Arthur Virgílio, Rogel Samuel, Barahuna e Morais 

No Amazonas, grandes recontadores de estórias da tradição oral foram Epaminondas Barahuna e Raimundo Morais. Ambos, como se poderá constatar adiante, magistralmente souberam contar estórias do folclore do Extremo Norte do Brasil. 

Antes da transcrição de A festa no céu, pela pena de Raimundo Morais, e de Onça pé de boi, por Epaminondas Barahuna, permitam-me que mostre aqui depoimentos sobre esses escritores: o senador amazonense Arthur Virgílio Neto fala um pouco sobre Barahuna e o escritor, também nascido naquela Unidade da Federação, Rogel Samuel discorre sobre Morais. Logo em seguida... os contos!  Flávio Bittencourt

[Em tempo - Artigos jornalísticos de meu avô, o geógrafo Agnello Bittencourt (Manaus, 1876 - Rio de Janeiro, 1975), que foi prefeito de Manaus há um século, eram publicados no Jornal do Comércio, cujo editor era o seu estimado amigo Epaminondas Barahuna.]

Arthur Virgílio evocou Barahuna

Arthur Virgílio Neto pronunciou, em 17.4.2008, na tribuna do Senado, sobre o recontador de A onça pé de boi: "(...) Trago um fato de enorme peso sentimental para mim, um fato familiar, que me traz à mente uma figura do meu Estado [o Amazonas], jornalista Epaminondas Baraúna, que freqüentava minha casa. Eu era menino; ele, o representante dos Associados no Amazonas. Epaminondas Baraúna, um homem de bem, fazia um jornal muito sério, o Jornal do Comércio, que desfrutava de tanta credibilidade no meu Estado, que uma das figuras que mais amei na minha vida, Senador Luís Fernando Freire, Senador Suplicy, Senador Mão Santa, uma tia, irmã de minha mãe, já falecida, Josefina Rosa de Castro, a querida Tia Finoca – uma figura extremamente conservadora, boa, essencial em tudo o que é passo que dei na vida durante o tempo em que ela pôde ajudar a cuidar de mim –, já em plena época de Repórter Esso e, depois, de Jornal Nacional, dizia: “Que notícia estarrecedora! Estou esperando (ela morava no Rio de Janeiro) chegar amanhã o Comércio (dizia do Comércio de Manaus), porque, se isso aí for verdade, é muito grave”. Minha tia precisava da confirmação do Jornal do Comércio, do Amazonas, para acreditar que era verdade aquilo que ela estava vendo no Repórter Esso, antes, e depois no Jornal Nacional. (...)" (Arthur Virgílio Neto, http://www.senado.gov.br/web/senador/ArthurVirgilio/discurso.asp?codigo=594).

Rogel Samuel discorreu sobre Morais

Eis o depoimento sobre Raimundo Morais concedido pelo autor do clássico romance amazônico O amante das amazonas:

"O marido das viúvas 

Rogel Samuel [19.6.2008]

Couto de Magalhães escreveu que certa tribo da Amazônia mantinha uma estranha tradição, a de escolher um índio para ser o 'marido das viúvas'. O índio devia possuir certas qualidades como virilidade e força para dar conta da sua tarefa social, e tinha de ser era jovem, bem apessoado, etc. O escolhido não trabalhava e era tratado com toda deferência e cuidado pelo seu harém e respeitado pela tribo.

Quem relata e cita é Raymundo Moraes, um homem sério, não ia inventar. Era introvertido, andava por Manaus sem falar com quase ninguém. Vivia para seus livros.

Couto de Magalhães assim escreveu: 'Entre os quatro mil arcos guerreiros das oitenta aldeias de chambioás, carijós, curujaús e pavões, que havia em cada uma dessas malocas um indivíduo robusto, bem apessoado, jovem, que não caçava, não pescava, não remava, não pelejava, não trabalhava, enfim.

Isso levou-o a indagar de um dos chefes, o motivo de tão alto favor no meio dum povo laborioso e enérgico, em cujo seio floresciam as roças, abundavam a pescarias, constatavam-se as lutas com o inimigo. O tuxaua respondeu-lhe, então, que esse indivíduo era apenas e unicamente o marido das viúvas daquela tribo. Não tinha outro mister. E que a paz fruída pela família selvagem desse núcleo, provinha exclusivamente daquele companheiro, alçado ao cargo por uma lei imemorial, instituída entre eles. Nessas tabas, aparentemente ermas de qualquer regimento disciplinador, de qualquer estatuto social, a moralidade se mantinha rígida; e não é só isso, todos gozavam de profunda tranqüilidade. Os zelos, os mexericos, as intrigas, os ciúmes, que as viúvas poderiam, com ou sem motivos, despertar nas casadas, não existiam ali'. (Morais, Raimundo. 'O país das pedras verdes'. Manaus, Imprensa Pública, s/d, pp. 289-299).

Eu o cito da Internet, já que não encontrei meu exemplar.

Morais nasceu em Belém, em 1872, e faleceu em 1941. Já aos 13 anos 'prático', ou piloto, no Rio Madeira, junto com seu pai. Autodidata, estudava a bordo, nas horas vagas. Vítima de perseguição política, transferiu-se para o Amazonas. Publicou 15 livros e foi o autor do primeiro 'best-seller' da Amazônia, 'Na planície amazônica' (Prêmio da Academia Brasileira de Letras), do qual saíram várias edições e é lido até hoje. Eu tive a primeira edição.

Como era 'adversário' de Péricles Moraes, nunca entrou para a Academia Amazonense de Letras. Em compensação ostentava título de organismo internacional - a 'Societé des americanistes de Paris'.
Dizem que o sucesso de 'Na planície amazônica' começou quando ele conseguiu fazer chegar às mãos de Getúlio Vargas um exemplar. Getúlio leu, gostou e divulgou" (Rogel Samuel, http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/2008_06_01_archive.html).
 
Passo agora aos contos propriamente ditos. Divirtam-se!
 

UM) 

"FESTA NO CÉU 

                                                                           Raimundo Morais

 A Mãe dos Bichos, com surpresa geral da fauna, apareceu enfim corporificada na floresta. Até então ninguém a vira.

Ouviam-lhe apenas o canto e a fala. Mostrara-se linda e majestosa. Carregava o aspecto augusto de uma deusa e lembrava, no feitio, o ar soberano da ave do paraíso, se bem que as cores fossem outras. Alva, caudas em plumas frisadas, quando esta se arredondava num leque de arminho e ouro, dir-se-ia uma auréola que a envolvesse. Na cabeça alteava-se-lhe bizarra coroa de pérolas negras. Tinha os pés verdes e o bico azul. Correspondia mesmo à divindade desencantada. Verdadeira jóia da natureza. Garjeou primeiro uma ária estonteante e falou depois. Trazia, declarou a visão, uma incumbência da corte celeste, que a encarregava de convidar seus filhos para uma grande festa no Céu.

A clareira da selva em que a matriarca se manifestava regorgitava de animais. Amontoavam-se quadrúpedes, ofídios, sáurios, aves, caracóis, insetos, quadrúmanos. O formoso pássaro, glória de Ornis amazônica, explicou, em linhas gerais, o que seria preciso para corresponder a tão alta distinção do Onipotente, pois a festa em vista, consistia em lhes ser mostrado um aparelho inconcebível e que se inauguraria na presença rústica de seus filhos: o rádio sideral, que ligava os mundos pelo infinito a fora.

Para que a embaixada terrena fosse brilhante, continuou a Bela Aparecida, tornava-se necessário organizar várias comissões. Uma, central, presidida pelo jabuti e composta da jararaca, da preguiça, da garça, do macaco, do tatu, da minhoca, da aranha, da ponhamesa, e outras menores adstritas à grande. Cada ser alado, pássaro, inseto ou peixe, obrigar-se-ia a conduzir para a Mansão Etérea, um animal sem asas. Os excursionistas deviam levar ainda, escolhendo os menores músicos da mata, duas orquestras. Nas vésperas da festa, declarou, volveria afim de examinar os trabalhos. Ruflou as asas harmoniosamente e sumiu-se no espaço.

Foi uma chega e vira da nossa morte na fauna. Constituíram-se mais dois grupos dirigentes e destinados a concatenear a família dos assobiadores, dos cantadores, dos batedores, dos roncadores, dos trinadores, dos tocadores, dos zunidores, dos gritadores, dos estriduladores, dos sopradores, dos zabumbadores, dos ventriloquadores, dos flauteadores. Do primeiro ficou à testa o maestro carachué, arrebanhando para o seu lado o japiim, o bicudo, a patativa, o coleiro, o canário-da-terra, a maria-já-é-dia, o currupião, o tém-tém, o bem-te-vi, o curió, o urutaí, a matinta-pereira, a saracura. O segundo grupo foi encabeçado pelo maestro irapurú, e se concretizava nos seguintes músicos: jacamim, juriti, aracuã, inhambu, macucáua, marrecão, gaivota, acauã, cutipurui, rasga-mortalha, saí, murucututu, araponga, ferreirinho, cigarra, cametáu, grilo, pomba, arara, papagaio, rola e periquito.

A lista do jabuti, aclamado chefe geral da embaixada, rezava assim a respeito dos foliões: a borboleta levaria a anta; a ponhamesa levaria o jacaré, o peixe-voador levaria a tartaruga; o gavião levaria a aranha; o bem-te-vi levaria a cobra-grande; a saracura levaria a piraíba; a cigarra levaria o uruá; o mutum levaria a centopéia; o cujubim levaria o boto; o mergulhão levaria o pirarucu; a rola levaria o peixe-boi; o papagaio levaria o caranguejo; a arara levaria o bacu; o periquito levaria o tamanduá-bandeira; o tucano levaria o poraquê; o pica-pau levaria a queixada; o quiriru levaria a preguiça; a matinta-pereira levaria o embuá; o beija-flor levaria o candiru; o urutaí levaria o matrinchão; o japim levaria o quati; a andorinha levaria o sapo cururu; a pipira levaria a paca; o tém-tém levaria a jibóia; o irapuru levaria o mussuã; a piaçoca levaria o camaleão; a graúna levaria o tambaqui; a pomba levaria a onça; a iraúna levaria a pescada; o carachué levaria o tracajá; o murucututu levaria o jandiá; o urubu levaria o jabuti; o gavião real levaria o tatu; o transporte dos outros animais anotara-se em listas secundárias.

Nas vésperas da partida, a Mãe dos Bichos veio examinar o que se havia feito, achando tudo em ordem. No dia aprazado alçaram-se, numa aleluia de asas, em busca do Empíreo. A terra ficou sobre um velário de plumas e penas. Voaram, voaram, voaram. Mas o céu era longe. Afinal chegaram a mansão do Sonho, azul como anil. São Pedro, sorridente e afável, abriu a porta de bronze e a bicharada entrou meio desconfiada olhando para os lados, espantada com o luxo. Autênticos matutos, tropeçavam nos tapetes, davam de encontro nos espelhos, abalroavam os móveis, apalpavam os panos de Arraz, os vitrais, os mármores, as cortinas.

Os anjos, que vigiavam a roceirada, só faltava rebentar de riso. Oh, bichos burros! Verdadeira pândega. Ao passarem na sala das onze mil Virgens, o macaco buliu na corda duma harpa. Ouviu-se um som. Praquê? Assustaram-se de tal forma os animais que houve pânico. O corre-corre não foi desta vida. Pulavam, saltavam, voavam, voavam. O arcanjo São Gabriel, que ia passando, riu-se tanto que deixou cair a espada de fogo.

Oh, canalha frouxa! Arriscou. Nunca tinha visto medrosos deste calibre. São valentes apenas no prato.

E meteu o cinturão numa cotia que já estava roendo a quilha da barca de São Pedro.

Daí passaram os turistas à sala dos santos. Mais de mil representantes do Flos Sanctorum, em trabalho fremente, recebiam e transmitiam ordens do Todo Poderoso, invísivel aos visitantes. Súbito lampejo anúnciou o Sol. De acordo com o regularmento celeste, ia buscar ordens para as vinte e quatro horas futuras. Chegou depois a Lua com o mesmo desígnio. As Estrelas - só de mil em mil anos. Os santos, numa verdadeira lufa-lufa, atendiam e derteminavam o programa solar; luz forte no Maranhão, luz fraca no Rio Grande do Sul, meia luz em Minas, suma-se nos pólos. Momentos depois aportou o vento com o mesmo objetivo, solicitar ordens. As respostas dos celículas surgiam em cima da bucha: "assobie apenas na Amazônia; devaste o golfo do México; vire ciclone na América do Norte e furacão no centro do Atlântico; torne-se tempestade no Báltico e tufão no Pacífico".

Qualquer turma de sindicância para regiões distantes, em que se gastavam anos e anos de viagem, embarcava em cometa para a travessia do infinito. As expedições ligeiras, aos satélites do sol e da terra, faziam-se em Aerólitos num vou ali já volto. Não tardou levaram os bichos à seção de eletricidade, na qual o assunto astronômico e meteorológico mantinha-se regulado e preciso. Desse departamento emanavam ordens para a tabela diária: relâmpagos na Austália, coriscos em Fernando de Noronha, trovões na Alemanha, fogo-santelmo na Inglaterra.

Mas a grande novidade, aquilo em suma que constituía a festa no Céu, e para qual os animais teriam sido convidados, era o rádio sideral, descoberta de Santa Bárbara e São Jerônimo, por meio desse aparelho fantástico sabia-se do que ocorria nos astros, nas estrelas, nos planetas. De repente lá vinha: terremotos em Castor e Pólux, quatro vulcões na Ursa Maior; incêndio na Papa-Ceia; inundação em Saturno. As notícias de tais sinistros e catástrofes eram respondidas com urgentes providências. Enviaram-se turma de engenheiros, de maquinistas, de médicos, de enfermeiros e ambulâncias destinadas a concertos, a restaurações, a socorros aos flagelados.

Os bichos estavam apalermados. Mas sem saber como, pois ali não havia bebida, São Pedro notou que a maioria dos excursionistas se achava embriagada, num porre tremendo. O apóstolo aí zangou-se e mandou encostar a taca nos viciados. Foi lapada de todo tamanho. Além disso, o assoalho do Céu estava em petição de miséria: cuspido, escarrado, vomitado, sujo de pontas de cigarros, fósforos, cascas de frutas. Mais zangado ficou o santo. Ordenou de novo uma boa tunda naquela corja. Houve o respectivo salve-se quem puder. A bicharada abriu o pano. Uns levavam os instrumentos dos outros. Animais que tinham vindo com este iam com aquele. O urubu, tonto, tonto, deixou cair o jabuti que rebentou ao cair em terra. Quem lhe remendou o casco foi a Mãe dos Bichos. Quando os animais falam nessa festa é para recordar a pancadaria que levaram no Céu por serem porcos e cachaceiros.

(MORAIS, Raimundo. Histórias Silvestres do Tempo em que Animais e Vegetais Falavam na Amazônia), http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/literatura-infantil-lendas-e-mitos-do-folclore/festa-no-ceu.php, extraído de http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/.

DOIS)

"ONÇA PÉ DE BOI

                                                           Epaminondas Barahuna

Como se não bastassem todos os perigos positivos e imaginários que atormentavam os intrépidos nordestinos que demandavam a Amazônia no tempo da penetração e desbravamento dos seringais, e, muito particularmente, os iniciados nos mistérios das selvas e das águas, os chamados “brabos”, quiseram ainda a fantasia e o espírito criador do povo, no caso especial os veteranos exploradores da floresta, os integrados ao meio, gerar mitos, animais fantásticos, ainda mais aterradores do que aqueles já notórios. Era o caso da onça pé-de-boi. Não bastavam as diversas variedades conhecidas, pintada, canguçu, suçuarana, preta, vermelha, maçaroca e outras, todas elas representando um perigo real, mas eram nada, já que os indomáveis seringueiros as dominavam e abatiam com o seu rifle infalível. Havia que ser suscitado algo mais do que o sabido, para levar o terror ao florestário inexperiente, ao neófito nas tarefas interioranas, nos meandros e intimidades da selva. Teria surgido assim a lendária onça pé-de-boi, animal fabuloso, cuja ferocidade e valentia estavam acima da de todas as outras feras que constituíam o elenco da nossa fauna. Esse animal assombroso tornou-se lenda na região, particularmente no Amazonas e Acre. O nome prestava-se bem para a sua promoção nos espíritos simples. Dir-se-ia selecionado a capricho por um profissional, segundo as modernas técnicas de comunicação de massa. Servia maravilhosamente à finalidade. A onça pé-de-boi devia ser realmente coisa muito séria, muito pior do que todas as diversas espécies catalogadas ou classificadas. Como bom mito ganhou terreno, generalizando-se numa larga faixa regional, somando mais uma apreensão entre os seringueiros, e muito especialmente, se era um recém-chegado dos seus pagos no Nordeste.


Talvez pelo seu porte a onça é o terceiro felino do mundo em tamanho e força ocupando um destacado lugar nas preocupações do homem do campo, é de se notar, ela deu abundante matéria-prima à imaginação das populações do interior brasileiro, para enriquecer a mitologia das diversas áreas onde ela ocorre, praticamente todo o país. Assim sugiram, além da nossa muito amazônica pé-de-boi, a Onça-Borges, nos extremos oeste de Minas Gerais; a Onça-Cabocla, na região do rio São Francisco; a Onça-Mão-Torta, no Estado de Goiás, e, alhures, a Onça-Maneta, por isto mesmo ainda mais feroz, todas elas acrescentando a sua parcela de terror onde se atribuía a sua presença.


A onça pé-de-boi incorporou-se à mitologia da Alta Amazônia, e, segundo se dizia, tinha a forma normal de um animal dessa espécie, com a particularidade de possuir as duas patas traseiras semelhantes às do boi. Outros admitiam que essa anomalia se estendia às quatro patas.


Suas vitimas prediletas eram os “brabos”, que, quando não devorados pela superfera, pelo menos padeciam do medo por ela inculcado, estimulado pelo espírito galhofeiro dos companheiros veteranos que intencionalmente os intimidavam, pintando a ameaça da pé-de-boi com as cores mais carregadas e sombrias. Num seringal ocorreu, ainda naqueles recuados tempos da abertura de estradas, um episódio interessante, que, se não confirma a existência da fera, pelo menos ratifica a inquebrantável coragem dos antigos seringueiros, como veremos:


Um “brabo”, jovem de aproximadamente vinte anos, foi destacado para trabalhar num centro bastante afastado, em companhia de dois outros seringueiros já ambientados e afeitos às coisas do meio. Os dois veteranos trataram de amedrontar o novato com o terrível perigo da onça pé-de-boi, inclusive informando-o de que, na área coberta pela sua “estrada”, existia essa fera, pois já haviam visto as pegadas. Quase todos os dias, antes de partir para o trabalho, ele ouvia uma recomendação que cada vez se tornava mais tétrica : “cuidado com a onça pé-de-boi !” O rapaz, que aliás era de bons princípios e sabia ler e escrever razoavelmente bem, vivia seriamente apreensivo, principalmente porque não havia ainda adquirido um rifle ou espingarda. Sua arma ainda era, precariamente, um terçado Collins 128, no qual confiava, mas não o bastante para enfrentar uma semelhante fera. Mesmo assim cumpria a sua tarefa, com todos os sentidos atentos ao menor ruído ou movimento que percebia na floresta. Até mesmo a hipótese de se trepar numa árvore, para escapar, num caso de emergência, fora abandonada, pois os companheiros haviam assegurado que se tratava de um casal de onças e que elas eram bastante espertas para aguardar todo o tempo, no tronco da árvore, que a vítima fosse forçada a descer. Para continuidade da vigilância, revezavam-se na caçada, no interesse da alimentação. Era realmente difícil escapar. Não obstante, com todos esses riscos calculados, o rapaz se fazia diariamente rumo a “estrada”, ainda que não estivesse longe de se ver frente a frente com a fera.


Foi o caso que certo dia ouviu um ruído de pesados passos na mata e logo brandiu o seu famoso Collins 128. O animal caminhava de cabeça baixa, aparentemente sem vê-lo, por uma estreita vereda imediatamente ao lado da “estrada”, que nesse local passava à margem de um igarapé, e, na direção que tomava, vinha passar quase rente a ele. Disso resultou que dentro de instantes estabeleceu-se uma luta furiosa e selvagem. Ao atingir o alcance do seu terçado, o seringueiro lançou-se de um salto para a frente e golpeou violentamente no meio da espinha dorsal, com rara felicidade, pois logo o animal caiu em tremendas convulsões, aos pulos, mas sem jamais conseguir se firmar de pé. Ato contínuo, o homem investiu como pôde, e golpes sucessivos foram desferidos a esmo, sempre acertando em cheio, enquanto a vítima, em desesperados estertores, escorregava barranco abaixo, na direção da água do igarapé. Finalmente, tão fundamente ferida, exauriu-se, morreu. Foi então que se registrou uma cena patética naquele ermo, naquela solidão, apenas testemunhada pelas árvores e pelo vento: o homem, vitorioso, exultante, embriagado pelo sucesso, trepou sobre o corpanzil do animal inanimado e proclamou, a plena força dos pulmões, num brado estentórico de exaltação: “Se tem onça pé-de-boi por aqui que apareça !” Por sorte dele,não havia e nada aconteceu. Então, como um troféu para dar testemunho do seu inaudito feito, cortou a ponta da cauda e a orelha da fera e guardou em sua sarrapilheira, para exibir triunfante aos companheiros.


Como houvesse tardado bastante o regresso, quando ainda na “estrada”, os encontrou, pois já seguiam à sua procura, apreensivos. Ao primeiro contato, indagaram sobre os motivos do retardamento, ao que o nosso herói foi logo transmitindo a boa nova: “matei a onça pé-de-boi”. Os homens ficaram estupefatos com a inesperada informação, mas ele foi bastante objetivo: juntando o ato às palavras, tratou de comprovar o feito e apresentou, repontando o mais justificado orgulho, a cauda e a orelha de uma anta. Os companheiros, antes atônitos, divertiram-se bastante, mas imediatamente seguiram adiante, para o aproveitamento da saborosa caça.
Daquele dia em diante, a onça pé-de-boi não apareceu mais naquela estrada e seguramente foi fazer assombração em outra parte! [Estórias amazônicas. Rio de Janeiro, Edições "O Cruzeiro", 1974] ",
http://br.geocities.com/rogelsamuel/barahuna.html.