Esta história foi publicada nos anos 90 no Megalon e agora, revista e ampliada, faz sua estréia na internet
(Miguel Carqueija)


INTRODUÇÃO


MISSÃO


    — Eu ouvi falar, sem dúvida — disse a jovem, diante do olho na parede, por onde passava a voz de diapasão alterado por um sintetizador.
    — Será perigoso. Os antecedentes do suspeito são pesados, conforme o relatório que você tem em mãos. Antigas ligações mafiosas, entre outras coisas.
    — Vai mesmo me confiar esta missão, Silver? Entendo pouco de plantas.
    — Evidentemente, não teremos tempo para que você faça uma faculdade de Botânica. Mas confiamos em você, apesar de sua pouca idade.
    — Pensei nisso. Por que eu? Existem agentes com mais experiência e mais competentes.
    — Talvez, mas a Inteligência Internacional sabe que o seu grau de intuição é o maior de todos na organização. O que tem a dizer, Ginger?
    Ela olhou a foto do suspeito, foto essa que, por alguma razão misteriosa, lhe causava uma repulsa inexplicável.
    — Irei ao Bosque de Luxo, chefe. Estou curiosa. Usarei o meu nome de Denise. Espero não decepcioná-lo e levantar a verdade sobre tudo isso.




I


INTUIÇÃO


          
     Da varanda, sob o céu cor-de-rosa de Éden, o olhar de Denise vislumbrava à distância o Bosque de Luxo, que reverberava com todas as cores do arco-íris. Àquela hora descia o crepúsculo e os reflexos do bosque já não magoavam a vista. Denise cismava, absorta. O Bosque de Luxo era uma paisagem irreal, insólita. Algo novo para a curiosidade humana. De um modo geral os visitantes ficavam deslumbrados. Denise, aemotiva por natureza, permanecia como máscara indecifrável em seus pensamentos íntimos. Esfinge de cabelos louros, Denise mantinha unidos os seus lábios na maior parte do tempo. Mesmo diante do mistério do Bosque de Luxo.
              Seguindo com o olhar pela linha da balaustrada podia ver, na curva, Gnatalli com sua bengala de cabo de ouro. Quem era esse homem? Que mistério cercava as suas origens, o seu passado? Até onde ia o seu enigmático poder, tão simbolizado em suas árvores de luxo?
             Denise sentia por aquele homem uma inexplicável repulsa: parecia-lhe que de Gnatalli emanava qualquer coisa maligna, minaz. Certa vez Denise lera um livro de Dante Peregrino, grande pensador do século XXI. E uma das passagens assim dizia:
     
     Cada ser humano é um conjunto de peculiaridades intrínsecas extremamente complexas mas que possuem, pelo cálculo de possibilidades, o seu lado oposto. Isto quer dizer que cada indivíduo tem, ao menos matematicamente, potencialmente, o seu anti-indivíduo, o seu oposto. As circunstâncias reais em que cada um de nós vive podem evitar para sempre que encontremos, frente a frente, o nosso adversário histórico, mortal. Se assim for, devemos dar graças a Deus por esse desencontro.

            Essas sinistras palavras de Dante Peregrino vieram à mente de Denise naquele momento, em que fitava o poderoso dono do Hotel Gnatalli.
    A nuvem artificial formara-se já sobre o bosque. Agora uma chuvazinha azulada derramava-se suavemente sobre aquelas árvores, que moviam suas copas em rotação quase imperceptível. Denise cismou o olhar pelas outras pessoas ali presentes, hóspedes como ela. Um grupo bastante heterogêneo.
    Por exemplo, aquele homem gordo, careca e volumoso que por qualquer pretexto dava uma gargalhada. Sua hilaridade, na qual se contorcia todo e tremia como geléia, era tal que a vontade era aplicar-lhe uma xulipa. Como podia esse personagem ser gerente de banco? No entanto Othis Qualen era isso mesmo.
    Enrico Quilici era um cantor de ópera. Magro e seco, como se houvesse sido escaldado, fazia voz de baixo. Era um homem muito calado, sombrio, e corriam histórias desagradáveis sobre a sua vida pessoal. Pelo que constava, ele se tornara amargurado em conseqüência de diversas desgraças.
    Loreana Armendariz, natural do Equador, era uma dama elegante e bastante autoritária, dando a impressão de que considerava todos ao redor como criados a seu serviço. Era uma personalidade deveras forte. Estava sempre com a filha a tiracolo, uma mocinha de vinte e dois anos, aparentemente desprovida de personalidade própria.    
    Jairo Noel, um rapaz negro e angolano, era também cantor, mas de música popular. Parecia muito descuidado e alegre, mais franco e despreocupado que a maioria dos presentes.
     Mais longe que os outros, enfrentando o mundo com um antiquado par de óculos verdes, a figura original de Jed Bostwick, escritor e pesquisador, que ali se encontrava com a família, em busca de mais saúde para a esposa Cynthia. Os três filhos, todos pequenos, também ali se encontravam.
    O empresário artístico Oliver Sargent Jr. trocou algumas palavras com Jed e caminhou na direção de Denise, por mero acaso já que não vinha falar com ela. Denise não gostava de Oliver, como não costumava gostar de homens que fumassem, acumulando ainda outro vício: o de serem desbocados.
    Iolanda Mesquita era uma estudante brasileira que viera em férias, e que preparava um trabalho de tese sobre as árvores de Gnatalli, já que estudava Botânica. Não era muito diferente de tantas outras estudantes como ela.
    Batendo fotos, o repórter Wagner Klemperer, alemão da Baviera, expunha-se a um vento que agitava seus cabelos louríssimos e fartos. Era aloprado. Quando se movia, fazia-o a grande velocidade. Vivia correndo de um lado para outro, aparentemente na constante esperança de flagrar coisas incríveis, espetaculares ou espantosas, dessas que garantem manchetes nas primeiras páginas, com letras garrafais.    


II


PODER


    Deitada no leito de seu quarto cismava Denise, insone. O motivo oculto que a levara até ali, tão longe de casa, estava sempre presente em seu pensamento. Denise não era uma simples viajante ou turista, não se encontrava em férias. Trabalhava. Naquele momento seu trabalho era investigar as árvores de cores e o seu misterioso proprietário. Denise fazia parte da Inteligência Internacional, órgão semi-secreto ao qual diversos governos estavam associados. A Inteligência Internacional zelava pelo equilíbrio da civilização no meio de tantos fatores de perturbação. Um desses fatores podia ser Nicola Gnatalli, o inventor e explorador das árvores de luxo. Um relatório inicial apontava o fenômeno como suspeito e em conseqüência Denise fôra designada para estudá-lo.
    Existia, evidentemente, a face pública do assunto. Notícias vindas de Éden — mundo colonial do sistema Vega, tido como paradisíaco — falavam sobre o hotel “sui-generis” onde os hóspedes tinham oportunidade de conhecer árvores de um tipo inaudito, algo do qual nunca se ouvira falar em qualquer parte do universo conhecido. A imprensa falava em “árvores de luxo”. Objetivamente falando, tratava-se de árvores de troncos lisos e coloridos, de cores cinematográficas. Eram cor-de-rosa, roxas, amarelas, prateadas, azuis de diversas tonalidades, cor de mostarda, beije, até mesmo caules pretíssimos, de um negro de alcatrão. Tais árvores possuíam também inflorescências maravilhosas, que duravam o ano inteiro, revezando-se pelas diversas espécies, naquele mundo sem inverno e com o controle climático artificial desenvolvido pela equipe de Gnatalli. Tais vegetais constituíam uma atração turística e sustentavam aquele homem misterioso. Graças a eles construíra aquele hotel, também de luxo; não revelava, porém, apesar da sofreguidão dos botânicos, quais os processos secretos para desenvolver aqueles espécimes que eram fruto da seleção artificial. Segundo Gnatalli, as plantas nativas de Éden possuíam uma tendência natural para aquele resultado, mas fôra necessária a engenharia genética sem a qual não teriam surgido aquelas maravilhas.
    Denise rezara, pois era católica, mas não conseguira dormir. Havia muito em que pensar. Por fim levantou-se e buscou em seus pertences a revista de Brasília onde, meses atrás, saíra uma entrevista com o hoteleiro.
    “O mundo das árvores de luxo”. Esse o título da reportagem assinada por Kleberson Ney, e que vinha anunciada na capa. Na página 31, a foto de Gnatalli antecedia o texto da entrevista:
    “Há doze anos — dizia o repórter — um homem vem dirigindo uma experiência fantástica e um negócio extraordinário no distrito de Azulão, em Éden. Inaugurado há cinco anos, um fabuloso hotel sustenta-se às custas dessa experiência: as árvores de luxo de Nicola Gnatalli.
    Hoje falamos com esse homem que se tornou uma lenda viva. Nicola Gnatalli é um imigrante italiano, alto e elegante, com ares de “dandy” Não revela a sua idade, que se acredita em torno dos 50 anos; muitas mulheres o acham com charme irresistível. Entretanto Gnatalli foi casado, porém encontra-se divorciado há muitos anos; e possui quatro filhos de ambos os sexos, nenhum dos quais de momento se encontra em Éden. Afirma-se porém que toda a família se interessa pelo negócio.
     Pessoalmente Gnatalli é um homem simpático e magnético; passeando conosco entre estatuetas de náiades jorradoras de água e por áreas de reboladas em sua vasta propriedade, transmite uma impressão de autodomínio, de confiança em si próprio, de poder enfim: sente-se que é um homem consciente do próprio poder, da própria capacidade de realização. Seu bigode, seu cabelo preto, curto e lubrificado, seu sorriso contido e sua fala macia cativam, como se pode constatar nas suas conferências. É um homem estranho, talvez único no universo.  
    Eu e a fotógrafa passeávamos com Nicola, certa tarde ensolarada, por uma vereda ladeada por estranhas plantas cactáceas unicúspides, que levava ao Bosque de Luxo — a razão de todo o poder que hoje esse homem possui. E assim o entrevistei:
    

    P — Para o senhor, o que representa o bosque?
    R — Tudo. No momento, toda a minha vida profissional repousa no sucesso do bosque. Considero-me porém um homem prático e previdente. Estou aplicando em outros negócios de modo que se este, por um absurdo ou uma fatalidade, chegar à falência, não restarei de pires na mão.
    P — O senhor considera o Bosque de Luxo principalmente como um negócio a explorar?
    R (sorrindo) — Bem, você deve entender que eu sou antes de tudo um homem de negócios. Não sou um cientista profissional. Entretanto admito que minhas idéias sublimaram-se um pouco nos últimos anos. Já considero fascinante a Engenharia Genética Botânica. Aprecio também minhas árvores do ponto de vista estético: representam uma nova forma de arte. Lembrem-se de que Edgar Allan Poe, no século XIX, já valorizava profundamente a jardinagem paisagística. Eu penso que, com minha equipe, consegui trazer algo realmente novo a um mundo cediço e cansado. O que, convenhamos, já é uma recompensa para alguém como eu, que já se aproxima da velhice...
    P — E os membros de sua equipe? O que o senhor poderia dizer sobre eles?
    R — Bem, são excelentes cientistas e técnicos, porém todos muito modestos. Não gostam de chamar atenção. Vocês já conhecem o Meneguetti? Não? Vou apresentá-lo a vocês, podem ter certeza. É um doutor baixinho, ninguém daria nada por ele enquanto não lesse as suas monografias. Seu último livrolaser é uma coisa maravilhosa: “A vida do baobá africano”. Ele ajudou muito a conseguir os espécimes pretos de nosso bosque: por incrível que pareça, a cor preta foi a mais difícil de obter.
    P — Estamos já em presença das afamadas árvores de luxo. Senhor Gnatalli, poderia agora explicar-nos algo sobre os processos utilizados para sua obtenção?
    R — Não estamos ainda na época para essas revelações, meu amigo. Há implicações complexas em tudo isso. Nós sustentamos um vasto empreendimento e não seria justo revelar ao mundo os nossos processos sem primeiro garantir os nossos direitos sobre a exploração dos mesmos.
    P — Mas em todos esses anos... os direitos não foram devidamente reservados?
           R — Não de todo, somente em parte e em condições que ainda não nos satisfizeram. Não queremos proibir que outros grupos plantem as suas árvores de luxo, mas reservamo-nos o direito de cobrar “royalties” pelo uso de nossas invenções. Quando tudo isso estiver garantido em toda a Federação Terrestre, liberaremos o conhecimento.
    P — Nesse caso, poderá o senhor nos dar algumas explicações sobre os espécimes que estamos avistando? Essa árvore amarela, enorme, por exemplo...
    R — Enorme, de fato. Essa é uma variante da “Adansonia digitata L., isto é, a “Árvore do Pequeno Príncipe”. (*) Variante, notem bem. Todas as nossas espécies coloridas foram produzidas artificialmente e portanto são variedades das espécies reconhecidas pela ciência oficial. Sabiam vocês que essa árvore pode nutrir um elefante com sua casca? Mas notem que nós não reproduzimos o tamanho da “adansonia”: a legítima, da velha África terrestre, ainda é muito maior.
    (Nesse ponto a fotógrafa Chiang não pôde ocultar uma exclamação de espanto, pois o tronco que estava diante de nós ostentava uns oito metros de diâmetro.)
    P — Qual o exemplar que o senhor considera a sua obra-prima, ou o seu produto mais bonito?
    R — Eu queria mostrar isso no fim, mas já que você perguntou... sigam-me.
    (Acompanhamos Gnatalli por mais de duzentos metros de reverberações sensacionais que somente as fotolasers da reportagem podem dar uma pálida idéia, até chegar a uma pequena clareira onde nos vimos diante de um vegetal majestoso e inacreditável: era cambiante em todas as cores do arco-íris, que formavam linhas sinuosas interagentes, resultando um espetáculo indescritível.)
        P — Que nome o senhor dá a essa maravilha?
    R — A árvore prismática. De fato é o meu orgulho. Trabalhei vinte anos para obter esse resultado.
    Podíamos facilmente acreditar nessa declaração. Nem sei como descrever essa criatura que tínhamos à nossa vista. Não chegava a ser muito alta: uns dez ou doze metros no máximo. Era porém larga, bojuda na parte inferior, com raízes simétricas, quatro ao todo, apontando para os pontos cardeais, nos trechos superiores, onde eram visíveis. Parecia uma árvore de cristal, de tantas reverberações. Dir-se-ia que cada mudança de luz ambiente, provocada pelas nuvens e pela movimentação do Sol, alimentava a dança dos reflexos multicoloridos. Incrível, simplesmente incrível.
       — Quanto deve custar isso? — perguntou Chiang.
    — Não tem preço.
    De fato, estávamos diante de algo que se afigurava superior às riquezas da caverna dos quarenta ladrões ou das minas do Rei Salomão. E hoje, longe do fantástico arvoredo, já nos sabe a exagero esse conceito, mas na hora, na ocasião, tivemos a certeza íntima de que Gnatalli, aquele homem semelhante a tantos outros, detinha em suas mãos um poder assombroso e incomensurável.”

CONTINUA