AS CASAS AVIADORAS

 

Lucilene Gomes Lima
Foto R. Samuel
FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
 



As firmas importadoras-exportadoras e as casas aviadoras



As bases do sistema extrativista da borracha compunham uma pirâmide em que no topo estavam as firmas importadoras-exportadoras, representantes do capital estrangeiro, mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas firmas movimentavam o capital de giro do ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à economia local, como ressalta Antônio Loureiro:



As firmas exportadoras eram, na realidade, as detentoras do capital movimentador do ciclo, que poderia ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido, como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra da matéria-prima e a sua venda em mercado certo, sempre em alta. A qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência, por não terem capital imobilizado, sairiam da região com relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País.[1]



As casas aviadoras eram estabelecimentos comerciais que despachavam mercadorias aos seringais mediante pagamento em pélas de borracha[2]. Eram financiadas pelas firmas exportadoras. Funcionavam, a princípio, exclusivamente, em Belém e depois passaram a se estabelecer em Manaus, quando o governo do Amazonas decretou o beneficiamento do látex nessa cidade. Benchimol denomina o período em que os donos de casas aviadoras estavam estabelecidos e prósperos em Manaus de “era dos Jotas” numa alusão ao fato de que a maioria desses aviadores chamavam-se Josés, Joaquins e Joões. O autor relata que era comum os aviadores receberem o título honorífico de comendador como forma de o governo português conferir prestígio àqueles conterrâneos que haviam conseguido enriquecer fora de sua terra. O título era concedido pelo governo português e também pelo Vaticano.

Em alguns casos, a comenda que não havia sido concedida oficialmente tornava-se corruptela para o comerciante português rico.[3] De todo modo, o status dos aviadores tinha como base real os seus recursos financeiros que se mediam pelos bens que conseguiam amealhar, entre eles barcos para transportar as mercadorias para os seringais, indústrias de alimentos, fazendas de criação. A importância dos aviadores estava na dependência que os seringais lhes tinham. Sem os aviamentos, esses seringais não funcionavam. A relação entre os aviadores e os seringalistas era, em grande parte, de troca de produtos – produtos industrializados pelo produto da natureza – apesar de os seringalistas também receberem em dinheiro o saldo da transação. A relação de troca repetia-se entre os seringalistas e os seringueiros. Reproduzia-se, entre o aviador e o seringalista e entre o seringalista e o seringueiro, a majoração excessiva do valor dos produtos. Além da majoração dos preços em geral, o aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos dos mercados europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam dos hábitos alimentares locais. Leandro Tocantins refere alguns dos alimentos em conserva que constituíam a alimentação nos seringais e que contribuíam para o enfraquecimento do organismo por falta de vitaminas e sais minerais:



[...] Ao esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva: carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço, atum, ervilhas, doces enlatados, leite condensado, camarões em conserva, queijos da Holanda, manteiga francesa, bacalhau português[...][4]



O historiador Arthur Reis cita uma extensa lista de produtos que eram despachados nos aviamentos, dos mais necessários ao trabalho de extração e para sobrevivência no meio da floresta, como as tijelinhas onde se aparava o látex e as armas para defesa, aos requisitados para outras necessidades, entre elas, o entretenimento, como é o caso do gramofone. Reis chama a atenção de que os custos dos aviamentos dependiam da importância dos seringais. Os que possuíam mais estradas e que, em virtude disso, produziam maior quantidade de látex, recebiam tratamento prioritário em relação aos seringais menores. Ressalta também que o custo dos aviamentos tornava-se mais caro para aqueles seringais que se localizavam em áreas de difícil acesso, como as dos altos rios ou dos rios encachoeirados. Reis também destaca que “[...] vezes e mais vezes o seringalista era devedor e não credor [...].”[5] Isso se dava porque o comércio da borracha era de risco e daí aviadores e seringalistas estarem sempre preocupados com a oscilação do preço do produto, especialmente com a queda excessiva do preço que poderia significar a ruína financeira, o que de fato ocorreu.










[1] Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 172-3.


[2] Segundo Manoel J. de Miranda Neto, “[...] dá-se o aviamento quando ‘A’ (aviador) fornece a ‘B’ (aviado) certa quantidade de mercadorias (bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho) ficando ‘B’ de resgatar a dívida com produtos agrícolas ou extrativos da próxima safra, em espécie; havendo saldo credor, ‘B’ recebe dinheiro; se o saldo é devedor, ‘B’ fica debitado até a safra seguinte. Mas ‘B’, uma vez aviado, pode tornar-se aviador de ‘C’, e assim por diante; o único aviado que não pode ser aviador é o produtor, isto é, o lavrador ou o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos da floresta e que é obrigado a vendê-los a um só comprador (monopsônio).” (O dilema da Amazônia, p. 54).


[3] Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 73-74.


[4] Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 110.


[5] Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 174.