Elmar Carvalho


Anita e Belinha


Após longos anos morando conosco, a Pantica resolveu retornar aos seus pagos. Decidiu voltar a conviver com seus pais e irmãos, na terra ribeirinha em que nasceu, chamada Várzea do Simão, à margem do Velho Monge. Com isso, terminou criando um problema para nossas duas pequeninas cadelas. A Belinha, que muito se achegou a ela, sofreu com sua partida, e, mais de mês depois, ainda a procura no quarto que ela ocupava, na esperança vã de que ela tenha regressado. É que ela dormia no mesmo quarto da Pantica. Diante da nova realidade, passou a dormir no quarto dos donos da casa, ou seja, no meu dormitório e da Fátima. Isso provocou uma enorme crise de ciúme na Anita, nossa cachorrinha menor e mais velha, que é muito voluntariosa e um tanto arreliada. Sem dúvida, agia em defesa do que julga ser seu território, seu espaço, por não querer dividi-lo com sua semelhante.

 

Belinha é uma cachorra tímida, humilde, acanhada, e não revidava às rebeldias da outra. Pelo contrário, recolhia-se aos recantos mais esconsos, inclusive debaixo da cama, que não eram os da predileção da adversária. Minha mulher trouxe a pequena “cama” da Belinha, de que esta tanto gosta. Porém, a Anita implicou com essa regalia, de forma injusta, pois nunca quis usar esse objeto. Belinha, em sua inteligência emocional, em sua mansidão e humildade, evitava deitar-se nessa caminha, embora lhe apreciasse o conforto e aconchego, para evitar confronto com sua belicosa semelhante.

 

Contudo, na vez em que Anita partiu para agredi-la, defendeu-se com altivez, e venceu a refrega, mordendo a sua oponente, e lhe fazendo verter sangue; mas continuou persistindo em sua política de boa vizinhança, em sua resistência pacífica, adornada com a virtude da tolerância, modéstia e bondade. Sim, perfeitamente, com essas virtudes, sim, pois sendo ela maior, mais ágil e mais nova, poderia vencer facilmente sua rival, mas prefere sempre evitar as contendas, afastando-se de Anita, procurando os espaços que esta nunca procura. Recebo as lições que essas duas cadelinhas me ensinam, e porfio em aplicá-las em minha vida.

 

Na semana passada eu conversava com minha mulher sobre a gratidão que se deve ter para com as pessoas que nos ajudaram, que já nos serviram de uma forma ou de outra, ainda que a tenhamos pago pelos seus préstimos. Ilustrei essa asserção com o teor de uma pequena nota que li na revista Veja. Trata-se do episódio em que uma cadela, juntamente com seus vários filhotes, foi salva do incêndio na casa em que morava por um bombeiro. Após tê-la colocado em segurança, assim como os seus rebentos, o homem retornou ao seu serviço, em busca de salvar outras pessoas e coisas do fogo, que devastava a residência. Do lugar em que ficara, a cadela não tirava os olhos do homem, acompanhando o seu perigoso e estafante mister.

 

Quando o bombeiro finalmente se desincumbiu de seus afazeres, ela foi até ele e o beijou carinhosamente, como se desejasse externar a sua mais profunda gratidão pelo que ele fizera por ela e por seus filhotes. Ora, se até uma cachorra, chamada por muitos de irracional, de bicho bruto, teve a elegância e a delicadeza desse belo gesto, por que o ser humano, que se diz feito à imagem e semelhança de Deus, não deveria ter a virtude da gratidão? Mas a verdade, lamentavelmente, é que muitos logo esquecem as dádivas e os favores recebidos. Talvez por isso, o imenso poeta Augusto dos Anjos, em seu igualmente descomunal pessimismo, vociferou no soneto Versos Íntimos, em que tratou da ingratidão: “Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!” Contudo, a essa admoestação melancólica do poeta, eu preferiria aconselhar o amor, a caridade e o perdão, recomendados por Cristo.