Há um ano, em 28.11.22, falecia Assis Brasil.
Há um ano, em 28.11.22, falecia Assis Brasil.

Dílson Lages Monteiro – Professor

Especial para Entretextos

 

Na quadra 04, jazigo 06, no cemitério Jardim da ressureição, em Teresina-PI, silencia em matéria física, para todo o sempre, o fenômeno maior da prosa ficcional do Piauí de nossa história literária. Nele, a literatura responde por um nome: missão. Nele, literatura e existência se somam e se confundem. Nele, a arte literária e todos os afazeres ligados a ela flanam acima de quaisquer objetivos. A tal ponto que, ironicamente, escreveu: “A vida não é real”. Título, a propósito, de uma novela publicada originalmente em 1975 e traduzida para o espanhol e para o italiano.

Quer dizer-nos: a arte, acima de tudo. A arte é a vida.

A arte como missão a tal ponto que, em tudo que realizou, notabilizou-se pela maestria, conciliando a pesquisa teórica à inventividade linguístico-literária. Um escritor compromissado com as causas maiores de todos os tempos. Desprovido de vaidades. Desligado dos liames da fama e do glamour. Interessava-se, acima de tudo, pelo que perseguem obsessivamente os grandes, a dimensão estética da linguagem. Tinha Francisco de Assis Almeida Brasil, falecido em 28.11.2021, uma visão objetiva de que, como Nicolau Sevcenko, a “literatura não é uma ferramenta inerte com que engendre ideias ou fantasias somente para instrução ou deleite do público”. Para Sevcenko, como  para Assis Brasil, ela “É um ritual complexo que, se devidamente conduzido, tem o poder de construir e modelar simbolicamente o mundo".

A produtividade de sua criação encontra em profunda ternura a matriz do senso de humanidade, protesto, resistência e indignação que é gênese da visão de mundo incorporada ao seu texto.  Assim é que a escritura de Assis Brasil elege, prioritariamente, o compromisso social – e como consequência, a ética - como força motriz do ato criador. Luiza, Cremilda, Mundoca, para citarmos apenas três dos personagens mais famosos do parnaibano, edificam um modelo de literatura próprio da literatura contemporânea de ênfase social, a partir do qual procura construir formas de apropriações “comprometidas” em suas aspirações sociais com a ótica popular. Em seu engajamento, as condições psicológicas e sociais referendam processos similares aos notados em literatos como Graciliano Ramos, que também se valeu, como lembra Benjamim Abdala Júnior, “de estratégias discursivas associadas a um imaginário político de intervenção social”.

Sabemos todos, mas não é demais enfatizar, que raros escritores piauienses são tão completos e superiores como Assis Brasil. Conjugam-se em sua escrita, de igual modo, o crítico, o ensaísta, o historiador literário, o dicionarista e principalmente, o literato  de livros para a infância e para adultos, mas, nos últimos tempos, seu lugar de crítico literário tem sido redimensionado, despertando interesse de pesquisadores, entre os quais, a professora piauiense Francigelda Ribeiro, que realizou denso estudo de doutoramento sobre o lugar de Assis Brasil na crítica literária nacional.

Luciana Estagagno-Pichio, em sua História da Literatura Brasileira, situa Assis Brasil entre os autores referencias da crítica biográfica, exercida a partir de 1950, herdeira do new criticism no País, em tendência que a pesquisadora designa de biografia cultural, sob influência da interdisciplinaridade. Brasil, como crítico, figuraria, conforme a historiadora, ao lado de nomes como Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, Jamil Haddad, Eduardo Frieiro, José Aderaldo Castello, Ledo Ivo, Maria Luísa Ramos.

O pensamento crítico de Assis Brasil se delineia, para além dos diversos volumes individuais de crítica biográfico-temática sobre escritores como Drummond, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Guimaraes Rosa, Herberto Sales, Adonias Filho, Ledo Ivo. Para além da crítica biográfico-temática, mas não apartado dela, delineia-se em várias obras, na tentativa de construção de uma nova história do modernismo brasileiro. Partindo da premissa de que em meados da década de 1950, diante de uma crise no romance e na própria estética, ciente de que os modelos vigentes não mais davam cabo de categorizar a nova literatura, procura examinar os aspectos peculiares do que se produziu entre 1956 e 1971.

Estudando mais de 80 autores e mais de 200 obras, entre os quais, o piauiense Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho e seus romances, defende Assis Brasil a necessidade de se estabelecer novos nortes para a literatura de então, desprovida do enquadramento historiográfico das 3 gerações modernistas (1922, 1930 e 1945). Nasce daí História Crítica da Literatura Brasileira – A Nova Literatura, um rico painel da literatura de então em 4 volumes, agrupados por gêneros e publicados em 1973, em edição conjunta Editora Americana/Instituto Nacional do Livro: I - o romance, II – a poesia, III – o conto, IV – a crítica.

A militância na crítica literária ganha força em um de seus mais bem-sucedidos livros de ensaios: A técnica da ficção moderna (Nórdica/Instituto Nacional do Livro, 1982). Nele, figuram 75 estudos que com mais propriedade resumem seu pensamento estético. Estuda autores brasileiros e estrangeiros e particularidades da historiografia e da teoria literária. Não bastasse esse rico passeio que oferta aos leitores, empreende ainda um projeto pioneiro: A Coleção de Antologias da Poesia Brasileira, compreendendo diversos estados, entre os quais o amado Piauí.

Publica, ainda, Assis Brasil, entre clássicos de circulação, influenciadores do pensamento de estudiosos e criadores de ficção, Faulkner e a técnica do romance (Leitura, Rio, 1964) e o Dicionário Prático da Literatura Brasileira (Tecnoprint, Rio, 1979). Este referenciado em diversos livros didáticos, além de em centenas de dissertações de mestrado e em teses de doutoramento. 

Transcorrido um ano do desaparecimento físico de Assis Brasil, o Piauí tem “dever moral” de relembrar seu legado para a cultura brasileira. Um escritor de todos os tempos, que além de tornar o regional universal, encantando gerações de todas as idades nos quatro cantos do País, fez-se um dos grandes críticos literários do século XX. Mais que um quadro na parede, mais que livros nas estantes, Francisco de Assis Almeida Brasil é o sol da grandeza de Parnaíba, a cidade natal, e do Piauí brilhando para sempre, rio abaixo, rio arriba. Viva a memória permanente de Assis Brasil! Viva!