Autorretrato de 23/04/2020
Autorretrato de 23/04/2020

 

AUTOENTREVISTA

 

“Eu sou aquele

que jogou roleta

russa com o tambor

cheio de balas e

apostou contra a

sorte”  

 

(As respostas são montagens de textos da autoria de Elmar Carvalho, entrevistado/entrevistador.)

 

P – Quem é Elmar Carvalho?

 

R – Eu sou um homem, diante do qual, curvo como um servo capacho eu tiro meu chapéu, que sequer tenho. Eu sou um homem que rema no seco contra a corrente das águas; um homem que usa a gravata como se fora um baraço; um homem que escreve certo por linhas tortas; um homem que sobe e teima contra a lei da gravidade. Sou aquele que aprendeu a pecar para ter a humildade de não ter uma virtude e jogou roleta russa com o tambor cheio de balas e apostou contra a sorte. Eu sou aquele que lutou para não ser.

 

P – Qual o seu signo?

 

R – Sou do signo de Carneiro, mas meu coração é um Touro indomável. No meu sangue corre a fúria de Leão. Entre uma Virgem e duas Gêmeas meu coração bala Balança. Sou um Câncer nos chifres de Capricórnio. Sou Peixes libertário sem o cárcere de um Aquário. Sou Sagitário armado de arco e flecha. A flecha é uma cauda de Escorpião.

 

P – Que temos a ver com os anjos?

 

R – Pergunto eu: que temos a ver com o sexo antisséptico dos inatingíveis e intangíveis anjos das hostes celestiais? Que temos a ver com os anjos machos e fêmeas de falos decepados e de vaginas obturadas? A ânsia por asas e a sede de infinito.

 

P – Como você se sente na qualidade de poeta?

 

R – Sinto-me um lobo solitário e maldito das estepes, nas quais nunca estive, açoitado pelos estiletes do vento e do frio, uivando para a lua que jamais verei, porque para não a ver meus próprios olhos ceguei. Sinto-me um cão danado, condenado por si mesmo a uma eternidade de trabalho forçado. Sou um judeu errante e sem remissão, fugindo sempre de si mesmo, por sobre desertos de areia e de gelo. Sou um poeta maldito até a infinita geração e um cosmopolita proscrito das fronteiras do tudo e do nada.

 

P – Para você o que é um verdadeiro poeta?

 

R – É um Prometeu acorrentado, dilacerado pelas aves agourentas e de rapinas, que saíram de seu cérebro, caldeirão vulcânico, em contínua erupção, a vomitar monstros e fantasmas de milhares de membros e cabeças.

 

 

P – Como é o coração de um poeta?

 

R – É uma moeda de várias faces, mas de um só sentimento, o amor. É uma moenda por onde escorrem sentimentos e emoções. Pedra mó, pedra moenda, pedra moendo e remoendo dores e angústias em seu batuque, puro silêncio. É uma catedral cheia de colunas e fantasmas, onde os sinos repicam sem sineiros, no triste chamado sem resposta. É um saco de pancadas e é um tapete persa, muitas vezes pisoteado e tripudiado por frívolas mulheres. É uma bomba-incendiária, mas muitas vezes serve de bobo da corte para os fúteis e vulgares.

 

P – Como você sente o tempo passado?

 

R – O tempo perdido inverte a rota da ampulheta e retorna intacto, como se jamais deixasse de ter existido. O tempo se embaralha sem passado, sem futuro e sem presente, e as recordações comovem tanto, que a própria alma de tanto sentir não se sente e evola para um tempo sepulto pela areia da ampulheta. A memória é uma lâmina de desassossego, cornucópia insana e insaciável, a jorrar o passado, que não morre nunca, sempre ressuscitado no eterno regresso a nós mesmos. O passado, poderoso e renitente, retorna e continua vívido e presente, se contorcendo, se retorcendo e se reacontecendo. Ah, as carnes pulsantes de um passado sempre lembrado...

 

P – Você é um ególatra?

 

R – Não sei. Talvez. Talvez, não. Eu, vendo a minha imagem refletida no espelho não mágico de meu quarto, curvo-me a mim mesmo, como um eunuco do harém perante o sultão. E aquela imagem, curva ante mim, é a minha maior homenagem, que me presto. Eu me aproximo do espelho, até que a minha imagem egocêntrica seja projetada no infinito.

 

P – Como você se sente no mundo?

 

R – Preso no ventre estreito do universo tenho um acesso de claustrofobia. Teimoso como um joão-teimoso, nasci prematuramente e morrerei depois da hora. Guiado por cego e conversando com surdo-mudo, fui tachado de débil mental. Mas isto é um eufemismo, eu sou mesmo é um doido varrido, por força da necessidade. Além de tudo, sou triste. Mas eu vejo a tristeza como lágrimas nos olhos do diabo.

 

P – Quais são os seus mais constantes sentimentos?

 

R – Só o tédio absoluto, o vazio total, a negação completa eu sinto sempre. Sempre a falta de algo. Sempre o algo inalcançável. Sempre a louca procura do tesouro perdido, da pedra filosofal inexistente. Sempre a eterna falta de inspiração para a eterna poesia nunca feita. Sempre a mesma falta de amor. Sempre o mesmo amor, velho e tedioso. Sempre o mesmo tédio cansado. Sempre, sempre, sempre o mesmo sempre de desilusão.

 

P – Você se sente limitado pelo tempo e pelo espaço?

 

R – Superando a relatividade do tempo e do espaço, quero não estar ao mesmo tempo no tempo e no espaço. Indo além da barreira do tempo e do espaço, eu galguei o infinito ao ficar infinitamente pequeno. Projetando-me além do tempo e do espaço, eu vi o caos do nada. Perdido no tempo parado e no espaço desfeito, vi sangue azuis, cobras multicores, lagartas de fogo e outras alucinações girando vertiginosamente em apocalíptica coreografia. E eu para sempre fiquei perdido no tempo e no espaço perdidos em vão.

 

P – Poeta, você se sente limitado pela carne, pelo seu corpo?

 

R – Sua pergunta me deixa duas lágrimas de pedra nos olhos de vidro e uma tristeza infinita na alma de cristal. O pensamento voa além do infinito e o corpo inerte fica querendo voar, com a vontade imensa de alcançar a realização total de não ter desejos. A matemática me enlouquece: por isto meu pensamento salta de mais infinito a menos infinito e explora as amplidões do universo, enquanto meus olhos vidrados fitam a álgebra sem vê-la. E a minha abstração me leva ao infinito que meu corpo me nega.

 

P – Qual o seu objetivo maior, na arte e na vida?

 

R – Eu busco as mais loucas sinestesias em minha mente alucinada, onde as cores aromáticas se agregam a sons macios, misturados com aromas térmicos.

 

P – Um bom poeta é um pouco louco, ou não?

 

R – A loucura vem do cosmo, em taças de cristal com sangue, em aortas com água, na alucinação total de um homem que se diz lúcido. Na loucura, de repente, eu levito e me deixo transportar em êxtase ao país dos mortos-vivos e lá eu vejo todos os mortos e todos os vivos como simples mortos-vivos. Depois, eu me sinto preso em todos os extremos do universo e sinto que conquistei a liberdade cósmica, pregado no infinito e na loucura, na loucura que me adoece e me cura.

 

P – Você já buscou o transcendentalismo e o poder?

 

R – No desejo louco de ser transcendental eu abri minha alma para o cosmo e absorvi suas forças com a ânsia de um asmático. Sem ter uma cova onde cair morto, eu me tornei o rei falido desta província global.

 

P – Como tem sido a sua trajetória e a sua estrada poética?

 

R – Minha estrada é a esteira de luz que o sol traça no mar. Meu arco-do-triunfo é o arco-íris que o sol pinta no céu. Meu louro é o pentelho dourado que cobre a nudez das louras bonitas. Então eu, laureado com a pubescência de ouro, percorro a estrada de luz do sol no mar, passo por baixo do arco-íris do triunfo, poeta predestinado que se venceu a si mesmo, nos desafios e nos “repentes” que travei comigo mesmo.

 

P – Como você desejaria projetar uma poesia?

 

R – Abrindo meu ventre como uma rosa de carne e de suas vísceras multicores projetar uma poesia feita de flores e de fezes. Desejo cortar meu corpo e retalhar minha alma, para fazer uma poesia de matéria e de espírito e morrer na última palavra do último verso por nascer. Quero drenar minhas veias e com meu sangue regar um poema canibal que não fale de morte, e escrever a obra-prima com o sangue da alma.

 

P – Você se sente um vencedor ou um perdedor?

 

R – Náufrago de uma tempestade em copo d’água, escuto o canto da desgraça como um chamado de sereia. Pregado numa cruz invisível, de cabeça para baixo, tenho os braços fechados em sinal de protesto. Herói morto de um sonho desfeito, tenho como epitáfio a solidão e o esquecimento.

 

P – Você se considera um anjo ou demônio?

 

R – Cheio de ódio e de amor, a sorver taças e mais taças de bebida balsâmica e malsã, nos bordéis de Eros, nos templos de Pã e nos palácios dourados de Mefisto, onde sucumbo e resisto, no meio de mentira e desengano, fui Satã, fui Cristo, fui Humano.

 

P – Você ainda procura mais alguma coisa ou anda à procura de coisa nenhuma?

 

R – Eu nada procuro porque meus olhos foram jogados ao acaso como pedaços de espelho quebrado; meus cabelos arrancados flutuam como cabelos do vento; minhas mãos decepadas acenam em vão e em vão apertam coisa nenhuma; minha cabeça foi atirada numa lata de lixo onde o lixo era ela; minhas células foram espalhadas por uma tempestade que partiu de mim. Por fim, o meu corpo sem cabeça, como o farmacêutico de Ampurdan, anda à procura de coisa nenhuma.

 

P – Você almeja o infinitamente grande ou o infinitamente pequeno?

 

R – O infinitamente grande tende ao tudo. O infinitamente pequeno tende ao nada. Estes dois extremos se tocam. Em Deus.

 

P – O nada ou o tudo?

 

R – Se o tudo veio do nada, o nada então seria o tudo, e a esse deus-nada eu tiraria o meu chapéu, que não tenho, mas tiraria. Mas o nada não cria nada, porque o nada é nada e nada somado com nada é nada e multiplicado por nada é nada.

 

P – A ambição demasiada pode virar carvão?

 

R – A sede de poder e de infinito foi tão grande que as asas dos anjos cresceram tanto e tanto pesaram que esses entes alados não mais voaram.

 

P – Você tem muitas recordações?

 

R – As recordações dão e são vida. Recordações de becos escuros, sem saída, de amores, hoje boleros, bolores em flores. Ilusões perdidas, que se fazem dores na florida ferida da saudade. Lembranças de drible esquecido, de gol frustrado e acontecido, de um jogo que nunca termina, numa malsinada sina sinuosa. Evocações de lágrimas caudalosas, incontidas, vertidas das vertentes do peito, porto sem tino e sem destino, feito somente de desatino. Recordações de fantasmas que já nos abandonaram, de amigos mortos que nos acompanham cada vez mais vivos, tudo oriundo dos porões escavados nos subterrâneos dos sobrados – subterfúgios e refúgios da memória.

 

P – Você ainda tem ilusões?

 

R – Desmanchei com minhas mãos que os criara os deuses em que cria.

 

P – Como é a sua luta com as palavras?

 

R – As meadas e as palavras são labirintos e teias. Nelas os poetas se elevam; nelas as moscas se enleiam e se debatem em vão. Os poetas são. As moscas, não.