Elmar Carvalho: Barras de minha adolescência
Em: 19/01/2021, às 11H32
[Elmar Carvalho - da Academia Piauiense de Letras]
Crônica memorialística dedicada ao professor Dílson Lages Monteiro, parente, amigo e confrade da APL, que me solicitou escrevesse sobre Salomão de Sá Furtado e sobre a Ilha dos Amores.
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Na minha infância, morando em Campo Maior, fui algumas vezes a Barras, no período de minhas férias escolares. Viajava num ônibus de cabine de madeira, chamado horário ou misto (este quando tinha a cabine dos passageiros e a carroceria para cargas). A estrada era de piçarra, cheia de catabilos ou costelas de vaca. Quando chegava no início da ladeira curva, eu avistava algumas nesgas da cidade, e logo depois a linda barragem e a ponte sobre o rio Marataoã.
Na agência, uns parentes me recebiam e me levavam para a localidade Ameixas, zona rural, a poucos quilômetros da cidade, onde ficaria hospedado com uns parentes de meu pai, dona Noca e o senhor João Cardoso. Não havia luz elétrica nesse local. Situava-se, salvo engano, onde fora a data Luiz de Sousa, perto de onde ficava a gleba de meu falecido avô João de Deus, onde corria, no meio da chapada, entre carrascos e buritis, um olho d’água perene, que ainda hoje existe.
Acostumado com as luzes, com os carros e o movimento da cidade, com os seus ruídos, músicas e brincadeiras, logo eu ficava muito triste e saudoso de meus pais. O canto grave de uma rolinha fogo-apagou, quase um cantochão, por razões misteriosas, me enchia a alma de tristeza e melancolia, sobretudo ao pôr-do-sol. Quando começava a anoitecer, era como uma prefiguração da morte, suponho; era como se tudo se fosse finando, se aniquilando... Eu chorava e pedia para voltar. Logo retornava a Campo Maior.
Adolescente, fui algumas vezes a Barras. Ficava hospedado na cidade, na casa de um primo de meu pai, Salomão de Sá Furtado, cuja casa ficava perto da de outro parente, Domingos Lucas. Bem perto de onde fora outrora o antigo cemitério da cidade, completamente demolido; sequer guardaram as cruzes e as lápides, muitos menos, claro, os ossos dos defuntos. Muitos haviam sido personalidades ilustres de Barras, e mesmo da História do Piauí. Em cima do velho campo-santo foram construídos residências e outros prédios, como se ele jamais tivesse existido.
Salomão, que fora vereador ou vice-prefeito de Barras, era um exímio telegrafista, mais precisamente um morsista, numa época em que o telégrafo era o meio mais importante e mais rápido de comunicação. Ele não precisava decifrar os enigmáticos sinais impressos numa fita de morse, compostos de traços e pontos, em diferentes combinações; com a sua afinada audição, ele decifrava e anotava o que o aparelho estava dizendo, em sua quase música/batuque, provocada pelo tamborilar nervoso da noz do dedo sobre a tecla única do morse. Tinha uma pequena biblioteca, o que era uma raridade na época.
Entre outros livros, possuía a coleção completa (ou quase) de Sherlock Holmes, da autoria de Conan Doyle, e vários outros sobre a história da Segunda Guerra Mundial, fora outros volumes. Para a realidade da época e da pequena urbe, possuía certa erudição. Tinha excelente redação e uma linda caligrafia, com letras desenhadas, como uma quase obra de arte. Poderia ser considerado um missivista. Meu pai lhe tinha muita admiração e estima, e sei que era verdadeira a recíproca.
No livro Vultos da História de Barras, de Wilson Carvalho Gonçalves, que foi amigo de meu pai, e posteriormente meu, consta que ele era filho de Joana Batista Oliveira Sá e Elpídio Furtado de Carvalho, este irmão de minha avó Joana Lina (ambos filhos de Isabel Lina e Miguel Furtado do Rego). Eram seus irmãos Constâncio de Sá Furtado (Beleza), Joaquim, Miguel, Luís, Alexandrina (Xandoca), José Lucas, Antônio e Francisca (Chiquita).
Ao lhe enviar o primeiro livro de que fui coautor, a coletânea mimeografada Galopando, ele me remeteu uma muito bem-feita carta, em que dizia antever que eu seria um grande ou importante poeta do Piauí. Não tivesse tido a generosidade de acrescentar o qualificativo, bem poderia ter sido também um profeta.
2
Em plena adolescência, aos 16 ou 17 anos, cheio de vigor, alegria e entusiasmo pela vida e pela poesia, fui passar uns dias na velha urbe das várias barras, acompanhado pelos amigos Zé Wilson e Zé Moura, um dos grandes craques do futebol campomaiorense e piauiense, que jogou no Caiçara e no Comercial, ambos também adolescentes. Nos hospedamos na casa de Salomão.
Perto da residência de nosso anfitrião, a uma distância de apenas três quarteirões, havia a mais afamada churrascaria da época, a Beira-Rio, pertencente a Antônio Moraes, mais conhecido como Antônio do Nena. Como seu nome não deixa dúvida, ficava à margem do belo Marataoã. Quase todo dia, perto das onze horas, nós íamos para lá. Pedíamos uma meiota de pinga (300 ml) em uma garrafa de Coca-Cola. Deixávamos o frasco meio mergulhado na água, e íamos tomar banho e deitar conversa fora.
Algumas vezes vinham umas garotas, bonitas é certo, mas que a nossa idade as fazia ainda mais bonitas, conversar conosco. Era uma leve paquera, que não chegou a ser namoro. Creio fossem naturais de Barras, mas estudavam em Teresina. De dentro d’água, eu lhes via os olhos, risonhos, cintilantes, a refletirem a luminosidade das ondulações do Marataoã. Gostaria que a vida lhes tenha sido leve e feliz. Muitas décadas depois, no apogeu de minha maturidade, no poema Barras das sete barras, eu recordei essa quadra idílica, ingênua e bucólica:
Terra de uns olhos fluidos,
feitos de mágoas, magia e garridice,
embebidos na ciganice das águas.
Buscávamos namoradas em diferentes locais da cidade, inclusive no Bairro Boa Vista, onde existia um clube social, e no do entorno da barragem, cujas margens, na época, formavam uma densa e verdejante floresta. Perto há o memorial de Alda, “a que morreu virgem, / na vertigem de um sonho / que num átimo se fez e desfez”, posto que faleceu no dia de suas núpcias, em acidente rodoviário, ao cair do cavalo e ser colhida por um ônibus, no retorno ao povoado em que morava. Ao invés de um préstito festivo, seguiu um cortejo fúnebre.
Na velha barragem tomávamos banho, e bebericávamos um pouco. Numa dessas excursões exploratórias, em companhia de um filho do senhor Chico Caixeiro, então residente em Teresina, fomos dar com os costados num salão de macumba, situado no final da Rua Grande, por trás de uma serraria.
Quando entabulávamos, no terreiro da “tenda”, uma animada conversa / início de paquera com duas ou três filhas sanguíneas da mãe-de-santo, e o atabaque atacava ritmado e frenético, a macumbeira apareceu com um cabo de vassoura, mais parecendo uma bruxa, e nos “cortou o barato”; nos expulsou, sob a alegação de que estávamos perturbando e desrespeitando o culto do terecô.
3
Nessa época a praça da Matriz era bem cuidada, muito limpa, muito linda. As copas dos arbustos e das árvores eram podadas em formas geométricas, simulando cubos, globos ou cones. Os jardins eram cheios de plantas ornamentais, e refertos de lindas flores.
Não sei se é efetivamente memória minha ou falsa memória, através das memórias e conversas de meus pais, mas me recordo ainda do Cristo Redentor, de braços abertos, no cimo do frontispício da colonial igreja de Nossa Senhora da Conceição, lamentavelmente demolida no início da década de 1960, como o fora antes o cemitério, como se desejassem passar uma borracha ou esponja no passado, nas memórias de um tempo mais glorioso, e talvez mais feliz. E relembro uma missa noturna, com a igreja muito iluminada por suntuosos lustres ou lampadários, de indescritível beleza, e o cheiro de incenso, provindo de turíbulos, agitados ao longe.
Perto da igreja passava o Marataoã, que em suas curvas caprichosas quase transforma a cidade numa ilha. Da margem esquerda do rio se descortinava a Ilha dos Amores. Eu a achava muito linda. Essa beleza para mim se tornava mais acentuada por causa de seu poético nome. Minha imaginação fervilhava, buscando a origem dessa denominação.
Sem dúvida, o epônimo me remetia aos Lusíadas de Luís Vaz de Camões, e eu imaginava a nossa pequena e bucólica Ilha dos Amores barrense povoada por pululantes e invisíveis ninfas e sátiros. Supunha que amores proibidos, interditos, ali podiam ter se realizado, sobretudo numa época em que as moças interioranas ainda se resguardavam virgens para o casamento.
Minha fértil imaginação levantava a hipótese de que nessa ilha alguns amantes, em amores e ardores adulterinos, ali se acasalavam. Para ali se dirigiam a nado ou em canoas, e se amavam, acobertados pelas árvores ou pela escuridão da noite. E desses amores interditos, proibidos, malditos, benditos provinha o seu lindo, idílico, lírico e épico nome: Ilha dos Amores.
Vontade tive de ir até essa ilha de meu encantamento e de minha adolescência, mas me faltou coragem para ir a nado, e me faltou a oportunidade de uma canoa e um bom canoeiro. O poeta, compositor e exímio violonista Francis Monte relatou que na sua juventude, em companhia de outros colegas, nadava até a ilha e desta continuava a nado para a outra margem, para a outra margem que sempre nos parece a mais bela, para furtar cajus dos “quintais abertos em pródiga dádiva”. Que pródiga dádiva que nada! Após a rápida colheita, voltavam às pressas, com medo de um tiro ardente de sal, desfechado por sorrateira espingarda.
Soube que nos anos 70, o senhor José de Deus Carcará instalou uma churrascaria na ilha. Para torná-la mais acessível, construiu uma passarela ou pinguela com talos de buriti. Mas não tive oportunidade de ir a Barras nessa época, de modo que também perdi a chance de visitar a ilha através dessa frágil, flexível e talvez bamboleante ponte.
Não tendo podido ir até essa encantadora Ilha dos Amores, de nome tão apropriado, creio, quanto mais que bonito, fui até ela através de meus versos:
Terra dos Governadores,
do desgoverno das dores
das ciliciadas paixões
deliciadas na Ilha dos Amores.
Ó Barras de minha adolescência, de meus devaneios, divagações, de minhas ingênuas ilusões, de minha saudade e da saudade de meu pai, dos meus ancestrais, de tudo que já tive e que não tenho mais, a ti todas as louvações e os oito últimos versos de meu poema citado e recitado:
Barras de risos e de ais
de sempre e de jamais.
Barras das sete barras
Barras dos sete punhais
de rios que se tecem pavios
e desvarios de réquiens
e exaltações, lembranças
e exalações ...