As aparências
Em: 03/01/2010, às 11H54
Humberto de Campos
Em toda a rua São Gabriel, naquele movimentado bairro operário, o assunto mais em evidencia era, há muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite, daquela rapariga tão linda, desde que lhe morrera o marido.
- É uma falta de vergonha, D. Inácia, o que está fazendo aquela desalmada - informava, de janela para janela, a vizinha da direita. - Ainda ontem, à noite, eu fiquei de alcatéia aqui por dentro da rótula, e vi tudo: a atrevida esperou que se fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um lado e para outro, e, como não visse ninguém, pôs um xale, e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...
- Dizem que vai para um clube dançar o maxixe com o Manoel português, - adiantava D. Inácia.
- A Vitalina, outro dia, quando voltava do baile do Alfredo, alta madrugada, encontrou-se com ela, que saía de casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que cobriu o rosto, para não ser conhecida.
- Que mulher cínica! - terminava uma.
- Que falta de vergonha! - confirmava a outra.
Divulgada a notícia do escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita, aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da viúva. E quando esta desaparecia, ao longe, na esquina, as rótulas se escancaravam, as cabeças emergiam, e começavam as observações!
- Viu?
- Vi!
- Sim, senhora! Quem diria?!...
- Que escândalo!
- Que horror!...
Certa noite, porém, instigados pelas mulheres, resolveram alguns operários acompanhar de longe a notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do morto. Pé ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais, andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto, em frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a "pervertida" saía todas as noites, embuçada na treva, para disputar aos porcos, no monturo, uma fruta podre, para a fome do filho!...