Monumento aos Heróis do Jenipapo, em Campo Maior (PI).
Monumento aos Heróis do Jenipapo, em Campo Maior (PI).

Reginaldo Miranda[1]

José Martins Pereira d’Alencastre, primeiro escritor que se aventurou a escrever sobre história piauiense, em 1857, assim resumiu o capítulo em que se reportou à independência no Piauí:

“O grito constitucional levantado pelos portugueses trouxe ao Brasil uma nova ordem de coisas; e na Capitania do Piauí, desde que foi jurada a Constituição Portuguesa, a ambição pela liberdade tomou maior vulto, a ideia de emancipação política começou a germinar. O Juiz de Fora da Parnaíba, Dr. João Cândido de Deus e Silva, homem ativo e de sentimentos patrióticos, via luzir em seus sonhos de liberdade uma estrela brilhante para o Brasil. Ele principiou a pregar ao povo, a ensinar-lhe o caminho da felicidade futura. Em [19 de] outubro de 1822 a Parnaíba levantou o grito de independência, e aclamou o Sr. D. Pedro I Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo”[2].

Sobre o assunto, a declaração de Parnaíba é um ponto fora da curva nesse encadeamento de fatos. Conforme lembra Odilon Nunes, eles proclamaram a regência de D. Pedro, as futuras Cortes Constituintes do Brasil e sua Independência como reino unido a Portugal. Eles ainda não sabiam do Grito ou Declaração do Ipiranga, desejando manter nossa condição de Reino Unido, contra as disposições das Cortes Constituintes de Lisboa. Continua Alencastre:

“Chegando a Oeiras tão importante notícia, o major Fidié, comandante das armas, aterrado, apesar de já esperar o golpe, fez reunir com a maior brevidade toda a força que tinha à sua disposição, e seguiu para Parnaíba, a fim de abafar o grito de independência.

‘Chegando à Parnaíba, ali não achou a quem castigar; a vila estava deserta, pois o Dr. João Cândido se tinha passado para o território do Ceará com todos os seus amigos, em razão de ali já se ter aclamado a Independência e poder gozar de maior confiança. Enquanto João Cândido tinha preparado as coisas na Parnaíba e Piracuruca, o capitão Luís Rodrigues Chaves dispunha os ânimos do povo de Campo Maior para o ato de nossa emancipação, ajudado por Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco, José Carvalho de Almeida[3], Francisco Félix Narciso Castelo Branco, Antônio José Henriques, João da Costa Alecrim e outros amigos da santa causa do Brasil.

‘Logo que o major Fidié deixou a cidade de Oeiras, para ir bater à vila da Parnaíba, na capital as coisas mudaram de face: os amigos do comandante das armas abandonaram a causa de Portugal, e de bom ânimo aderiram ao movimento de 19 de outubro. Isso sucedia em princípios de janeiro de 1823; e no dia 24 pronunciou-se a cidade de Oeiras, levantando o grito de independência, entre vozes entusiasmadas de – viva o Sr. D. Pedro I! Reunidas as pessoas mais gradas no Senado da Câmara, procederam à eleição de um governo temporário, e saíram eleitos aqueles com quem Fidié mais contava”.

Prossegue Alencastre, em seu resumo dos fatos:

“A notícia deste novo acontecimento chegou tarde ao comandante das armas, que ainda estava na Parnaíba combinando planos de ataque; logo, porém que o soube, e certo também da pouca segurança da capital, e dos poucos recursos de que poderia dispor em uma defesa, resolveu sair de Parnaíba e vir atacar a capital. Ao tempo que tais projetos engendrava, teve notícia de que forças vindas do Ceará tinham entrado na vila de Piracuruca, e que esta também se havia jurado independente.

‘Contrariado em suas visitas, sai Fidié da Parnaíba no 1º de março à frente de mais de 1.300 praças, e se dirige primeiro à vila de Piracuruca, que acha deserta. Inda mais receoso se encaminha para Campo Maior. Já nesse tempo o major Bernardo Antônio Saraiva, Alexandre Pereira Nereu e Luís Rodrigues Chaves marcham ao encontro de Fidié, com numerosa força, porém sem disciplina, sem munição, quase que desarmada”.

Foi assim que Alencastre resumiu as démarches da independência, até a Batalha do Jenipapo, que se desferiria nesse encontro entre as tropas de Fidié e as estacionadas em Campo Maior. Evidentemente, depois desse esforço daquele pioneiro de nossa historiografia, outros escritores aprofundaram os estudos sobre o tema, a exemplo de Luiz Antônio Vieira da Silva, Abdias Neves, Odilon Nunes, Monsenhor Chaves, Hermínio Conde, Wilson de Andrade Brandão e alguns outros. Cada um desses lances, todos interligados, será, presentemente, analisado por outros conferencistas, cabendo a nós abordar com maior ênfase a luta que se travou em Campo Maior; também, a importância dessa luta para a consolidação da unidade nacional.

Sobre o combate do Jenipapo, ouçamos o que disse Abdias Neves, em A guerra do Fidié:

“Não há, aliás, em toda a luta pela Independência no Ceará, nesta Província e na do Maranhão, uma página mais pavorosamente grandiosa que a da batalha do Jenipapo – a mais importante das que foram feridas.

‘Muito tarde conhecera o capitão Luís Rodrigues Chaves que nenhum auxílio havia que esperar da Junta Governativa, obsediada como andava pela suposição de que o inimigo por temer vinha de além-Parnaíba. Chamara, então, os homens válidos da vila e termo, arregimentara-os e patenteara-lhes o perigo próximo.

‘Não foi em vão. O povo esteve acima de qualquer expectativa. Cada um, o vaqueiro e o roceiro, foi mais pronto em alistar-se para o tributo de sangue. Ninguém se recusou a acudir ao apelo e, dentro de três dias, as fileiras engrossaram-se e uma numerosa multidão ficou à espera dos portugueses para o combate”.

Acrescentou esse notável escritor piauiense, que a tropa que partiu para as margens do Jenipapo era formada por cerca de dois mil voluntários sem disciplina alguma e apenas quinhentos soldados, todos eles quase desarmados, com poucas espingardas e muitas espadas, facões, chuços, machados e foices. No entanto, “de nada valia, ..., para eles a falta de armas tão sugestionados iam com a certeza do triunfo”. Esquecendo a possibilidade de morrer, sonhavam com o retorno glorioso, trazendo à frente dos muitos prisioneiros, o chefe do exército português. Assim, embriagados partiram para Jenipapo. Era o amanhecer de 13 de março de 1823. Abdias Neves, assim descreveu a estratégia dos brasileiros pondo-se de atalaia, à espera do inimigo:

“Amanhecia quando a tropa, formada em frente à igreja, recebeu ordem de marchar e seguiu para o rio Jenipapo, que, forçosamente, seria vadeado pelos portugueses.  

‘O terreno, ali, é geralmente, plano: apenas de longe em longe uma colina quebra a monotonia da várzea, aberta, sem um amparo. Nas margens do rio, entretanto, tufam-se reboleiras de mofumbos e arbustos.

‘Os brasileiros ocultaram-se no próprio leito do rio, que estava seco em consequência da falta de chuvas. Nem todos, porém: muitos se esconderam nos mufumbais das ribanceiras”.

No entanto, a falta de disciplina militar iria prejudicar sobremaneira os destemidos patriotas piauienses, tirando-lhes o fator surpresa que lhes colocaria em vantagem contra o exército de Fidié. Sobre esse assunto faz-se interessante, mais uma vez acompanhar a narrativa de Abdias Neves:

“Nas proximidades da margem direita, bifurca-se a estrada em duas. Alecrim e Chaves guardariam ambas para evitar a hipótese de passar Fidié sem ser percebido. Por qualquer lado, encontraria os separatistas que, oportunamente, haviam de rechaçá-lo. E assim concertado o plano, daria, talvez, algum êxito, se o acaso não tivesse vindo em favor de Fidié, que, no ponto de bifurcação, dividiu as forças em duas alas. Uma, a em que estava a cavalaria, seguiu pela estrada da direita; a outra, que guardava a artilharia e era comandada por Fidié, em pessoa, seguiu pela estrada da esquerda.

‘Foi a cavalaria que se encontrou, logo, com os brasileiros, sobre os quais tentou uma carga, impedida pela forte fuzilaria dos cearenses.

‘Não convindo, porém, aos portugueses um ataque mais sério, porque não podiam dirigir-se com segurança e ignoravam o número dos atacantes, retrocederam e fugiram”.

Eis aqui um ponto importante da organização das tropas antes do combate. A cavalaria portuguesa retrocedeu para a estrada da esquerda, se reunificando com a infantaria que seguia sob o comando direto de Fidié. Enquanto isso, os patriotas piauienses que estavam entrincheirados no leito e matas adjacentes do Jenipapo, naquela estrada da esquerda, ao ouvirem os tiros disparados na direita, abandonaram suas trincheiras e partiram em disparada para o local do tiroteio, achando que ali o outro grupo de patriotas se batia contra toda a força de Fidié. Não sabiam eles que também Fidié, tivera a mesma estratégia de dividir suas forças pelas duas estradas. Então, ao chegar em Jenipapo, Fidié percebeu esse desatino das tropas independentistas e rapidamente atravessou o leito do riacho com seu exército, dispondo-o nas melhores posições, posicionou a artilharia, enfim, ocupou as trincheiras naturais em que antes se achavam os nacionais, assim invertendo as posições.

Nessa altura, é importante ressaltar que o experiente major João José da Cunha Fidié, assumiu essa estratégia de ali combater, assim abrindo mão de duas outras possibilidades: poderia marchar sobre a vila de Campo Maior, que tomaria sem disparar um tiro; ou atacar os patriotas na outra posição de que era sabedor eles se encontrarem, o que seria a decisão menos acertada.

Enfim, escolheu o local do combate, em campo aberto, estabeleceu seus soldados e as peças de artilharia, à espera do inimigo, em posição defensiva. O encontro não tardaria.

É fato, que quando as tropas piauienses se reaglutinaram no local daqueles primeiros tiros, viram-se frustradas porque não havia a quem combater, visto que a cavalaria portuguesa recuara a galope, conforme dissemos e já tomara posição no outro lado. Então, enquanto deliberavam, chega-lhes o aviso de que os portugueses atravessaram o rio e assumiam posições de combate. Tomados de tamanha surpresa, não atenderam à voz do comando, lembra Abdias Neves, partindo para cima do inimigo em precipitada marcha. Era tamanho o entusiasmo, que somente estacaram ao defrontar o belicoso aparato dos portugueses.

Em campo aberto, Fidié aproveita a surpresa e vacilações dos patriotas, dando um tiro de pólvora seca, seguido pelo disparo de onze peças sobre as forças piauienses. Foi um espetáculo tétrico, muitos corpos dilacerados caindo sobre o solo.

Evidentemente, os capitães Rodrigues Chaves e Alecrim logo perceberam a desigualdade de forças; e no campo de batalha montaram a estratégia de atacar conjuntamente por todos os lados, tentando na refrega fracionar as forças portuguesas. No entanto, foram sempre repelidos em diversas tentativas, com grande perda de vidas. “A fuzilaria e as peças varriam o campo” muitos morrendo “à boca das peças, com um desamor pela vida, que pasmava os soldados, pouco afeitos a semelhantes atos de heroísmo!”, disse Abdias Neves. Ainda segundo esse escritor:

“... o cansaço dominou-os primeiro que a consciência da derrota. As armas caíam-lhes das mãos trêmulas. As pernas anquilosavam-se-lhes. O peito arfava-lhes. Já não combatiam, arrastavam-se para a morte.

‘Somente às 2 horas da tarde, contudo – e a batalha tivera princípio às 9 horas da manhã – começou a retirada, em desordem, sem grande prejuízo, aliás, porque Fidié não mandou perseguir os fugitivos. Nem seus soldados estavam em condições de obedecer a essa ordem, depois de cinco horas de combate ininterrupto, ao sol ardente...”.

Estima-se em 19 mortes da parte dos portugueses, entre os quais três oficiais, além de 60 feridos. Do nosso lado, embora haja discordância, tombaram no campo de batalha quase 200, entre mortos e feridos, sendo que 542 caíram prisioneiros, também perdendo uma peça de artilharia, uma bandeira e três caixas de guerra.

Depois de rapidamente sepultar seus mortos em cinco valas e acomodar os feridos, parte Fidié para a desprotegida vila de Campo Maior. No entanto, sendo avisado de que fora roubada parte significativa de sua bagagem de guerra, foi obrigado a estacionar na fazenda Tombador, cerca de um quilômetro de distância. Nessa altura, a vila sobressaltara-se, tanto pela notícia do insucesso da batalha, desconhecendo quais dos seus havia falecido, quanto pela aterradora notícia da invasão pela tropa lusitana.

Por fim, seja pela perda de armas e munições quanto pela surpresa que o deixara estupefato, com o nunca esperado vigor dos patriotas piauienses, Fidié sentiu a extensão da aversão dos piauienses à sua causa. Não lhe restou alternativa, senão retirar-se para o Maranhão, buscando curar as feridas e restabelecer-se na vila de Caxias. No Maranhão, a causa portuguesa era bem apoiada. Assim, retirou-se pelo caminho do Estanhado.

Em seguida, um clima misto de patriotismo e anarquia tomou conta de Campo Maior. A população exaltada, no largo de Santo Antônio, gritava: “morra os marinheiros!”, em alusão aos portugueses. Nesse clima, Joaquim Bento Pereira, Eufrásio e seu irmão Félix, invadem a cadeia pública e assassinam os portugueses Manuel dos Santos Fialho, Agostinho José de Oliveira, Antônio José da Silva Bastos, Anacleto José de Moraes, João da Costa, João Antônio de Magalhães, José de Sousa Leão, Joaquim José do Nascimento e Alexandre José da Cunha – trazidos do Estanhado por Alecrim.

Em seguida, foram à residência de um inofensivo ancião, por nome João Fuão, de 60 anos e o assassinaram.

Insaciados em sua fúria, perseguiram uma escolta que naquele dia partira de Campo Maior em rumo da capital, levando alguns lusitanos presos. Alcançaram-na à noite, no lugar Boqueirão da Serra, assassinando oito portugueses, a saber: Manuel Martins Bragança, José Antônio Marciano, Manuel de Sousa e Silva, José Garcia da Silva, Manuel José Rosa, Domingues Garcia, Manuel dos Santos – genro de José Domingues, e Francisco Silveira. Entre os prisioneiros, apenas escapou o padre João Manuel de Almendra e um outro prisioneiro que foi poupado, por ter vindo pequeno de Portugal.

Para completar esse quadro pavoroso, da fria morte de civis em tempos de guerra, os fugitivos do Jenipapo assassinaram os portugueses que encontraram pelo caminho, entre os quais: Antônio Duarte, na Baixa Funda; Antônio Joaquim, no Matão; João da Costa Pereira, em Currais Novos; e João Pedro, em Canabrava.

Hoje, esses assassinos seriam julgados e condenados por crimes de guerra. Fidié, nada pôde fazer para defender seus patrícios, retirando-se dos arredores de Campo Maior, em 16 de março. Era um honrado militar, cujas mortes que fizera foram todas no campo de batalha. Também, não foram os militares piauienses que cometeram aquelas desordens, e sim alguns indisciplinados que se meteram entre a multidão apreensiva e revoltada.

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Pela narrativa que vimos traçando, percebe-se que sobressaíram entre os patriotas, na Batalha do Jenipapo, os seguintes comandantes:

Capitão Luís Rodrigues Chaves, militar cearense, entrou na vila de Campo Maior, em 12 de fevereiro de 1823, à frente de 180 soldados de sua província, devidamente armados e municiados. Quatro dias depois, faz uma segunda adesão da Vila de Campo Maior, à independência, parecendo haver desentendimento com Leonardo Castelo Branco, que já fizera essa declaração no dia 5 daquele mês. Foi o principal comandante das tropas brasileiras no campo de Batalha.

Capitão João da Costa Alecrim, também oriundo do Ceará, onde morava, embora fosse pernambucano de nascimento; intemerato, destemido, embora incauto, era de um nacionalismo contagiante; atendendo ao urgente chamado de Rodrigues Chaves, reúne os seus e marcha do Estanhado, onde se encontrava, à toda a brida, varando a noite espessa para chegar ofegante, pela madrugada do dia seguinte, no  largo de Santo Antônio; sem descanso e sem esmorecer, algumas horas depois estava de arma em punho, no campo de batalha, lutando contra a tropa lusitana.

Salvador Cardoso de Oliveira e seu irmão Pedro Francisco Martins, baianos, tão logo souberam que Fidié se aproximava, ainda no Estanhado, se incorporaram com um contingente de 80 homens, à tropa de Alecrim e galoparam por toda a noite para o encontro de vida ou morte; sem descanso, passaram quase direto pela vila de Campo Maior, enfrentando galhardamente as baterias inimigas. 

Capitão Alexandre Pereira Nereu, comandante do regimento montado da Vila de Sobral, no Ceará, foi quem surpreendeu e capturou a bagagem de Fidié.

  Monsenhor Chaves resgata o nome do tenente Simplício José da Silva, campomaiorense que, certamente, lutou em posto inferior contra o exército de Fidié. Foi quem, depois do combate, impôs ordem na vila, punindo os facinorosos. Esses homens foram de uma coragem e estoicismo à toda prova, merecendo nosso respeito e nossa consideração.

No entanto, um pouco antes dessa fase sobressaíram entre os precursores da independência naquela região, os idealistas Lourenço de Araújo Barbosa e Leonardo de Carvalho Castelo Branco, que disseminaram ideias separatistas no termo de Campo Maior e no distrito de Piracuruca. Nenhum tomou parte na Batalha do Jenipapo, porque ambos se encontravam presos por essas ideias políticas.

 Do lado português, gostaríamos de destacar o nome do major João José da Cunha Fidié, militar experiente porque lutara ao lado dos ingleses na retomada do território português às tropas napoleônicas. Por conta dessa experiência, em 9 de dezembro de 1821, foi provido no posto de governador das armas do Piauí, de cujo cargo tomou posse em 9 de agosto do ano seguinte. Segundo ele, veio com urgência, sem receber seu posto e ajuda de custo, antepondo ao bem de sua pátria o seu próprio interesse, com ordem expressa para manter-se no comando a qualquer custo, dissera mais tarde[4]. Deixou interessante livro sobe o assunto, Vária fortuna de um soldado português, editado em 1850.

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É importante ressaltar que desde a criação dos estados coloniais, o governador e capitão-general do Estado exercia juntamente com as atribuições do governo civil o comando ou governo das armas das capitanias que o integravam; no caso do Piauí, desanexada a nossa capitania da jurisdição civil do Maranhão, de que era subalterna, foi através do decreto de 26 de setembro de 1811, que se disciplinou o assunto, separando o governo militar das duas capitanias, ficando totalmente independentes.

Essa importante decisão foi comunicada ao governo do Piauí, através do Aviso da Secretaria do Supremo Conselho Militar, de 16 de outubro daquele ano, desde então passando o governo das armas do Piauí a ser exercido por seus governadores civis.

No entanto, com o sistema constitucional criado pela Revolução do Porto, foi editado o decreto de 29 de setembro de 1821, separando esses governos e submetendo o comando das armas diretamente ao governo de Lisboa e às Cortes Constitucionais. Ficavam assim totalmente independentes das juntas provisórias de governo que se criavam nas províncias do Brasil. Da mesma forma, as juntas provisórias encarregadas do governo civil, também ficavam sem qualquer dependência ao governo das armas[5].

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O Piauí era estratégico no plano português de seccionar a antiga colônia. Essa, desde 1808, fora elevada à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Por essa razão, as cortes de Lisboa envidavam esforços para retornar o Brasil ao status de colônia, tirando-lhe os privilégios auferidos nos últimos anos.

No entanto, D. João VI percebia que a independência das províncias do sul e sudeste era iminente. Então, tentou salvar as províncias do norte-nordeste-centro-oeste. Para isso, enviou oficiais experientes para a Bahia, Piauí e Maranhão, a fim de impedir fosse essa parte contagiada pelo movimento emancipacionista do sul. Nesse plano, assumiu o Piauí posição de destaque, razão pela qual para Oeiras foi enviado o experiente João José da Cunha Fidié.

A importância do Piauí nesse malogrado sonho português, não foi somente por razões econômicas e sim pela posição geográfica. É importante ressaltar que, desde 1621, foi fundado o Estado Colonial do Maranhão, com sede em São Luís, tomada aos franceses; mais tarde, com a ampliação territorial, denominado Estado do Maranhão e Grão-Pará, com sede em Belém, alcançando a extensa bacia amazônica. Possuía, então, Portugal duas colônias na América, cada uma tratando diretamente com Lisboa. A outra era o Estado do Brasil, com sede na Bahia.

Pela lei de criação do Maranhão, os limites daquele Estado se estendiam até os contrafortes da serra de Ibiapaba, alcançando todas as bacias hidrográficas que desembocavam naquele litoral, a exemplo do Rio Grande dos Tapuias ou Punaré, depois conhecido por Parnaíba; significa dizer que o território a ser conquistado na bacia oriental do rio Parnaíba, era legalmente pertencente ao Maranhão. No entanto, essa bacia hidrográfica foi conquistada por elementos do Estado do Brasil, à frente Domingos Afonso Sertão, Julião Afonso Serra, Francisco Dias d’Ávila e Bernardo Pereira Gago.

Então, o Piauí foi conquistado em meio a conflito jurisdicional: pertencia por lei ao Maranhão e por direito de conquista ao Brasil. Por essa razão, aqueles primeiros conquistadores requereram e conseguiram suas sesmarias em Pernambuco, capitania do Brasil, situada à margem esquerda do rio São Francisco.

Essa peculiaridade fez do Piauí uma situação sui generis, não sendo uma coisa nem outra. Daí nascendo as condições para a formação política do Piauí como unidade autônoma.

Por outro lado, a hidrografia fez da bacia do rio Parnaíba uma zona de transição, cujos vales ribeirinhos interligavam as duas grandes bacias hidrográficas do norte-nordeste: São Francisco e Araguaia-Tocantins. De ambos os lados, as nascentes se avizinham, de forma que desde tempos imemoriais foi a bacia do rio Parnaíba um corredor de migrações entre as tribos nativas que migravam do sertão nordestino ao Planalto Central e vale amazônico. Foi na trilha dos índios que entraram os bandeirantes paulistas e agentes da Casa da Torre, por caminhos seculares e que acompanhavam os vales ribeirinhos.

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Mais tarde, para conhecer o território, foram elaboradas as cartas geográficas, merecendo referência a de Galluzi. Esses engenheiros e cartógrafos oriundos da Itália, Alemanha e Áustria, sob a orientação do Marquês de Pombal, fizeram detalhado levantamento cartográfico e construíram fortes no vale amazônico.

No governo de Carlos César Burlamaqui, esse governante estudou essas cartas geográficas, mandou fazer ajustes, levantou planta do rio Parnaíba e concebeu um plano de defesa militar em que Oeiras seria o centro estratégico de comunicações gerais da colônia com o norte, nordeste e centro-oeste.

Esse plano foi apresentado em 5 de agosto de 1808, ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (conde de Linhares). Era o contexto das guerras napoleônicas e prevenções contra a França. Em resposta a esse arrojado plano, assim respondeu aquela autoridade, ao governador, em 9 de novembro do mesmo ano:

 

“Pareceu muito interessante a S.A.R. o ofício, que Vossa Mercê me dirigiu na mesma data de 5 de agosto sobre poder ser Oeiras, capital dessa capitania, o centro geral de comunicação da maior parte das capitanias do Brasil; e S.A.R ordena que Vossa Mercê dê maior extensão ao mesmo Plano, fazendo ver as comunicações até lugares marcados das outras capitanias, especificando as distâncias dos lugares de trânsito, e os dias de marcha com maior individuação possível, pois S.A.R deseja ou em todo, ou em parte, aproveitar as suas luminosas ideias, posto que sobre a comunicação desta cidade com o Pará, parece que a estabelecida por Goiás, descendo depois o Araguaia e Tocantins, seja na realidade muito superior”[6].

Portanto, foi com base nesse plano estratégico de Burlamaqui, devidamente discutido, estudado e guardado pelo ministério da Guerra de Portugal, que foi enviado para Oeiras o experiente major João José da Cunha Fidié; para dar combate no Piauí e nas capitanias vizinhas. Esse plano de defesa estava guardado em segredo pelo governo lusitano. Foi posto em ação na Guerra da Independência. Para Portugal, Oeiras se prestava para centro militar de comunicações e defesa do norte da colônia. Pelo termo de Parnaguá, poderiam alcançar o rio Tocantins e subir para Goiás ou descer para o Pará.

Desde sempre, São Luís e Belém transacionavam diretamente com Lisboa, sem interferência do Rio de Janeiro. Os ventos e correntes marítimas daquele litoral assim permitiam, dificultando a navegação em sentido contrário. Dividir, pois, a colônia, era um projeto plausível.  Não contavam, porém, com a tenacidade do sertanejo e seu desejo de permanecerem ligados aos irmãos do sul e sudeste. A bravura que demonstraram no campo de batalha, deixou os portugueses atônitos.

Por fim, em Caxias, Fidié rendeu-se em 27 de julho de 1823, depois de resistir a um cerco de cem dias. Sobre esse episódio, disse ele:

“Resisti até o último apuro, tirando do campo inimigo, à ponta da baioneta, os víveres precisos para sustentar a minha tropa, cheia de fadiga, ‘e reduzida às circunstâncias mais penosas, até que certo de que não podia ser socorrido’, e não podendo fazer mais nada honroso, capitulei”[7].

Foi preso e conduzido a Oeiras, de onde passou às cidades da Bahia e Rio de Janeiro. Mais tarde, foi enviado para Lisboa, onde continuou sua carreira militar, reformado no posto de brigadeiro.

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Sobre a luta, o que temos a dizer?

Em Jenipapo, poderíamos ter tido melhor sorte, caso a Junta de Governo tivesse visto o major Fidié, como o inimigo a ser batido. Ao contrário, tinha verdadeira fixação no governo maranhense, que era pró-lusitano, esperando o inimigo na fronteira de além-Parnaíba. Para isso, dispôs as melhores forças de que contava, distribuindo-as nas passagens daquele rio. Por essa razão, nenhuma delas combateu em Jenipapo. De toda forma, é mais fácil fazer a análise depois do fato consumado.

Também, o comandante Luís Rodrigues Chaves foi severamente criticado pelo doutor João Cândido de Deus e Silva, que o acusou de inabilidade e incúria, por ter enfrentado o poderoso inimigo em “batalha campal em campo raso”, quando deveria tê-lo cansado em “continuadas guerrilhas”. Aliás, esse foi o método utilizado pelos balaios alguns anos depois, nunca enfrentando os legalistas em campo aberto. De fato, a nós também parece ter sido um erro estratégico enfrentar as forças portuguesas em campo aberto. Temos em mente o exemplo de Leônidas, general ateniense, que usou o estreito e sinuoso desfiladeiro de Termópilas para, com poucos soldados, fazer frente ao numeroso exército persa.

Seja como for, o aço da nacionalidade falou mais alto e o destemor daqueles homens livres e idealistas, contagiou a outros e infundiu respeito entre o inimigo adventício. Fidié, logo raciocinou que a gente piauiense não mais suportaria o jugo português. Como dominar um povo inteiro, que não mais aceitava aquela dominação estrangeira? E o vigor no campo de luta? Somente lhes restou a retirada para Caxias, na vã espera de reforços do reino, e o fim já demonstrado. Deu o Piauí, seu tributo de sangue à independência da nação. Houve erros, desacertos, mas nunca covardia. Terminamos a nossa fala, inspirado em Clodoaldo Freitas:

Oh, Piauí, terra de vaqueiros, pastores e guerreiros! Quando a pátria te chama, aflita, nesses dias, nessas horas de transes fatais, sabes mostrar-te abnegado e valente. Em Jenipapo, se Fidié trinfou, tu, com ânimo varonil, ao morrer, garantiu que a pátria ficaria una e independente. A epopeia ali escrita com destemor, coragem, sangue, suor e lágrimas, nunca poderá ser desmerecida porque diz da determinação de nossos ancestrais e de sua luta para fazer parte do império, depois federação brasileira. A nós, só resta exaltar a glória daqueles guerreiros e continuar a luta, contra todos os obstáculos que se anteponham, para que essa nação continue hoje e sempre, una, livre e independente. Muito Obrigado.

 


[1] Membro titular da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Conferência proferida em 16 de setembro de 2022 (sexta-feira), às 10 horas da manhã, na Academia Piauiense de Letras, em comemoração ao Bicentenário da Independência do Brasil.

[2] ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí. Coleção Bicentenário da Independência. Teresina: APL, 2022.

[3] O autor anota Joaquim Carvalho de Almeida, em lugar de José.

[4] FIDIÉ< João José da Cunha. Vária fortuna de um soldado português. 3ª Ed. Coleção Independência. Teresina: FUNDAPI, 2006.

[5] A Imprensa. 11.4.1885.

[6] AHU. ACL. CU 016. Cx. 30. D.1581.

[7] FIDIÉ, João José da Cunha. Vária fortuna de um soldado português. Coleção Independência 4. Teresina: FUNDAPI, 2006.