As dificuldades do inglês

{Bráulio Tavares]

O difícil de traduzir, no inglês, não são necessariamente os casos mais óbvios: arcaísmos, gírias, palavras obscuras, nomes de plantas ou insetos raros, etc.  A língua inglesa (como todas as outras) tem pequenas expressões que lhe são típicas, se a compararmos com a língua portuguesa-brasileira. 

Conectivos, locuções, frases feitas, expletivos, pequenos “modos de dizer” para os quais nem sempre temos um fiel correspondente semântico e sintático. É preciso às vezes fazer um circunlóquio, um “arrodeio”, desmontar a frase e remontá-la em outra ordem, para poder inserir um equivalente a essa expressãozinha complicada. 

“To be about (...)” Essa expressão inglesa tem dado origem à praga do “sobre”, nos últimos anos. As pessoas dizem: “Tocar música popular não é sobre técnica, é sobre sentimento”. Seria, claro, um possível equivalente a dizer em inglês “Playing popular music is not about technique, but about feeling”. 

Acontece que o “sobre” português-brasileiro não traduz todas as funções do “about” inglês-americano. Traduziria, corretamente, casos assim: “This book is about European history”, “este livro é sobre a história da Europa”porque neste caso o “about” indica “a respeito de”, “acerca de”. 

No outro exemplo, pode-se perfeitamente traduzir: “Tocar música popular não é uma questão de técnica, é uma questão de sentimento”. Fica muito mais claro e elegante, porque a expressão “é uma questão de“ já está em uso na língua e todo mundo entende sem estranheza. 

A palavra “about” tem uma latitude de uso muito maior, no inglês, do que a palavra “sobre” tem em português. Em inglês é como um canivete suíço que tem sacarrolha, lanterna, corta-unhas, abridor de garrafa, etc., enquanto a nossa modesta “sobre” é um canivete comum, com uma lâmina grande e uma pequena. Mais ou menos.  

No entanto, são palavras tão frequentes nas duas línguas, tão aparentemente óbvias, que para muita gente o mais simples é traduzir direto. Esse atalho de traduzir direto me incomoda, mas não me parece burrice nem estupidez. É um fenômeno natural no confronto entre duas línguas quaisquer. Havendo uma “primeira opção” que parece satisfazer o sentido, e já é comum na língua, dezenas de milhões de pessoas a usam, e dezenas de milhões entendem “marromeno” qual foi a intenção do uso. Algumas dezenas de milhares de sheldoncoopers como eu ficam com crise alérgica, mas o fato é que muitos desses pinos-quadrados-em-buracos-redondos acabam se instalando. 

Outros, não tem como argumentar. Digamos um diálogo em inglês. 
 

-- How much time does it take to go there?...

-- About forty minutes, if you go by car.

 
Duvido que alguém tentasse fazer uma tradução direta tipo:
 

-- Quanto tempo leva para chegar lá?

-- Sobre quarenta minutos, se for de carro.


O sentido não encaixa nem com muita boa vontade, como “parece” (parece!) se encaixar em algo como “O problema do Brasil não é sobre pobreza, é sobre desigualdade.” Teríamos que dizer, por exemplo: "Cerca de quarenta minutos, se for de carro". 

Dizemos hoje uma porção de coisas que deviam soar “mal traduzidas” aos ouvidos de Machado de Assis, mas a força bruta da quantidade se impôs, o uso se normalizou, os gramáticos se adaptaram. Com o tempo e o uso, pinos se arredondam e buracos se enquadram. 

Isto significa que devemos usar o “sobre” que todo mundo usa? Jamais!  É preciso continuar lutando. Como diziam Jorge Luís Borges e Ariano Suassuna, a gente não luta somente pela vitória: luta para mostrar qual é o lado certo. 

Certas coisas incomodam o ouvido porque a tradução direta, sem refletir, é uma tentativa de gambiarra linguística. Funciona, mas a gente sempre acha que tem alguma-coisa-faltando. 

Digamos que a gente leia, num livro traduzido, um diálogo assim: 
 

– Puxa vida... Você soube o que aconteceu com nosso amigo John Smith? 

 

– Não. O que foi?

 

– Bateu com o carro ontem, saindo do bar.

 

– Serve-lhe bem. Eu já falei a ele para só ir ao bar se for de táxi.


Dá para entender? “Para os leigos, sim.”

 

(Digressão: esta expressão é homenagem ao grande Hugo Lima, o mago da eletro-eletrônica de Campina Grande, recentemente falecido.  Consertando uma vitrola, meio século atrás, ele disse: “Essa vitrola está com 33 rotações, em vez de 33 e um terço”. Eu disse: “Mas Hugo, não é a mesma coisa?...”  E ele: “Para os leigos, sim.”)

 

No exemplo acima, o contexto é claro, e a expressão “serve-lhe bem” acaba adquirindo uma pincelada de sentido. Se milhões de pessoas começarem a usá-la, outros milhões começarão a ratificar esse sentido, a confirmá-lo... e daí a pouco a tentar impô-lo como sentido obrigatório.

E lá atrás ficarão algumas dezenas de teimosos dizendo que se no original tem “Serves him well”, já existe entre nós a expressão “Bem feito!” que diz a mesma coisa. E que tem, pelos séculos de uso no Brasil, inúmeros filamentos de sentido e de contexto ligando-a a outras memórias linguísticas, as memórias que encorpam nosso entendimento das palavras. Letras de música, provérbios, expressões do cotidiano como “Bem feito pra sua cara!...”

Cartola:
https://www.youtube.com/watch?v=Xd0xM7pulo0

Toda língua está cheia dessas expressõezinhas, e para muitas a gente não encontra um equivalente. Uma delas é “what with”, que felizmente nenhum influêncer ainda traduziu por “o que com”. Ela indica as razões, causas, etc., para alguma coisa que está sendo explicada.
 

I didn’t go to the party, what with all the rain that fell yesterday.

 
A maneira mais simples e parecida que temos para dizer isso pode ser: “Eu não fui à festa, com toda a chuva que caiu ontem”.  Dizemos assim em português, e esse “com” é entendido corretamente. Não pensamos que a pessoa não foi “levando a chuva consigo”.

Outro termo que é sistematicamente mal usado é “eventually”, que eu mesmo já cansei de traduzir por “eventualmente”. O sentido mais imediato que se pode dar à palavra é “por fim”, “mais cedo ou mais tarde”.
 

“I do eventually get around to speaking of something other than myself, you see. (Raymond Chandler).


Eu traduziria: “Veja bem, mais cedo ou mais tarde eu acabo falando de outra coisa além de mim mesmo.”
 
E o que quer dizer “eventualmente” em português? Essa palavra se colou mais ao sentido de “de vez em quando, não-sistematicamente”. Talvez pela sugestão de vários “eventos” com uma certa distância entre si. “Não conheço bem esse restaurante, mas já fui lá, eventualmente, quando morava em Copacabana”.

Outro sentido que usamos em português é de “possivelmente, quem sabe”: “Guarde esta lanterna, eventualmente pode lhe ser útil”. Que é um sentido um tanto mais próximo do sentido dado em inglês, e são essas nuances, essas flutuações, essas equivalências apressadamente subentendidas, que acabam, ao longo de vários anos e dezenas de milhões de usos, fazendo a palavra ir numa ou noutra direção.

Veja-se que estes sentidos são catalogados sempre “a posteriori”. Primeiro o uso se consagra. Depois, os dicionários, gramáticas e manuais registram: “Usa-se assim, assim e assado”.

O erro ou o barbarismo de hoje pode se tornar o uso acadêmico de amanhã, tal como muitos usos acadêmicos de hoje foram barbarismos ou erros no tempo de Machado de Assis, de Eça de Queiroz ou do dr. Castro Lopes.