Assis Brasil copiou Parnaíba (I)

[José Maria Vasconcelos]

Dediquei-me ao magistério, a partir do primeiro ano de faculdade. Jovem e idealista, anos 70, arrebentava em escolas famosas de Teresina, entusiasmado, estilo diferente de lecionar, sempre de pé, inferniza estudantes, estimulando-os à prática da redação em tempo real, em praças públicas e indústrias. Exigia exposição oral das tarefas, frente aos colegas, em sala. Nada de enrolar com decorebas e cópias de terceiros. Estimulava-os à pesquisa, ao exercício da oratória, ao prazer de ler escritores e articulistas consagrados, a fim de escrever corretamente, imitando-os. Eu não era de reprová-los.

Mexia-lhes a emoção ao interpretar, por exemplo, VOZES D'ÁFRICA, Castro Alves. Umedeciam-lhes os olhos. Ou "PORQUE HOJE É SÁBADO", soneto de Vinícius de Morais, que causou celeuma nas freiras do Sagrado Coração de Jesus, pela escolha irreverente:"Bares estão cheios de homens vazios, porque hoje é sábado".

    Na época, devorei quatro romances(Tetralogia Piauiense) do parnaibano Assis Brasil, consagrado e premiado. Apreciava o talento do romancista  retratando a cidade natal. Personagens reais dos romances perambulavam em conhecidas ruas, no  Cabaré Salão Azul, na pantanosa e miserável Quarenta, na Praça da Graça, no Cine Éden, no porto do Rio Parnaíba, nos prostíbulos à beira do cais, à beira da vida, no passado próspero, cujas cicatrizes de decadência ainda se conservam nos casarões e armazéns abandonados. Eu me sentia regressar à simpática e acolhedora cidade, onde residira, seminarista, no Convento de São Sebastião, por dois anos.

     Afoito e determinado, convidei o escritor e acadêmico Francisco Miguel de Moura para conhecermos, pessoalmente, Assis Brasil, no Rio. E conseguimos. Afastado, há anos, do Piauí, aceitou-nos o convite para visitar Teresina. Jornalista Deoclécio Dantas, dias depois, noticiou na Rádio Pioneira, e, por telefone, no ar, do Rio, Assis Brasil desmentiu, deselegantemente, nosso convite. E não veio. Melhor, pois notícias piores vinham de Parnaíba contra o escritor.

     Lendo BEIRA RIO, BEIRA VIDA, A FILHA DO MEIO QUILO, SALTO DO CAVALO COBRIDOR e PACAMÃO, dirigi-me a Parnaíba, com máquina fotográfica a tiracolo. Banquei jornalista investigativo. Entrevistei personagens, de quem eu tinha certeza de estarem inseridas nos romance como elementos de ficção. O escritor afirmara-me que eram. E não eram. Nomes, sobrenomes, passagens biográficas que coincidiam com as dos enredos da ficção, que serão comprovados nesta e outra crônica.

     Juntei fotografias e conversas com as personagens, ainda vivas, e publiquei modesto livro, ASSIS BRASIL E SUA OBRA, em 1978. Apenas uma edição de mil exemplares, esgotada em poucos dias. Recebo convites para reeditá-lo, mas negligência não me deixa ganhar dinheiro.

      Darcy Mavinier, personagem em BEIRA RIO, BEIRA VIDA e PACAMÃO, encontrei-o em Parnaíba, depois passeamos de carro, aparece assim: "Esse Darcy... depois que andou por tudo que era casa de rapariga e perdeu a farda, casou mesmo com uma daqui. Uma prima. Até bonita a danada...Nunca mais deu por essas bandas do cais... Gastava dinheiro do pai, da mãe e da avó... chegava em casa de madrugada, se agarrando pelos postes...tinha um anjo da guarda, um menino feio que foi criado por ele - diziam que o único serviço do Pacamão era limpar os vômitos de Darcy...vivia no Salão Azul... desgraçado farrista atrás da filha da Maria Brandão... tinha vício por menina... minha mãe é quem sabia de tudo."  Darcy, realmente, estudara na escola militar de Realengo, no Rio. As reticências são minhas para abreviação.

   Darcy Mavinier, osso e carne, residia, em 78, na Rua Marquês de Herval, próximo à Praça Sto. Antônio. Ajudou-me a encontrar outras pessoas retratadas pelo romancista como ficcionais. Para Darcy, "tudo não passou de pura infâmia". Assis Brasil nascera e vivera a infância na casa de número 487, Rua Francisco Correia, a poucos metros da residência dos Mavinier.

   Darcy e outros cidadãos de Parnaíba identificados nos romances relataram mágoas que, hoje, esbarrariam em ações judiciais. Concluí por que razões o premiado escritor de projeção nacional desistira de visitar o Piauí, em 1978.