“Bastardos Inglórios”
Por Bráulio Tavares Em: 26/01/2010, às 19H49
Bráulio Tavares
O novo filme de Tarantino é, segundo descrição dele mesmo, um bang-bang italiano ambientado na Europa ocupada pelos nazistas. Modéstia de QT, que mistura meia dúzia de gêneros (como sempre) num coquetel que tem dois dedos disso, uma pitada daquilo, uma colher não-sei-do-quê. Em grande parte, principalmente, na segunda metade, o filme pertence àquele sub-gênero que linka guerra e espionagem: agentes infiltrados nas linhas inimigas tentando fazer-se passar pelos próprios inimigos. Quem não já viu 50 filmes assim, principalmente envolvendo nazistas? A cena do porão da taverna é um suspense exemplar, não o suspense intelectual e distanciado de Hitchcock, mas o suspense “tudo-agora-mesmo-pode-estar-por-um-segundo” de Sergio Leone ou de Peckinpah, onde as mortes são reais. Por outro lado, a cena da recepção antes da exibição do filme nazista, no final, com os Bastardos disfarçados de italianos, é uma mistura de Mel Brooks com Brian de Palma – tudo vai ficando ligeiramente over, distanciado, delirante, metalinguístico.
Tarantino é violento porque a gente sente que uma cena brutal, para ele, é como um gol. Se não tiver de vez em quando o filme acaba 0x0. Mas violência gráfica, explícita mesmo, acima do padrão, tem apenas na cena da ponte (os escalpos, a execução do nazista com bastão de beisebol), na cena de Brad Pitt interrogando a alemã ferida na maca, e na derradeira cena de todas (a marca de Caim). O resto são mortes a tiros, rajadas de metralhadoras, etc., o feijão-com-arroz de qualquer filme de guerra dos últimos 40 anos. Brad Pitt, que começa o filme alardeando um sadismo de arrepiar, durante o filme inteiro não dá um único tiro, um único murro. Afora sua habilidade com a faca, a única coisa que seu personagem mutila é o idioma de Walt Whitman.
No coquetel de gêneros que é o filme, não posso deixar de lembrar a todos que se trata, acima de tudo (embora isto só fique claro no final), de um filme de ficção científica, certamente o primeiro de Tarantino. Como sabem os aficionados, um dos sub-gêneros mais importantes da FC é a “História Alternativa”, em que a linha do Tempo que conhecemos é rompida e a História vira a esquina numa direção diferente. Grandes clássicos da FC são baseados em premissas desse tipo: e se o Sul tivesse ganho a Guerra da Secessão? Ver “Bring the Jubilee”, de Ward Moore. E se a Peste Negra, no século 14, tivesse exterminado 99% da humanidade? Ver “The Years of Rice and Salt”, de Kim Stanley Robinson. E se Hitler, derrotado na política, tivesse migrado para os EUA e virado ilustrador de pulp fiction? Ver “O Sonho de Ferro” de Norman Spinrad. E se os holandeses não tivessem sido expulsos de Pernambuco, e o Quilombo de Palmares tivesse se tornado uma nação independente? Ver “O Vampiro de Nova Holanda”, de Gerson Lodi-Ribeiro. O final apocalíptico e orgástico do filme de Tarantino cria um novo futuro, e o arremessa para essa galeria de clássicos.