As canções de Chico Buarque: expressividade sonora e equilíbrio prosódico

Por Alfredo Werney - especial para Entre-textos


Chico Buarque de Hollanda ocupa, pela qualidade estética de suas canções, um lócus privilegiado em nossa música popular. Ao que nos parece, todo apreciador da chamada MPB aceita esta assertiva sem contestar. Millôr Fernandes chegara a afirmar, com certa razão, que Chico Buarque é a única unanimidade nacional. E de fato muitas de suas canções se tornaram verdadeiros hinos, sobretudo aquelas (a exemplo de “Apesar de você”, de 1970) compostas sob a admoestação severa dos militares, o que fez com que o cancionista ganhasse a pecha de “músico de protesto”. As canções buarqueanas, se observadas com cuidado, são paradoxais: ao mesmo tempo em que se mostram simples e comunicativas, elas nos revelam uma complexa e imbricada rede de sons e de efeitos sutis e um fino trato com a articulação prosódica. Ademais, em seu conteúdo nos apresenta uma visão de mundo dialética e, não obstante, reveladora da dinâmica política/ cultural do nosso país.


O universo de sons e signos das canções de Chico se configura a partir do embate de duas forças (aparentemente) opostas: a palavra (Lógos) e a música (Melos). É deste equilíbrio tenso que brota a naturalidade da dicção buarqueana. Dessa maneira, trata-se de uma difícil tarefa, embora possível, avaliarmos esse dizer buarqueano por apenas um viés. Não é exatamente isto o que tem sido feito pela crítica? Os críticos costumam seccionar a riqueza das canções desse compositor e, assim, estudar como instâncias separadas o “Chico político”, o “Chico revelador do feminino”, “O Chico artesão da palavra”, dentre outras máscaras do seu lirismo dramático. Mas é que, no fundo, o que um grande cancionista nos faz experimentar é exatamente isso: uma cadeia de signos verbais e musicais que se entrelaçam, se auto-equilibram, e nos permite perceber o mundo por diferentes vieses. Daí as variadas interpretações realizadas sobre obra do compositor carioca.


É possível observarmos, já nas primeiras composições de Chico, a preocupação de se empreender uma articulação equilibrada entre melos e logos: EsTava à Toa na viDa/ O meu amor me chamou/ Pra ver a banDa Passar/CanTanDo coisas De amor. Música e texto nessa pequena canção (A banda) se auto-expressam: ao mesmo tempo em que se fala de uma banda, a sensação musical desta nos é transmitida através do ritmo marcado das palavras e das repetições dos fonemas P, B, T. Dessa maneira, a idéia de “banda” não está somente no plano do significado, mas ela se revela no plano da forma desse significado. Essa facilidade paradoxal – se é que assim podemos dizer – está presente em grande parte da obra buarqueana, sobretudo em sua fase dita mais lírica. O discurso de “A banda” é patente, por isso mesmo compreensível (pelo menos em suas camadas mais palpáveis) por todo e qualquer apreciador de música. O discurso chega ao nível da fala corriqueira: O que era doce acabou.


 Os arranjos musicais da obra de Chico - muitos deles escritos por músicos da envergadura de Rogério Duprat e Luiz Cláudio Ramos – completam a poeticidade sonora do seu cancioneiro. Na referida “A banda”, por exemplo, o arranjo é composto de instrumentos típico das bandinhas de música (clarineta, trombone, caixa, dentre outros). Estes instrumentos vão entrando gradativamente na música e se agrupam como se fossem as pessoas aglomeradas para ouvir a marchinha singela. É como a própria letra comenta: E a meninada toda se assanhou/ Pra ver a banda passar/                               Cantando coisas de amor. O arranjo foi construído sob esta perspectiva: uma leve puxada de violão converte-se na sonoridade de uma banda inteira, que brilha e nos transmite uma sensação de alegria passageira. Este sentido é expresso pela letra: E para o meu desencanto /O que era doce acabou/Tudo voltou pro lugar/Depois que a banda passou. É recorrente esse discurso, tanto da música quanto do texto, nas primeiras composições de Chico: a música (a arte) é a maneira de dissipar o mal estar da nossa sociedade e provocar em nós um momento, ainda que fortuito, de catarse. Fazer-nos viver num tempo quase mítico. Fazer com que rompamos o silêncio através da música, como bem nos dissera Afonso Romano de Sant’anna em seu texto “Chico Buarque: a música contra o silêncio” (Jornal do Brasil, 1973).


“Retrato em branco e preto” (1968), em parceria com Tom Jobim, pode seguramente ser citada como uma das canções mais bem realizadas, no que se refere ao encontro da palavra com a música, ou, mais precisamente, à articulação das “hierarquizações prosódicas com as melódicas” (o termo é de José Roberto do Carmo). Nesta composição não iremos mais sentir a ingenuidade poética de “A banda”, mas a consciência de um amor trágico, que volta sempre a maltratar. Esse espírito de desilusão amorosa está impresso nas estruturas da melodia de Tom Jobim, que compôs primeiramente a música. Trata-se de uma melodia cromática com repetições (ostinatos) incisivas e harmonia dissonante. Esse vai-e-vem da melodia (que nos remete aos passos nervosos de uma pessoa) nos dá a sensação de que estamos rodando insistentemente sem chegar a nenhum lugar. Efeito que também se observa no plano da letra: Já conheço os passos dessa estrada/ Sei que não vai dar em nada/ Seus segredos sei de cor. A letra dessa canção como um todo é uma tentativa de expressar sonoramente a sensação de impedimento, desilusão e repetição: Vou colecionar mais um soneTo/ OuTRo ReTRaTo em bRanco em pReTo/ A maltTRaTar meu coração. Em toda canção percebemos a presença ostensiva de R e T, fonemas que exprimem dureza e quebram o fluxo melódico. Na interpretação convincente de Elis Regina, presente no disco “Elis e Tom”, este efeito de sentido se torna mais claro, já que a cantora acentua e articula “sílaba por sílaba” os finais de cada frase musical.


Diante dessas conjecturas, podemos colocar que na obra de Chico as tensões do mundo amoroso, político, cultural se revelam na forma do conteúdo da letra e na construção melódica da música. Uma dialética do “social” com o “formal”. Nesse sentido, podemos afirmar que Chico não é apreciador de trocadilhos e truques poético-musicais gratuitos e artificiosos - comuns na canção popular brasileira da atualidade. É possível ainda inferir que Chico Buarque aprendeu a retirar os excessos e depurar a forma de sua música com a Bossa-nova e com a poesia moderna brasileira. Para tanto, foram basilares: Manuel Bandeira, João Cabral e o dueto bossa-nova Tom Jobim e João Gilberto. Isso se observa em suas melodias com poucas notas (porém muito expressivas), na voz cantada sem dramatismos e exageros (Bossa-nova) e na capacidade de síntese poética de suas letras (Poesia moderna). A canção “Iracema voou” (1998) é um exemplo dessa influência: Iracema voou para América/ Leva roupa de lã e anda lépida/ Vê um filme de quando em vez / Não domina o idioma Inglês / Lava chão numa casa de chá.


Chico Buarque, consciente do seu tempo e do seu país, encontra a dicção precisa para falar dos nossos problemas sociais, das nossas desilusões amorosas, das nossas alegrias, da beleza do nosso futebol, num contínuo “andar pra frente arrastando a tradição”, como bem nos dissera Caetano Veloso. E de fato Chico impulsiona nossa tradição pra frente, porque nele co-habitam as múltiplas vozes das matrizes composicionais da nossa MPB (em especial Noel Rosa, Tom Jobim e João Gilberto). Seu falar é, ao mesmo tempo, tradição e modernização.


“Expressividade sonora” e “equilíbrio prosódico” são termos que, se não definem, pelo menos caracterizam bem a escrita musical buarqueana. Os conteúdos desta escrita são expressos estruturalmente pelo embate entre som e sentido, entre prosódia e melodia. E, é importante que se diga, de maneira minuciosamente balanceada e calculada para que letra e melodia formem “um só nó luminoso e inextricável” (José Miguel Wisnik). Afinal, como nos ensinara Luiz Tatit, esse é o ofício (nada fácil) do cancionista: descobrir compatibilidades entre esses dois sistemas de signos que é a melodia (música) e a letra (literatura).

Alfredo Werney é músico e psicológo.