Quando me lancei, três anos atrás, na missão de escrever a primeira biografia do extraordinário Mário de Andrade, ainda em andamento, preferi esquecer o Código Civil, Roberto Carlos e sua cruzada obscurantista. Sempre houve proibição parcial ou total de livros no mundo, em qualquer país, por motivos religiosos, políticos e morais. Até Harry Potter e a pedra filosofal foi proibido em alguns estados norte-americanos e queimado por grupos fundamentalistas no México sob a acusação de promover bruxaria.

Mas são situações excepcionais em democracias modernas. Não conheço nenhum Estado democrático contemporâneo que tenha uma aberração jurídico-cultural como o artigo 20 do nosso Código Civil, que impede até a comercialização de um livro sem autorização. Sabe-se que leis não significam necessariamente avanços e conquistas. Este é um exemplo de óbvio retrocesso.

Diante da intimidação e dificuldades permitidas pelo Código Civil, alguns autores de biografias anunciaram ter desistido de escrever livros do gênero. Mas a melhor atitude é resistir, insistir, não se curvar a essa legislação talibanesca, defendida por alguns músicos famosos. O principal argumento em jogo, o direito à privacidade, é uma conquista universal do mundo moderno, consagrado por lei na maioria dos países. Compreende-se que em seu nome, muitos políticos brasileiros apoiem a censura às biografias, por fazerem na vida pública o que fazem na privada... Mas o problema está muito além dessa dicotomia.

Essência do personagem

Desde o século 18, e especialmente a partir de meados do século 20, a vida privada é um importante ramo de pesquisa histórica praticada no mundo todo. Temas como vestuário, trabalho doméstico, tipos de alimentação, hábitos à mesa, higiene, a intimidade no quarto revelam costumes e valores de uma época. Portanto, historiadores brasileiros também são afetados pelas restrições atuais.

Ao invocar a privacidade para censurar o conteúdo de biografias, o grupo de artistas e alguns herdeiros de biografados já mortos querem, portanto, manipular uma parte da história cultural do Brasil, como se o legado de vidas públicas fosse um patrimônio particular. O caso de Gloria Perez, sempre citado pelos artistas, é uma apelação emocional descabida, pois não teve nada a ver com invasão de privacidade. A novelista impetrou uma ação cautelar para impedir a distribuição de um livro escrito pelo assassino da filha dela, contando seu relacionamento com a vítima e sua versão do crime, antes do julgamento. E felizmente o livro foi interditado.

O próprio conceito de privacidade é relativo. Pessoas públicas de qualquer área perdem o direito à privacidade absoluta, por conta da permanente visibilidade social de suas atividades. E a publicação, em livro, de uma informação íntima que seja comprovadamente verdadeira, já divulgada por outros meios ou, se inédita, que conste de arquivo público, não é tecnicamente invasão de privacidade. Os artistas da Procure Saber estão confundindo biografia com bisbilhotice de revistas de fofoca, às quais eles abrem prazerosamente suas casas para mostrar a beleza de seus móveis, decorações, piscinas, quartos. O trabalho dos biógrafos é outro: buscar a essência de seu personagem, com todas as suas contradições e complexidades. Entender isso é fundamental para se avançar na discussão.

Equívocos e distorções

Na raiz dessa controvérsia provinciana está a nossa falta de tradição no gênero biográfico. Ao contrário do mundo anglo-americano, no Brasil as biografias só tomaram impulso a partir de meados do século 20, com as obras de Edgard Cavalheiro, Raimundo de Menezes, Francisco de Assis Barbosa, Lúcia Miguel Pereira, Luiz Viana Filho, Raimundo Magalhães Júnior. Mas ainda demorou até a década de 1990 para esse gênero literário se consolidar no mercado editorial brasileiro.

Outro motivo histórico tem a ver com uma visão limitada em relação à importância dos livros e da educação para a evolução de uma sociedade. Essa visão remonta aos tempos coloniais, quando os portugueses e a Igreja Católica controlaram durante quase 300 anos a circulação de livros (e ideias) e subestimaram a educação. Enquanto os colonizadores espanhóis criaram já no século 16 as primeiras universidades (Peru, México, República Dominicana, Bolívia, Colômbia e Equador), no Brasil a primeira universidade (não faculdade) foi a USP, em 1934!

Esta situação é agravada por um puritanismo mal disfarçado e uma ânsia hipócrita de manter as aparências – daí as restrições moralistas e cafonas apresentadas por herdeiros de biografados e até por músicos que se dizem libertários. Talvez essa mentalidade esteja mudando, como indica o amplo repúdio da opinião pública à cruzada da Procure (não) Saber. Os biógrafos, por sua vez, sairão desta polêmica mais responsáveis, mais cuidadosos, e conscientes de que biografar pessoas vivas é uma tarefa mais complicada, sujeita a concessões e autocensura.

Mesmo numa narrativa despretensiosa e superficial, informações relacionadas à honra ou à dignidade devem ser comprovadas por mais de uma fonte, de preferência não oral. Geralmente, por cacoete jornalístico, biógrafos superestimam as fontes orais, quando na verdade o documento escrito ou audiovisual tem muito mais credibilidade porque a lembrança de fatos remotos é sempre uma versão passível de equívocos ou até de distorções deliberadas.



Jason Tércio é jornalista e autor de três biografias; atualmente escreve a biografia de Mário de Andrade

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa