Eu tinha 14 anos e fui passar férias nas terras de meus tios, Lalu e Graziela, no vale do Piauí: Exu, São Benedito e Barra. Fazíamos com freqüência, eu e meu primo Hélio, naqueles dias inesquecíveis, a rota a cavalo até as fazendas de Chico Costa, Miramar e Santa Rita; nesta, havia um alambique, e o nome da cachaça era bem sugestivo: Segura a Queda.


      Ficamos arranchados na fazenda São Benedito: em frente da casa, estendia-se um lindo tapete de roças; do lado direito, corria mansamente o rio e, por trás dela, erguia-se misteriosa a chapada densa.


      No período em que estive lá, tive muitas alegrias e deslumbramentos, mas também passei por momentos apreensivos, como os que relato a seguir.


      Entardecia e a noite começava a abrir o manto negro sobre as cousas. O Hélio, eu e três rapazes da fazenda, filhos do morador, entramos na chapada à cata de mel de abelha italiana, conhecida na região por oropa. Levávamos querosene, fósforos, vasilhas, facas e um machado. Acompanhavam-nos três cachorros de caça.


      A mata estava escura, apesar da lua cheia: as copas das árvores impediam a luz do luar, parecíamos fantasmas em fila caminhando na picada que ia sendo aberta a facão. Fomos entrando, entrando, mato adentro, conversando, contando piadas... O trac-trac das lâminas quebrando galhos de pau... E nada de enxu, de colmeia! Estávamos perdidos! Fiquei apavorado, mas procurei não aparentar medo, mesmo sendo o mais novo da turma.


      Chegamos a uma pequena clareira. A noite já se encorpara e a lua estava alta. Ângelo, o mais experiente do grupo, mandou que ficássemos ali esperando que ele ia tentar achar o caminho de volta. Os cães o seguiram. Sentamos na areia fria. O tempo passava e ele não voltava. Até que escutamos fracamente, de muito longe, latidos e gritos. Pusemos o ouvido no chão para melhor captar a direção dos sons. Levantamo-nos e apressamos o passo no rumo da zoada. Os latidos e os gritos foram ficando mais nítidos. Ouvi claramente:


      - Cheeeega! A onça vai comer os cachorros!


      Não foi só medo o que senti: foi pânico. Olhei para o Hélio, mas não deu pra saber o que ele sentiu. Meu primo era para mim um modelo a seguir: montava bem, sabia atirar de espingarda e demonstrava coragem e desembaraço com as coisas do campo.


      Raimundo e João Neto empunharam os facões e correram decididos para o local do barulho. Meu primo e eu nos entreolhamos. O que tínhamos a fazer? Só nos restava seguí-los. Carregando o machado, eu era o último da fila. Se fosse preciso usá-lo talvez não tivesse forças para fazê-lo, tal o pavor que se apossara de mim.


      A zoada aumentava: os latidos, os gritos... Ouvíamos uns fungados medonhos, umas pancadas ocas. Havia luta dentro de uma moita. Paramos e pudemos ver – um pouco de sombra, um pouco da luz do luar – um enorme tamanduá encurralado entre os cachorros e o Ângelo, que segurava um pedaço de pau. O bicho ficava de pé, abria os braços para fincar nos seus atacantes as unhas curvas e grandes.


      Os outros rapazes se muniram de paus e entraram na luta. O Hélio ficou meio de lado. Eu me escorei temeroso numas moitas em volta, com o machado em punho. Estava mais aliviado por não ter dado de cara com uma onça.


      O tamanduá abraçou um dos cachorros e o sangrou com as unhas afiadas. O cão caiu gritando e, se torcendo no chão, foi se apagando aos poucos até parar morto. Os rapazes xingaram e com raiva bateram muito na cabeça do mambira, que acabou desabando perto da moita. Ainda vivo, meio tonto, se mexia, com os cachorros em cima mordendo-lhe o corpo cabeludo. O golpe de misericórdia foi dado pelo Ângelo, que sangrou seu coração com a ponta da faca.


      A apreensão dera lugar aos lamentos pela morte do cão. O lapicho era grande e pesado, não pudemos carregá-lo para a fazenda, nem a ele nem ao cão morto. Estávamos perdidos, tínhamos de achar o caminho de volta.


      Continuamos a marchar penosamente, abrindo picadas, se ferindo nas macambiras: quebrando pau aqui, saltando moita ali, espinhos nos pés, arranhões nas costas, cansaço, dor... Cada direção tomada, uma esperança se acendia. Mas logo descobríamos: não era aquela a saída, e vinha a decepção, o desânimo. Isto aconteceu várias vezes, e maus presságios já tomavam conta de mim.


      Até que, de tanto andar a esmo, demos com o tão almejado caminho. A lua pendia do outro lado do horizonte. A estrada de areia branca reluzia em frente aos nossos olhos maravilhados. Não dá para descrever a alegria que sentimos. Estávamos exaustos e nos estiramos na areia fria da madrugada. Gravei para sempre na memória aquela lua, aquela estrada branca, aquelas estrelas piscando... Só então me dei conta de que perdera os chinelos. Minhas canelas estavam inchadas, ensangüentadas, rasgadas pelos espinhos das juremas.


      Quando chegamos na fazenda, o dia amanhecia e o pessoal de lá se preparava para ir nos procurar; ia levar foguetes e um berrante pra zoar na mata.


      Depois que matamos a sede, deitamos no alpendre numas esteiras de palha de carnaúba. Da cozinha, vinha um bater de panelas. As mulheres colocavam no fogo um tatu para matar a nossa fome, que era muita. Ao meu lado, uns cochilavam, outros ressonavam. Não sei se dormi, se sonhei. Sei que estava feliz.