As duas cidades de João Cabral de Melo neto

Francisco Renato de Sousa - ensaista e professor

Por volta do ano de 1945 do século XX, surgia, na literatura brasileira, um grupo de escritores que seria denominado ´A geração de 45´. Grupo predominantemente formado por poetas, reivindicava uma volta à disciplina e à ordem, à reflexão e ao rigorismo, à busca da forma e do equilíbrio, uma volta às regras do verso, à poética e à retórica, em uma atitude estética de reação contra o clima desleixado da primeira fase modernista, como enfatiza Afrânio Coutinho (2001, p.765). No entanto, como o senso de modernidade está presente na geração, constitui uma terceira fase do modernismo. E complementa: ´A noção de artesanato poético voltou a imperar, no sentido de que a obra de arte tem que ser feita, segundo disciplinas internas´ (2001, p.765). João Cabral de Melo Neto, um dos expoentes dessa geração, é o motivo central dessa edição.

Inaugurando um novo modo de fazer poesia na literatura brasileira, sua atividade poética se esforça na tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade, que se apresentam como um desafio para a inteligência do poeta. Atitude que também o afasta da citada geração: ´Situado cronologicamente na geração de 45, dela se afasta por essa sua atitude diante do fazer poético, que diz NÃO a todo tipo de confessionalismo, exigindo um tipo de verso que obrigue o leitor a despertar, fazendo apelo à sua razão e inteligência.´, como frisa a poeta Marly Oliveira (apud MELO NETO, 1994, p.15).

Extrapolando o tempo de uma geração, a obra de João Cabral cobre um período que vai de 1940 a 1990, em cinqüenta anos de intensa atividade literária, que produziu poemas, autos e ensaios. E, na vasta gama de temas de sua poética, destacam-se as regiões da Andaluzia, na Espanha, e de Pernambuco, no Brasil, que se constituem em focos de inspiração do poeta. A presença dessas duas regiões é explícita nos versos do poema ´Autocrítica´ (1994, p.429): (Texto I)

O título sugere o que seria para o poeta uma reflexão de seu fazer poético. Nesta autocrítica, ele reflete, de forma excepcionalmente confessional, a importância que as duas regiões tiveram na sua poesia. A intensidade do sentimento é mostrada na ambigüidade criada pelo prefixo de negação ´des´ que mostra na ambivalência da conotação do verbo ´ferir´ o processo do seu fazer poético: a inspiração que o inquieta, ferindo-o, leva-o ao ato criativo, transformando-a em poesia, provocando a catarse, ´desferindo-o´. É o próprio João Cabral de Melo Neto que reflete sobre o processo de criação como forma cerebral, de transpiração maior que inspiração, das dificuldades de um ato íntimo, solitário e, também, sem testemunhas: ´É feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida se desejou conseguir´ (1994, p.723).
 

Nesse processo, o objeto retratado exerce uma forte influência sobre a linguagem. Nos últimos quatro versos do poema, o poeta sugere a distinção que cada paisagem exerceu sobre o seu olhar: a retratação da dura realidade nordestina pede uma contenção da subjetividade poética, dando lugar a uma visão mais objetiva. A vicejante paisagem espanhola o liberta da contenção e o inspira mais abertamente para a criação em verso da sua visão das duas regiões, tema mais recorrente em sua obra. A peculiaridade que cada região desperta no poeta é mais fortemente delineada no poema ´Duas Paisagens´(p.166), no qual, tratando de paisagens e figuras nordestinas e espanholas, mescla-as, porém, mantendo o direcionamento para a realidade díspare de ambas, como mostram estas estrofes: (Texto II) Essa distinção permeia o olhar poético de João Cabral sobre as duas cidades que são Leitmotive em sua obra: Recife e Sevilha.

A realidade da seca nordestina, além da influência sobre a contenção da forma, despertou no poeta uma visão mais comprometida com o aspecto social. Em ´Pregão turístico do Recife´(p.147), o eu lírico inicia o que, como sugere o título, seria uma descrição das belezas de uma das capitais mais visitadas por turistas no Brasil. Após a apresentação dos elementos que destacam o turismo recifense, a beleza natural e a arquitetura dos velhos sobrados de patrimônio histórico, o olhar se foca sobre o rio que corta a cidade e dá-se a inversão do tom do poema. Ao focalizar o Capibaribe, cartão-postal de Recife, como indigente de sangue e lama, o poeta chama a atenção para o povo sofrido que vive à sua margem, transferindo o olhar da paisagem representativa da cidade para aquela mais próxima da realidade, como mostram as estrofes finais do poema a seguir: (Texto III) .

João Cabral escreveu dois livros tendo o rio Capibaribe como tema central: O cão sem plumas e O rio. Neste, o próprio rio assume a voz narrativa, em primeira pessoa, e a descrição de uma paisagem natural e histórica é feita como um relato de viagem, em uma forma mais prosaica, em um ângulo de visão mais próximo do real, portanto, menos lírico. O rio descreve toda a sua trajetória desde a nascente até o desemboque no mar do Recife. Ao chegar à cidade, e antes do desemboque no mar, momento em que sua fala se perde, o rio (o poeta) conta da gente da qual se mostra confidente, descrevendo-a através de suas moradas que o margeiam. Eis ´O outro Recife´ (p.138): (Texto IV)

TEXTOS EM ANÁLISE

Texto I


Só duas coisas conseguiram

(des)feri-lo até a poesia:

o Pernambuco de onde veio

e o aonde foi, a Andaluzia.

Um, o vacinou do falar rico

e deu-lhe a outra, fêmea e viva,

desafio demente: em verso

dar a ver Sertão e Sevilha.

Texto II

D´ors em termos de mulher

(Teresa, La Ben Plantada)

descreveu da Catalunha

a lucidez sábia e clássica

e aquela sóbria harmonia,

aquela fácil medida

que, sem régua e sem compasso,

leva em si, funda e instintiva,

aprendida certamente

no ritmo feminino

de colinas e montanhas

que lá tem seios medidos.

Em termos de uma mulher

não se conta é Pernambuco:

é um estado masculino

e de ossos à mostra, duro

TEXTO III

E neste rio indigente,

sangue-lama que circula

entre cimento e esclerose

com sua marcha quase nula,

e na gente que se estagna

nas mucosas deste rio,

morrendo de apodrecer

vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem

é sempre a melhor medida.

Mais: que a medida do homem

Não é a morte mas a vida.

TEXTO IV

Casas de lama negra

há plantadas por essas ilhas

(na enchente da maré

elas navegam como ilhas);

casas de lama negra

daquela cidade anfíbia

que existe por debaixo

do Recife contado em Guias.