foragidos com o apoio das autoridades locais; e, conseqüente ao poder conjugado dos seringalistas, o desamparo e a submissão do seringueiro que “[...] sente medo de autoridade. Olha-a, como quem olha uma fera, abestalhado e sem arma [...].”[1] Com isto, no romance, confirma-se  “o mando indiscutível dos patrões”, especialmente aqueles que se estabeleceram nos rios Jamari, Machado e afluentes do rio Madeira. A luta dos exploradores contra os índios é, por fim, outro aspecto reiterado em Beiradão.

            Entretanto, ao mesmo tempo em que o romance aborda os aspectos convencionais em torno do ciclo, renova algumas das suas tradicionais abordagens literárias. Assim sendo, uma das principais inovações apresentadas é o rompimento do anátema que recai sobre o seringalista. A personagem Fábio sintetiza esse rompimento. Comparando-a com modelos de seringalistas rudes, sem visão e tacanhos, criados em outras obras, é possível perceber o quanto diferem. Divergindo mesmo do tipo de explorador que caracterizou o ciclo, Fábio não almeja tão somente obter lucro da terra, mas ocupá-la, implantando uma forma de economia duradoura, numa palavra, seu objetivo é criar raízes.

            A formação que irá possibilitar o perfil diferenciado à personagem Fábio é também oposta à das demais personagens de seringalistas. Antes de se tornar um imigrante banido pela seca, foi seminarista o que lhe possibilitou se instruir: “Fábio deixara o internato em tempos rigorosos de catecismo e latim. Lia os seus clássicos, abeberava-se em História e Filosofia [...].”[2]

            Mais do que um bom seringalista, a personagem Fábio encarna o pioneiro que se tornou proprietário, mantendo uma posição arrazoada sobre a exploração da terra, trabalhando não apenas para extrair benefícios num momento presente, mas fazendo uma previsão para os dias futuros, da qual proprietários apoiados na monocultura chegam a fazer pouco caso: “[...] Fábio esquematizou a sua resistência contra o temporal que se aproximava, - plantações de café, cacau, árvores frutíferas e roças, criação de gado, suínos e galinhas. Alguns, julgando-se mais atilados, gracejavam dessas atividades sertanejas – seria melhor enveredar pelo Machado, arrendar seringais e voltar rico [...].[3]

            Fábio também possui a faceta de abnegado, enfatizada por sua postura de estar preocupado em dar ganho aos outros ao invés de ganhar, de não saber cobrar nem valorizar os seus próprios esforços. O idealismo que manifesta, por sua vez, é efusivamente otimista como quando fala aos seus seringueiros, pedindo-lhes paciência nos momentos de crise: “- Devem ter calma e esperança. Daqui a 50 anos, tudo mudará. Preparam esse tempo para nossos filhos, que terão liberdade, assistência médica, escolas.”[4] Essa percepção da personagem harmoniza-se com o pensamento político de Álvaro Maia, o que pode ser observado já através do discurso intitulado “Canção de fé e esperança”, proferido em 1923, ensejado pela data comemorativa do centenário da adesão do Amazonas à Independência Nacional, ocorrida em 1823. Referindo-se ao amor que devota ao Estado, declara:

 

[...] É esse amor que nos faz prever o Amazonas de dois mil e vinte e três, como uma pátria em que milhares de homens, unidos pelo mesmo afeto, celebram uma nova era, sustentando, por seu poder financeiro, uma potência econômica formidável, cujas cariátides serão as fábricas plantadas nos campos, os armazéns com incalculáveis valores, as cidades debruçadas à margem dos rios nervosos e barrentos. As estradas de ferro comunicarão os afluentes entre si  e porão em contato os reservatórios de riquezas, que se prolongam do Rio Branco aos campos-gerais do Madeira [...][5]

 

            As críticas que Álvaro Maia empreende no mesmo discurso à falta de um trabalho efetivo de cultivo da terra são assinaladas também pelo narrador do romance ao destacar uma “[...] terra em que não se plantava, não se criava, importando-se sempre e destruindo as reservas naturais.”[6] Outros pontos de confluência que também podemos notar é a exaltação do nordestino, o “nobre bandeirante do nordeste”, apontado como herói do desbravamento, e a denúncia do descaso governamental em relação ao Estado. Tanto a crítica quanto a exaltação presentes no discurso justificam plenamente a arquitetura de uma personagem como Fábio, um nordestino que demonstra amor à terra para a qual se transplantou, que constrói e administra sua propriedade com base na racionalidade, que ao invés de inimigo se transforma num parceiro daqueles que para ele trabalham. A idéia da cooperação entre patrões e empregados que podemos depreender da postura de Fábio, patrão que se solidariza com seus trabalhadores, está em afinação com a política trabalhista do Estado Novo que, como lembra Santos, postulava “a ausência dos conflitos entre patrões e trabalhadores [...].”[7]

            Figurando sempre como oponente, o seringalista não teve na ficção do ciclo o status de protagonista. A nomeação de protagonista em relação à personagem Fábio deve ser estabelecida a partir de algumas considerações. Ela pode ser tomada como uma figura central por ter destaque em relação às demais personagens, especialmente no que diz respeito à história principal, sendo Beiradão uma narrativa que se divide em muitas histórias paralelas. No que diz respeito ao herói como um ser problemático que enfrenta adversidades e busca entender-se no mundo ou numa sociedade de que faz parte, Fábio representa uma categoria e não um ser individualizado, pois não enfrenta situações que o ponham em choque com forças opostas as suas e não ostenta maiores transformações de sua personalidade. Sendo assim, não tem oponentes mas contrapontos como Segadais e Padre Silveira, personagens com posturas diferentes da sua, mas com as quais não entra em conflito. Mesmo em relação aos seringalistas de papel oposto ao seu, não se cria um antagonismo, uma vez que admira sua função de desbravadores. Em síntese, Fábio é um modelo ideal de seringalista em contraponto a um modelo errôneo. Desde o princípio do romance, sua personalidade já está traçada para atender a esse modelo.



[1] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 152.

[2] Ibid., p. 180.

[3] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 200.

[4] Ibid., Beiradão, p. 199.

[5] Álvaro MAIA, Canção de fé e esperança. In: Revista UBE-Amazonas (Álvaro Maia – Poliantéia), p. 150.

[6] Idem, Beiradão, p. 193.

[7] Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia, p. 114.