Baurélio Mangabeira, por Reginaldo Miranda

[REGINALDO MIRANDA]


          Benedito Aurélio de Freitas, por alcunha Baurélio Mangabeira, nasceu às dezoito horas do dia 18 de julho de 1884, na fazenda “Pau d’arco”, Município de Piripiri, filho de Aureliano de Freitas e Silva e Izabel de Freitas e Silva. Era seu avô paterno o notável padre Domingos de Freitas e Silva, o principal fundador da cidade de Piripiri e dona Jesuína de Freitas e Silva; e materno Porfírio de Freitas e Silva e dona Joana de Freitas e Silva (Na declaração de seu nascimento, por ele feita, informa que nasceu em 19 de junho de 1890, na cidade de Piripiri).


          Órfão de mãe desde o nascimento, vez que a genitora morrera no parto, e de pai desde os cinco anos de idade, foi criado sob os cuidados da tia e madrasta Carolina Rosa da Silva, tendo em vista seu pai depois de viúvo ter convolado novas núpcias com uma cunhada, como a anterior sua sobrinha, com quem teve mais três filhos. Sem pai e sem mãe, transcorreu sua meninice sem muito regramento, desde cedo correndo solto nos arredores de Piripiri, banhando em riachos, subindo em árvores, armando arapucas para apanhar aves e fazendo outras estripulias típicas de menino de fazenda. É quando foi aberta pelo professor Nelson Francisco de Carvalho, uma escola de primeiras letras para alfabetizar as crianças de Piripiri, que até então não existia. O menino Benedito Aurélio foi mandado imediatamente para essa escola, surpreendendo o mestre pelos rasgos de inteligência. Concluída essa etapa, aos 12 anos de idade, foi enviado pelo avô Porfírio de Freitas e Silva para a cidade de Barras, onde concluiu os estudos primários, os únicos cursados em escola regular, prosseguindo como autodidata.


Completada a maioridade, muda-se para a cidade de União, “onde começou a trabalhar em misteres humildes e depois como balconista na farmácia Guerreiro, daquela cidade. Daí passou para a farmácia do Sr. Tersandro Paz, em Floriano e Teresina. Nessa última, que então era o melhor estabelecimento no gênero, neste Estado Baurélio habilitou-se como farmacêutico prático e conseguiu juntar um pecúlio regular, com o qual começou a comprar livros. Em seguida surgiu pela imprensa publicando sonetos líricos amorosos, mas que chamavam atenção (...) pela cadência, ritmo e beleza de imaginação”. Em toda a sua vida, foi essa a fase em que esteve mais equilibrado financeiramente. Por esse tempo se qualificava como farmacêutico licenciado.


Todavia, “à proporção que ia ingressando no Parnaso e que o estro se desenvolvia calorosamente com aspectos panorâmicos de belezas transcendentais, ia o poeta afrouxando a dedicação ao trabalho quotidiano”, entediando-se até abandoná-lo completamente e entregar-se de vez à boêmia, primeiro em Parnaíba e depois em Teresina e outras localidades, consumindo todas as suas economias. Entregou-se ao vício do alcoolismo e tabagismo. Desde então, passou a viver com dificuldades financeiras.


Na poesia iniciou-se seguindo a tendência naturalista defendida por Mauricio Le Blande e Émmile Zola. Somente depois, impressionado com a leitura das poesias satíricas de Bocage, tornou-se humorístico e causticante. Por esse tempo, publica Sonetos Piauienses(1910), panfleto de versos humorísticos e agressivos. Nessa ocasião, lembra Alarico José da Cunha em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras, principal fonte dessas notas e autor das citações entre aspas, que “um dos atingidos pelas sátiras do poeta, ameaçou-o de um surra em plena rua de Teresina. Tendo conhecimento da desagradável promessa, Baurélio dirigiu-se ao Chefe de Polícia, (...), solicitando que este providenciasse no sentido do seu agressor adiar a surra por uma semana, pelo menos, a fim de poder ele terminar um serviço que havia começado”. Felizmente, a tal promessa não se concretizou e nosso poeta pôde continuar circulando livremente pelas ruas de Teresina.


Sobre esse volumeto de versos de tiragem reduzida, hoje completamente desaparecido, assim registrou o jornalista Elias Martins, redator-chefe do jornal O Apóstolo:


 


“Do inteligente moço B. Freitas que, em nosso meio é conhecido pelo pseudônimo Baurélio Mangabeira, recebemos um pequeno livro, Sonetos piauhyenses, fineza que agradecemos.


‘Não nos sobra espaço para uma apreciação cabal do trabalho do sr. B. Freitas; mas da ligeira leitura que fizemos, vimos que ali há sonetos escritos com inspiração.


‘São versos puramente piauhyenses, vazados alguns em feio realismo. Não nos soube bem aquele mau gosto do autor em escolher cenas indignas de reprodução, de preferência a outras tão belas que não só estimulariam o estro, como salpicariam de graça e candura as páginas de um livro. Achamos extravagante a predileção do autor que, pode ser, doutra vez, procure inspirar-se em coisas mais limpas” (O Apóstolo, 10.7.1910).   


 


Esse julgamento severo daquele órgão de imprensa, certamente deve-se ao caráter satírico da publicação.


Alarico José da Cunha, no indicado discurso de posse lembra também a engenhosa e interessante versão do poeta para o seu pseudônimo. Porque sua desditosa mãe houvera feito uma promessa para São Benedito, santo de sua predileção, mas este os abandonara à própria sorte, desprezou o nome do taumaturgo, mas em reverência à veneração da mãe conservou o B inicial e etimológico que, junto com a palavra Aurélio, parte do nome de seu pai e do grande imperador filósofo Marco Aurélio, deu em resultado a palavra vibrátil, elegante e sonora Baurélio. E porque o sobrenome Freitas pouco lhe dizia, substituiu-o por Mangabeira, nome de uma árvore que por aqueles dias era fonte de riqueza no Piauí, produzindo magnífica borracha. Para ele, Baurélio Mangabeira, significava poder, sabedoria e riqueza – os três principais fatores do progresso e da civilização.


Jornalista andarilho, repentista e tribuno ardoroso, andava com um prelo portátil e em qualquer parte onde estivesse editava seu jornal A Jornada, periódico ambulante que manteve por vários anos, sendo ele sozinho e a um tempo, redator, revisor e tipógrafo. Redigia, compunha, executava clichês de madeira para ilustrar o jornal e, afinal, o imprimia. Modelava também em zinco e era exímio desenhista, pintor, xilógrafo e escultor. Colaborou também nas revistas Alvorada(1909),Litericultura(1912), Via Lucis (1913, pertencente ao Grêmio Literário Abdias Neves, de Teresina) e nos jornais A Chaleira, O Porvir, O Norte, O Grito, A Letra e O Periperi. Consagrado na literatura, em 1917 participou da fundação da Academia Piauiense de Letras, tomando assento na cadeira n.º 6.


Contraiu matrimônio, um tanto retardado, em 21 de junho de 1927, no termo de Alto Longá, onde exerceu o cargo de juiz distrital, com a senhorita Raimunda de Oliveira Freitas, filha de Possidônio Otaviano do Nascimento e Feliciana Oliveira do Nascimento, residentes naquela cidade. Do consórcio deixou os seguintes filhos: Francisco de Assis Freitas, nascido em 1928 e falecido na cidade de Piripiri, com treze anos de idade, em 21 de dezembro de 1941; Maria de Lourdes Oliveira Freitas, nascida em 23 de julho de 1931, na cidade de Piripiri; e, José Henrique de Oliveira Freitas, nascido em 15 de maio de 1933, na casa de residência de seus genitores, situada à Rua Lisandro Nogueira, cidade de Teresina.


Para Alarico da Cunha, “Baurélio Mangabeira foi sempre um torturado na sua peregrinação terrena e uma vítima da indiferença do meio. Mantinha, entretanto, uma verve chistosa e humorística, com a qual disfarçava gostosamente os seus pesares ou ‘as tormentas da vida’” (CUNHA, Alarico José da. Discurso de Posse. Revista da APL n.º 17. Teresina: Imprensa Oficial, 1938).


Faleceu Benedito Aurélio de Freitas, o popular poeta Baurélio Mangabeira, em sua residência situada na Rua Clodoaldo Freitas, cidade de Teresina, à uma hora da manhã de 16 de abril de 1937, com quase 53 anos de idade, sendo o corpo sepultado no cemitério São José. Falando à borda de seu túmulo, na tarde daquele mesmo dia, e em nome da Academia, disse o consagrado poeta Celso Pinheiro:


 


“É finda a tua missão! Desabotoaste em flores de carne e flores de espírito. O sentimento é ainda uma força eterna, inextinguível. Não foi em vão que sofreste. Dor é imortalidade...


‘Serviste ao coração e à inteligência. O teu esforço foi coroado com o azul dos céus. Honraste a Deus. Sê em paz. Com o fósforo do pensamento acenderemos hoje, em tua honra, a vela de uma lágrima, grande iniciado da religião do Silêncio!...


‘Sê em paz...” (Rev. APL n.º 16 – mDez./1937. P.183/189).


Em 1914, durante confraternização de seu aniversário natalício, compôs esse soneto, citado pelo Prof. Mardoqueu Marques, seu amigo, em panegírico feito na sessão de 24 de maio de 1937:


 


NA MINHA DATA


 


Nessa terna ilusão da vida flórea,


Armaram-me a facão, à foice, à enxada,


Para limpar os rumos dessa Estrada,


Que levam a gente sã à Eterna Glória.


 


Passo vista aos rebanhos. A Alvorada


Desata a minha rede e cita a história


Da gente parva, torpe, merencória,


Da gente fartamente acanalhada.


 


Amolo a ferramenta. Sigo o prumo...


Canaviais desmanchando em níveo sumo,


Tirando aos parreirais sangue africano...


 


Faço na terra impávido mistério!


- Tanto povo a passar p’ro cemitério,


E eu caladinho faço mais um ano!


 


Ainda como mostra de sua produção literária, seguem alguns poemas:


 


REVELAÇÕES


 


Não julgues que, se a sorte não maldigo,


Seja porque minha alma não sofreu


Os travos da desgraça – agro castigo,


Que dizem vir do Inferno ou vir do céu.


 


Pouco tempo meu pai viveu comigo:


Cinco rápidos anos e morreu.


E minha mãe, com lágrimas te digo,


Dentro de algumas horas faleceu.


 


Escuta lá: Nos cemitérios vastos


Os ossos de meus pais devem estar gastos


Pelo tempo que tudo estraga e rói...


 


Olha: quem nessa estrada cai,


Sem ter mãe, minha filha, e sem ter pai,


Há de sentir o quanto a vida dói...


 


CANÇÃO


 


É da luz dos teus olhos, luz que eu amo,


Que vem todo este amor à alma que tenho...


Os teus olhos no meu refletem a flux,


                         Doce luz!


- Dois rouxinóis cantando num só ramo:


Doce ideal da vida em que me empenho.


 


Do róseo dos teus lábios, cor que eu amo,


Vem todo este prazer à alma que tenho...


Unamos, minha flor, teus mornos lábios


                       Nos meus lábios...


Dois rouxinóis beijando-se, num ramo:


Doce ideal no amor que em mim contenho.


 


Dos contornos dos seios, seios que amo,


Vem todo o amor que em mim contenho.


Unamos o teu peito no meu peito...


                       Doce leito!


- Dois rouxinóis unidos, num só ramo:


Doce símbolo da vida que não tenho.


 


Noivo – envolvido em tétrica tardança...


Louco! Penso que às vezes me detestas.


Prende-me à rósea detenção do seio...


                 Doce enleio!


- Quando virás, ó última esperança,


Trajando o verde augusto das florestas!.


                      (Diário do Piauhy, Teresina, 10.5.1914).


 


PALINÓDIA


                    Aos meus irmãos Totônia, Chiquinha e Aurélio.


 


Quando eu morrer, sensíveis criaturas,


Filhas de Carolina e Aureliano,


Dispenso as vossas lágrimas tão puras,


E o vosso amor por mim, tão soberano!


 


            Isolem-me estre estranhas sepulturas,


            Que este é o prazer real de que me ufano.


            Oh, me não chorem ternas criaturas!


            Morto não penso e disso me não engano.


 


Vossa virtude e a de meus pais não mancho!


Deixai-me lá no verdadeiro rancho,


- Palácio sepulcral da Eternidade.


 


          Deixai-me sossegar! Deixai-me só!


          O coração do morto desce ao pó


           Como um monstro insensível à saudade!


                                    (O Apóstolo, 1.10.1911).


 


POR QUE FOI?


 


Por que foi terna luz da minha vida,


Encanto, sedução, doce ventura,


Que me levaste à dor, à desventura,


Ao frio, à treva, onde não medra a vinha?


 


Por que foi, terna luz que em mim fulgura,


Encanto, sedução, grandeza minha,


Que me negaste a festival ventura,


Dando-me triste vida que eu não tinha?


 


Por que foi, luminosa luz celeste,


Encanto, sedução, visão radiosa,


Que eterna dor e pranto à alma me deste?


 


Por que foi que eu, sofrendo esse tormento


Odiar-te não pude, alma de rosa.


Nem também te apagar do pensamento?!


              (A Pacotilha, Maranhão, 19.12.1919).


 


 


FOLHA DE MEU DIÁRIO


 


Amigos – não os achei na vida minha,


Até triste momento em que hei vivido,


Pobre sorte a que eu tenho. Ninguém tinha


Posto reparo assim que eu tenho tido.


 


Já tinha eu reparado em minha vinha,


Que a bondade é rebento mal nascido,


Que a lhaneza é uma droga que se vinha,


Que se torna em vinagre mal curtido.


 


Neste século repleto de ambição,


Cheio de indesejosos e cretinos


Fechemos o capítulo da razão!


 


Fechemos o capítulo da Virtude!


Este século presente, meus meninos,


Inda ilude a vocês mas não me ilude.


                         (A Pacotilha, Maranhão, 24.3.1920).


 


 


SONETO


 


Sóis que andam a rondar as infinitas


Zonas infinitíssimas, astrais,


Castiguem, astros do bem, os animais


Que andam compondo legiões malditas.


 


Ah! Ser humano – és mísero demais...


Nasces cantando os hinos das desditas,


Morres sentindo nalma átras vinditas


Que Deus concede aos pálidos mortais.


 


A lei de Jeová deu p’ra ser lida,


Perturba a humanidade pela dor,


E é mais ou menos isto –infame sorte!


 


1º art. – a luz saudando a vida!


2º art. – o mal sagrando o amor!


§ § finais – sobras de morte.


                             (A Pacotilha, Maranhão, 2.10.1914).


 


ESPERANÇAS


 


Batem à porta rude das Chimeras,


Em breve, as Esperanças foragidas!


E dos Sonhos sonhados noutras eras,


Resta o cortejo de ilusões vencidas.


 


Hão de findar p’ra sempre as Primaveras...


E o tempo a evoluir, em arremetidas,


Há de trazer-nos úmidas Taperas...


E esperanças revivem noutras vidas!


 


Em fuga as ilusões que alimentamos...


E o nosso Amor em fuga, porque andamos


Comboiando fatais desesperanças...


 


E neste rumo, aos trambolhões e aos trancos,


Vamos em busca dos cabelos brancos,


Para esquecer as mortas Esperanças...


                         (O Pharol, Cuiabá, 29.5.1909).


 


(O presente texto foi publicado inicialmente nos jornais Notícias Acadêmicas, Setembro/2010 e Meio Norte, 29.10.2010. Foi ampliado pelo autor).


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* Benedito Aurélio de Freitas, por alcunha Baurélio Mangabeira, nasceu às dezoito horas do dia 18 de julho de 1884, na fazenda “Pau d’arco”, Município de Piripiri, filho de Aureliano de Freitas e Silva e Izabel de Freitas e Silva. Era seu avô paterno o notável padre Domingos de Freitas e Silva, o principal fundador da cidade de Piripiri e dona Jesuína de Freitas e Silva; e materno Porfírio de Freitas e Silva e dona Joana de Freitas e Silva (Na declaração de seu nascimento, por ele feita, informa que nasceu em 19 de junho de 1890, na cidade de Piripiri).

Órfão de mãe desde o nascimento, vez que a genitora morrera no parto, e de pai desde os cinco anos de idade, foi criado sob os cuidados da tia e madrasta Carolina Rosa da Silva, tendo em vista seu pai depois de viúvo ter convolado novas núpcias com uma cunhada, como a anterior sua sobrinha, com quem teve mais três filhos. Sem pai e sem mãe, transcorreu sua meninice sem muito regramento, desde cedo correndo solto nos arredores de Piripiri, banhando em riachos, subindo em árvores, armando arapucas para apanhar aves e fazendo outras estripulias típicas de menino de fazenda. É quando foi aberta pelo professor Nelson Francisco de Carvalho, uma escola de primeiras letras para alfabetizar as crianças de Piripiri, que até então não existia. O menino Benedito Aurélio foi mandado imediatamente para essa escola, surpreendendo o mestre pelos rasgos de inteligência. Concluída essa etapa, aos 12 anos de idade, foi enviado pelo avô Porfírio de Freitas e Silva para a cidade de Barras, onde concluiu os estudos primários, os únicos cursados em escola regular, prosseguindo como autodidata.


Completada a maioridade, muda-se para a cidade de União, “onde começou a trabalhar em misteres humildes e depois como balconista na farmácia Guerreiro, daquela cidade. Daí passou para a farmácia do Sr. Tersandro Paz, em Floriano e Teresina. Nessa última, que então era o melhor estabelecimento no gênero, neste Estado Baurélio habilitou-se como farmacêutico prático e conseguiu juntar um pecúlio regular, com o qual começou a comprar livros. Em seguida surgiu pela imprensa publicando sonetos líricos amorosos, mas que chamavam atenção (...) pela cadência, ritmo e beleza de imaginação”. Em toda a sua vida, foi essa a fase em que esteve mais equilibrado financeiramente. Por esse tempo se qualificava como farmacêutico licenciado.


Todavia, “à proporção que ia ingressando no Parnaso e que o estro se desenvolvia calorosamente com aspectos panorâmicos de belezas transcendentais, ia o poeta afrouxando a dedicação ao trabalho quotidiano”, entediando-se até abandoná-lo completamente e entregar-se de vez à boêmia, primeiro em Parnaíba e depois em Teresina e outras localidades, consumindo todas as suas economias. Entregou-se ao vício do alcoolismo e tabagismo. Desde então, passou a viver com dificuldades financeiras.


Na poesia iniciou-se seguindo a tendência naturalista defendida por Mauricio Le Blande e Émmile Zola. Somente depois, impressionado com a leitura das poesias satíricas de Bocage, tornou-se humorístico e causticante. Por esse tempo, publica Sonetos Piauienses(1910), panfleto de versos humorísticos e agressivos. Nessa ocasião, lembra Alarico José da Cunha em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras, principal fonte dessas notas e autor das citações entre aspas, que “um dos atingidos pelas sátiras do poeta, ameaçou-o de um surra em plena rua de Teresina. Tendo conhecimento da desagradável promessa, Baurélio dirigiu-se ao Chefe de Polícia, (...), solicitando que este providenciasse no sentido do seu agressor adiar a surra por uma semana, pelo menos, a fim de poder ele terminar um serviço que havia começado”. Felizmente, a tal promessa não se concretizou e nosso poeta pôde continuar circulando livremente pelas ruas de Teresina.


Sobre esse volumeto de versos de tiragem reduzida, hoje completamente desaparecido, assim registrou o jornalista Elias Martins, redator-chefe do jornal O Apóstolo:


 


“Do inteligente moço B. Freitas que, em nosso meio é conhecido pelo pseudônimo Baurélio Mangabeira, recebemos um pequeno livro, Sonetos piauhyenses, fineza que agradecemos.


‘Não nos sobra espaço para uma apreciação cabal do trabalho do sr. B. Freitas; mas da ligeira leitura que fizemos, vimos que ali há sonetos escritos com inspiração.


‘São versos puramente piauhyenses, vazados alguns em feio realismo. Não nos soube bem aquele mau gosto do autor em escolher cenas indignas de reprodução, de preferência a outras tão belas que não só estimulariam o estro, como salpicariam de graça e candura as páginas de um livro. Achamos extravagante a predileção do autor que, pode ser, doutra vez, procure inspirar-se em coisas mais limpas” (O Apóstolo, 10.7.1910).   


 


Esse julgamento severo daquele órgão de imprensa, certamente deve-se ao caráter satírico da publicação.


Alarico José da Cunha, no indicado discurso de posse lembra também a engenhosa e interessante versão do poeta para o seu pseudônimo. Porque sua desditosa mãe houvera feito uma promessa para São Benedito, santo de sua predileção, mas este os abandonara à própria sorte, desprezou o nome do taumaturgo, mas em reverência à veneração da mãe conservou o B inicial e etimológico que, junto com a palavra Aurélio, parte do nome de seu pai e do grande imperador filósofo Marco Aurélio, deu em resultado a palavra vibrátil, elegante e sonora Baurélio. E porque o sobrenome Freitas pouco lhe dizia, substituiu-o por Mangabeira, nome de uma árvore que por aqueles dias era fonte de riqueza no Piauí, produzindo magnífica borracha. Para ele, Baurélio Mangabeira, significava poder, sabedoria e riqueza – os três principais fatores do progresso e da civilização.


Jornalista andarilho, repentista e tribuno ardoroso, andava com um prelo portátil e em qualquer parte onde estivesse editava seu jornal A Jornada, periódico ambulante que manteve por vários anos, sendo ele sozinho e a um tempo, redator, revisor e tipógrafo. Redigia, compunha, executava clichês de madeira para ilustrar o jornal e, afinal, o imprimia. Modelava também em zinco e era exímio desenhista, pintor, xilógrafo e escultor. Colaborou também nas revistas Alvorada(1909),Litericultura(1912), Via Lucis (1913, pertencente ao Grêmio Literário Abdias Neves, de Teresina) e nos jornais A Chaleira, O Porvir, O Norte, O Grito, A Letra e O Periperi. Consagrado na literatura, em 1917 participou da fundação da Academia Piauiense de Letras, tomando assento na cadeira n.º 6.


Contraiu matrimônio, um tanto retardado, em 21 de junho de 1927, no termo de Alto Longá, onde exerceu o cargo de juiz distrital, com a senhorita Raimunda de Oliveira Freitas, filha de Possidônio Otaviano do Nascimento e Feliciana Oliveira do Nascimento, residentes naquela cidade. Do consórcio deixou os seguintes filhos: Francisco de Assis Freitas, nascido em 1928 e falecido na cidade de Piripiri, com treze anos de idade, em 21 de dezembro de 1941; Maria de Lourdes Oliveira Freitas, nascida em 23 de julho de 1931, na cidade de Piripiri; e, José Henrique de Oliveira Freitas, nascido em 15 de maio de 1933, na casa de residência de seus genitores, situada à Rua Lisandro Nogueira, cidade de Teresina.


Para Alarico da Cunha, “Baurélio Mangabeira foi sempre um torturado na sua peregrinação terrena e uma vítima da indiferença do meio. Mantinha, entretanto, uma verve chistosa e humorística, com a qual disfarçava gostosamente os seus pesares ou ‘as tormentas da vida’” (CUNHA, Alarico José da. Discurso de Posse. Revista da APL n.º 17. Teresina: Imprensa Oficial, 1938).


Faleceu Benedito Aurélio de Freitas, o popular poeta Baurélio Mangabeira, em sua residência situada na Rua Clodoaldo Freitas, cidade de Teresina, à uma hora da manhã de 16 de abril de 1937, com quase 53 anos de idade, sendo o corpo sepultado no cemitério São José. Falando à borda de seu túmulo, na tarde daquele mesmo dia, e em nome da Academia, disse o consagrado poeta Celso Pinheiro:


 


“É finda a tua missão! Desabotoaste em flores de carne e flores de espírito. O sentimento é ainda uma força eterna, inextinguível. Não foi em vão que sofreste. Dor é imortalidade...


‘Serviste ao coração e à inteligência. O teu esforço foi coroado com o azul dos céus. Honraste a Deus. Sê em paz. Com o fósforo do pensamento acenderemos hoje, em tua honra, a vela de uma lágrima, grande iniciado da religião do Silêncio!...


‘Sê em paz...” (Rev. APL n.º 16 – mDez./1937. P.183/189).


Em 1914, durante confraternização de seu aniversário natalício, compôs esse soneto, citado pelo Prof. Mardoqueu Marques, seu amigo, em panegírico feito na sessão de 24 de maio de 1937:


 


NA MINHA DATA


 


Nessa terna ilusão da vida flórea,


Armaram-me a facão, à foice, à enxada,


Para limpar os rumos dessa Estrada,


Que levam a gente sã à Eterna Glória.


 


Passo vista aos rebanhos. A Alvorada


Desata a minha rede e cita a história


Da gente parva, torpe, merencória,


Da gente fartamente acanalhada.


 


Amolo a ferramenta. Sigo o prumo...


Canaviais desmanchando em níveo sumo,


Tirando aos parreirais sangue africano...


 


Faço na terra impávido mistério!


- Tanto povo a passar p’ro cemitério,


E eu caladinho faço mais um ano!


 


Ainda como mostra de sua produção literária, seguem alguns poemas:


 


REVELAÇÕES


 


Não julgues que, se a sorte não maldigo,


Seja porque minha alma não sofreu


Os travos da desgraça – agro castigo,


Que dizem vir do Inferno ou vir do céu.


 


Pouco tempo meu pai viveu comigo:


Cinco rápidos anos e morreu.


E minha mãe, com lágrimas te digo,


Dentro de algumas horas faleceu.


 


Escuta lá: Nos cemitérios vastos


Os ossos de meus pais devem estar gastos


Pelo tempo que tudo estraga e rói...


 


Olha: quem nessa estrada cai,


Sem ter mãe, minha filha, e sem ter pai,


Há de sentir o quanto a vida dói...


 


CANÇÃO


 


É da luz dos teus olhos, luz que eu amo,


Que vem todo este amor à alma que tenho...


Os teus olhos no meu refletem a flux,


                         Doce luz!


- Dois rouxinóis cantando num só ramo:


Doce ideal da vida em que me empenho.


 


Do róseo dos teus lábios, cor que eu amo,


Vem todo este prazer à alma que tenho...


Unamos, minha flor, teus mornos lábios


                       Nos meus lábios...


Dois rouxinóis beijando-se, num ramo:


Doce ideal no amor que em mim contenho.


 


Dos contornos dos seios, seios que amo,


Vem todo o amor que em mim contenho.


Unamos o teu peito no meu peito...


                       Doce leito!


- Dois rouxinóis unidos, num só ramo:


Doce símbolo da vida que não tenho.


 


Noivo – envolvido em tétrica tardança...


Louco! Penso que às vezes me detestas.


Prende-me à rósea detenção do seio...


                 Doce enleio!


- Quando virás, ó última esperança,


Trajando o verde augusto das florestas!.


                      (Diário do Piauhy, Teresina, 10.5.1914).


 


PALINÓDIA


                    Aos meus irmãos Totônia, Chiquinha e Aurélio.


 


Quando eu morrer, sensíveis criaturas,


Filhas de Carolina e Aureliano,


Dispenso as vossas lágrimas tão puras,


E o vosso amor por mim, tão soberano!


 


            Isolem-me estre estranhas sepulturas,


            Que este é o prazer real de que me ufano.


            Oh, me não chorem ternas criaturas!


            Morto não penso e disso me não engano.


 


Vossa virtude e a de meus pais não mancho!


Deixai-me lá no verdadeiro rancho,


- Palácio sepulcral da Eternidade.


 


          Deixai-me sossegar! Deixai-me só!


          O coração do morto desce ao pó


           Como um monstro insensível à saudade!


                                    (O Apóstolo, 1.10.1911).


 


POR QUE FOI?


 


Por que foi terna luz da minha vida,


Encanto, sedução, doce ventura,


Que me levaste à dor, à desventura,


Ao frio, à treva, onde não medra a vinha?


 


Por que foi, terna luz que em mim fulgura,


Encanto, sedução, grandeza minha,


Que me negaste a festival ventura,


Dando-me triste vida que eu não tinha?


 


Por que foi, luminosa luz celeste,


Encanto, sedução, visão radiosa,


Que eterna dor e pranto à alma me deste?


 


Por que foi que eu, sofrendo esse tormento


Odiar-te não pude, alma de rosa.


Nem também te apagar do pensamento?!


              (A Pacotilha, Maranhão, 19.12.1919).


 


 


FOLHA DE MEU DIÁRIO


 


Amigos – não os achei na vida minha,


Até triste momento em que hei vivido,


Pobre sorte a que eu tenho. Ninguém tinha


Posto reparo assim que eu tenho tido.


 


Já tinha eu reparado em minha vinha,


Que a bondade é rebento mal nascido,


Que a lhaneza é uma droga que se vinha,


Que se torna em vinagre mal curtido.


 


Neste século repleto de ambição,


Cheio de indesejosos e cretinos


Fechemos o capítulo da razão!


 


Fechemos o capítulo da Virtude!


Este século presente, meus meninos,


Inda ilude a vocês mas não me ilude.


                         (A Pacotilha, Maranhão, 24.3.1920).


 


 


SONETO


 


Sóis que andam a rondar as infinitas


Zonas infinitíssimas, astrais,


Castiguem, astros do bem, os animais


Que andam compondo legiões malditas.


 


Ah! Ser humano – és mísero demais...


Nasces cantando os hinos das desditas,


Morres sentindo nalma átras vinditas


Que Deus concede aos pálidos mortais.


 


A lei de Jeová deu p’ra ser lida,


Perturba a humanidade pela dor,


E é mais ou menos isto –infame sorte!


 


1º art. – a luz saudando a vida!


2º art. – o mal sagrando o amor!


§ § finais – sobras de morte.


                             (A Pacotilha, Maranhão, 2.10.1914).


 


ESPERANÇAS


 


Batem à porta rude das Chimeras,


Em breve, as Esperanças foragidas!


E dos Sonhos sonhados noutras eras,


Resta o cortejo de ilusões vencidas.


 


Hão de findar p’ra sempre as Primaveras...


E o tempo a evoluir, em arremetidas,


Há de trazer-nos úmidas Taperas...


E esperanças revivem noutras vidas!


 


Em fuga as ilusões que alimentamos...


E o nosso Amor em fuga, porque andamos


Comboiando fatais desesperanças...


 


E neste rumo, aos trambolhões e aos trancos,


Vamos em busca dos cabelos brancos,


Para esquecer as mortas Esperanças...


                         (O Pharol, Cuiabá, 29.5.1909).


 


(O presente texto foi publicado inicialmente nos jornais Notícias Acadêmicas, Setembro/2010 e Meio Norte, 29.10.2010. Foi ampliado pelo autor).


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* REGINALDO MIRANDA, autor de diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Atual presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí Contato: [email protected]