Autor à deriva
Em: 14/09/2010, às 16H14
Por Adriana Barsotti
As novas tecnologias digitais têm embaçado a discussão sobre o futuro da literatura. Confunde-se o destino do gênero com o dos livros impressos. Tal abordagem centra o foco nos suportes (no caso, os e-readers), envolvendo opiniões proféticas e geralmente apocalípticas sobre o fim dos livros impressos. Muito além deste debate, porém, a chamada ciberliteratura, ou literatura eletrônica, concebida para os meios digitais e cuja existência não pode prescindir deles, vem ganhando vida própria. Das várias questões que essa nova forma criativa levanta, o suporte talvez seja a mais irrelevante. A autoria, por outro lado, é uma das principais.
O que diferencia a ciberliteratura da literatura convencional não é o meio em que é publicada, como o computador e os e-readers. A singularidade das obras do gênero reside no fato de terem sido especificamente criadas para o formato digital, explorando todas as suas funcionalidades. Por isso, estão excluídas desse conceito obras originalmente criadas para o suporte impresso e que foram e vêm sendo publicadas por jovens autores na internet ou digitalizadas para serem vendidas em lojas virtuais de e-books. As obras da chamada ciberliteratura se valem de recursos que o impresso não comporta, como áudio, vídeo e programação, entre outros campos com os quais esse gênero interage. Portanto, não se trata de uma nova tecnologia de leitura. A ciberliteratura traz uma nova forma de narrar. E, entre as questões que embaralha, está a do papel do autor.
Na ficção interativa, por exemplo, um dos gêneros da ciberliteratura em que o público pode escolher caminhos diversos para o desenrolar das histórias, quem poderá ser chamado de autor? Esse privilégio continuará nas mãos dos escritores? Podemos considerar que a participação de amadores nas produções literárias cria obras coletivas ou eles apenas participam de um jogo com regras pré-definidas por seus autores? Ao que tudo indica, o escritor atravessa uma crise de identidade a partir do momento em que seu poder é posto em xeque pelas possibilidades trazidas pelas novas tecnologias. Diante das ferramentas interativas que permitem a participação do público, críticos, estudiosos e os próprios escritores oscilam entre a perplexidade, o pessimismo e a confiança, como mostram especialistas ouvidos nesta reportagem.
Novas regras para o jogo literário
Autora de "Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço" (Editora Unesp), a professora norte-americana Janet Murray é referência no campo da narrativa interativa. Convidada do 9 Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, que será realizado em outubro em São Paulo, ela relativiza o poder do autor.
— Autores continuam tendo controle sobre suas histórias, mas num nível diferente. Eles controlam as regras pelas quais os leitores podem se mover em seus romances e o que podem fazer dentro do universo ficcional criado por eles — afirma Murray, que começou lecionando no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e hoje é professora do Programa de Mídia Digital do Instituto de Tecnologia da Geórgia, em Atlanta.
Além da ficção interativa, em que leitores interagem com a história e determinam seus rumos, outros gêneros como o crowdsourcing, cuja premissa é a elaboração de conteúdo de maneira coletiva (geralmente via Twitter), ganham impulso. Ano passado, a BBC Audiobooks convidou o escritor Neil Gaiman para dar o pontapé inicial de um conto com uma frase de 140 caracteres, complementado pelos seguidores cadastrados no Twitter. Na esteira do fenômeno, a editora americana Penguin criou o projeto "A Million Penguins", que chamou de "exercício de escrita criativa colaborativa", também com base no Twitter. Todas as contribuições puderam ser editadas ou mesmo removidas pelos usuários.
Autores modernos já questionavam lugar do leitor
A leitura sempre esteve longe de ser uma atividade passiva. Há muito os teóricos consideram o papel do leitor nesse jogo: construindo narrativas alternativas, imaginando personagens, enfatizando tramas da história segundo seus interesses particulares e se utilizando de conhecimentos e crenças prévios para interpretar um texto. Os limites da narrativa tradicional já vinham sendo testados pelos autores antes mesmo dos meios digitais, como lembra Heloisa Buarque de Hollanda, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) e diretora da editora Aeroplano:
— O papel do leitor já é levado em conta há pelo menos 40 anos, desde Jorge Luis Borges e Ítalo Calvino, que geraram uma atitude menos convencional de leitura. Mas o autor legitima, dá valor à obra. Não há dúvida de que ele será preservado. É claro que o laboratório digital é fantástico para desafiar múltiplas posições de autores, mas ainda estamos tateando, inventando essa brincadeira — afirma Heloísa, que se preocupa com o fato de na ficção interativa vários desfechos serem possíveis dependendo das escolhas do público. — O fim é fundamental para o paradigma a que estamos acostumados. Sem ele, não sei como será a experiência literária. Não consigo me deliciar com romances digitais. Falta mais autor neles.
Pesquisadora do PACC e do Espaço Alexandria (Coppe) e coordenadora do curso de jornalismo da ECO-UFRJ, a professora Cristiane Costa deu início este ano à construção de um romance colaborativo como projeto de seu pós-doutorado. A história gira em torno de Alice, uma professora de literatura à beira dos 50 anos, recém-divorciada, e sua busca pelo amor ampliando seu universo de possibilidades no mundo virtual.
— É uma metáfora das chances que a literatura tem de encontrar novos caminhos ao se aproximar das novas mídias. E também da mudança de posição de um leitor que não aceita mais ficar esperando que as histórias se desenrolem passivamente à sua volta e decide estabelecer novos relacionamentos.
Participação do público ainda é vista com ressalvas
Os correspondentes de Cristiane na rede serão co-autores da obra, tendo suas identidades preservadas. Ela se apresenta nos sites como professora universitária, também com pseudônimo. Cristiane é uma entusiasta das novas estratégias narrativas digitais e não vê problema na redução do poder do autor:
— Quanto mais o leitor ganhar poder, menos poder terão autores, editoras e agentes.
Um dos organizadores da primeira mostra internacional de poesia feita em computador, em 1992, na Alemanha, o poeta brasileiro André Vallias (ao lado, em foto de divulgação), que já fez experiências com algoritmos para permutação de textos, critica os autores que utilizam aleatoriamente as novas ferramentas digitais, entre elas as que permitem a participação do público. Curador e participante da exposição Poiesis < poema entre pixel e programa >, em 2007, no Oi Futuro, ele partilha da visão de Janet Murray e defende que, por mais que a obra seja aberta, o autor ainda está no comando. Vallias faz um paralelo com o cinema, em que o diretor assina a obra, mas trabalha em equipe.
— Quando alguém afirma que um filme é de Fellini, é uma redução. Basta ver os créditos de um filme. Na minha obra, estabeleço as regras do jogo. Mas é claro que não tenho pleno domínio sobre ele. O público pode gerar situações inesperadas.
A participação do público, porém, é vista ainda com ressalvas até mesmo por aqueles que ousam experimentar. Entre eles, o poeta Fabrício Carpinejar, autor do livro "www.twitter.com/carpinejar" (Editora Bertrand Brasil), em que apresenta 416 máximas publicadas em sua conta no microblog.
— Partilho da concepção do corpo fechado. Vou escrever o início, o meio e o fim da obra, o que não me impede de interagir com os leitores. Ser influenciado é diferente de ser orientado pelo leitor. Os comentários em blogs incitaram os escritores a exercitar outras visões possíveis. Mas não posso abdicar da autoria. Do contrário, não estaremos mais falando de livro, mas de Playstation — ironiza.
É justamente a falta de fronteiras entre diversos campos — artes plásticas, literatura, música e, agora, os games — que a ciberliteratura expõe. A midiartista Giselle Beiguelman (ao lado, em foto de Eliária Andrade), professora da pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, acredita que os autores terão que se submeter a "um novo letramento".
— Não é preciso ser um programador de software, mas isso implica um novo aprendizado. Perdemos a relação antropocêntrica, mas a tecnologia tem que ser vista como uma via de mão dupla. Os computadores são máquinas que expandem nosso universo, abrem novas perspectivas. Não são como batedeiras e liquidificadores, que só temos que ligar e desligar — afirma Giselle, autora dos livros "Link-se" e "O livro depois do livro" (ambos pela editora Peirópolis).
A prevalecer a cena atual, podemos esperar um enfraquecimento contínuo dos limites entre autor e público. Resta saber que papéis cada um desempenhará ou se ainda será possível distingui-los no futuro.
Publicado originalmente no Caderno Prosa e Verso - O Globo em 04.09.2010.