Aos 73 anos, completando cinco décadas de carreira, o poeta Armando Freitas Filho lança o volume de inéditos "Dever". Nesta entrevista, ele relembra o primeiro livro, ‘Palavra’, de 1963, e fala sobre a nova obra, que evoca o efeito da passagem dos anos sobre o corpo, as relações humanas e a própria escrita.
O tempo, que Armando Freitas Filho chama de “esquartejador indiferente” em um poema antigo, se faz presente já nos primeiros versos do recém-lançado “Dever” (Companhia das Letras): “A areia retida nas mãos em concha/ vaza, e inicia a ampulheta”. É a senha para uma sucessão de imagens que, em vários dos mais de cem poemas, remetem ao efeito da passagem dos anos: o relógio herdado do pai, a casa da infância (que, há muito demolida, “retorna/ inteiriça no pensamento”), mortes e nascimentos, as transformações do corpo, da memória e das relações.
Na sala de sua casa, na Urca, onde um grande relógio parado faz o contraponto irônico à conversa sobre o tempo, Armando comenta um dos poemas que considera centrais em “Dever”, intitulado “Há meio século”. Breve e incisivo, pode ser lido como uma declaração de fé no ofício de poeta: “Componho/ para frente, onde o leitor se forma/ no espaço e lê, e leva o que possuiu”.
— Quis flagrar não só a passagem do tempo, mas a vitória sobre ele, porque sinto que consegui manter até hoje uma fé feroz na poesia. Escrevo há 50 anos, obstinadamente, em busca de poemas que flagrem essa persistência, essa fé e a ferocidade dessa fé. É o que me empurra para frente, desde o início.
Autor de obras de destaque na poesia brasileira contemporânea, como “À mão livre” (1979), “De cor” (1988) e “Lar,” (2010), Armando sentiu a primeira centelha dessa “fé feroz” quando, ainda adolescente, ganhou do pai um disco com gravações de dois poetas: no lado A, Manuel Bandeira, e no B, Carlos Drummond de Andrade. Na família tradicional, que vivia em um casarão de 12 quartos à beira-mar na Urca, esperava-se que o menino de 15 anos se tornasse padre ou médico. Mas a voz dos poetas chamava para outro lado.
— Bandeira foi um alumbramento. E Drummond eu lia tentando entender como era possível alguém escrever sobre o que eu pensava que não tinha expressão. Poetas assim você não acaba de ler nunca, são para o resto da vida.Passou a escrever pastiches deles e de outros poetas, copiando versos inteiros com uma ou outra mudança (“para acertar a mão”, brinca). Chegou a transcrever na íntegra “A luta corporal” (1954), de Ferreira Gullar, respeitando até a disposição fragmentada das palavras na página. Aos poucos, sentiu-se capaz de criar os próprios poemas, que reuniu em um pequeno volume. Em “Dever”, há uma sequência que revisita com humor esse momento: o primeiro livro “não parava em pé”, escreve Armando, e por isso seu pai decidiu fazer um “enxerto extra de folhas/ fingidas, falsas, em branco”.Esse livro ainda percorreu um longo caminho até se tornar “Palavra”. Primeiro, chegou às mãos de Cleonice Berardinelli, já então uma destacada especialista em poesia lusófona e de quem era parente distante. Ela recomendou que ele procurasse Manuel Bandeira. Tímido e gago, acompanhado pelo pai, que conduziu a conversa, o aspirante a poeta ouviu do autor consagrado que seu livro era “interessantíssimo”.
Bandeira sugeriu que o jovem consultasse ainda alguém de sua geração. Armando foi a José Guilherme Merquior, que conseguiu com Fernando Sabino, dono da recém-criada Editora do Autor, uma resma de papel sobressalente. Em 1963, Armando voltou ao escritório de Bandeira para lhe entregar um exemplar de “Palavra”. O reencontro com o mestre “dentuço, cordial” é recordado em “Dever”.
— Com o primeiro livro na mão, senti uma responsabilidade enorme. Precisava dar consequência àquilo, uma razão de ser.
Armando dedicou os anos seguintes ao estudo. Dos críticos, leu principalmente Antonio Candido e sua “Formação da literatura brasileira” (“Não fiz faculdade, fiz Antonio Candido”, diz). Entre os poetas, destaca Bandeira, Gullar, João Cabral de Melo Neto e sobretudo Drummond, que define como “o pai da minha poesia”. “Dever” tem várias citações e homenagens a “CDA”, como Armando o chama: em um poema recorda seu velório, quando chegou antes do morto e a tempo de corrigir o funcionário que já ia escrevendo com um M só o nome do autor dos versos “adeus, composição/ que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade”.
Para ilustrar o que aprendeu com ele, Armando recita a abertura de “Habilitação para a noite”, de Drummond: “Vai-me a vista assim baixando/ ou a terra perde o lume?/ Dos cem prismas de uma joia/ quantos há que não presumo”.
— Esses versos são um mantra para mim. São uma lição de humildade, de sapiência, de como olhar as coisas em busca de novos ângulos. São uma afirmação de que não esgotamos nada na vida — diz o poeta, que descreve seu método de trabalho com termos parecidos. — Escrevo sempre sobre os mesmos temas, vendo o que consigo dizer aqui e ali. Se noto que faltou alguma coisa, volto ao tema, como se mudasse de ângulo ou disposição. Na verdade não tenho temas, tenho problemas — brinca.
Armando coloca esse método em prática diariamente no escritório no segundo andar da casa onde mora desde 1969. No espaço que chama de “oficina”, trabalha cercado de livros antigos, pinturas, manuscritos e retratos autografados de Drummond, Bandeira, João Cabral e Gullar. Escreve os poemas à mão, passa a limpo em uma máquina Olivetti 22 e depois os transcreve no computador. O título de “Dever” remete a essa visão nada romântica da poesia como exercício repetitivo e quase físico. “Escrever é como caminhar”, lê-se em um poema. E em outro: “Vou de encontro à poesia/ não espero receber nada”, “vou contra a musa”.
O melhor exemplo desse trabalho de “oficina” é a série “Numeral”, conjunto de poemas numerados e datados, sem título, publicados em ordem cronológica, que aparece pela primeira vez em 2003, quando Armando reuniu sua poesia completa no volume “Máquina de escrever” (Companhia das Letras). A série continuou em “Raro mar” (2006) e “Lar,” (2009), chegando em “Dever” ao 137. Ela pode ser lida como um grande poema que, segundo o autor, já soma 2 mil linhas e quase 200 “números” — esta semana, descansava em sua mesa o 191.
— “Numeral” é uma conjugação de tempo e escrita, como um motocontínuo poético — diz Armando, que em um deles ironiza o destino inevitável da própria invenção: “e, de repente, parará/ a série, melhor dizendo, o seriado”.
Esse processo criativo peculiar foi registrado pelo cineasta e fotógrafo Walter Carvalho no documentário “Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície”, filmado nos últimos quatro anos e ainda inédito.
— É um filme sobre a “luta vã” com as palavras, de que fala Drummond — diz Carvalho, que ainda busca financiamento para finalizar o longa-metragem. — Ele surgiu do meu desejo de entender o que é um poeta. Como sai dessa pessoa um poema, e por quê? Como uma palavra conquista seu lugar em um verso? Com Armando essa investigação é fascinante, porque ele é um operário da poesia.
O rigor da poesia de Armando é o que chama atenção da crítica Heloisa Buarque de Hollanda, amiga do escritor há décadas e organizadora de uma coletânea dele publicada em 2010 pela Global. Idealizadora da antologia “26 poetas hoje”, que em 1975 mapeou grande parte dos autores do que ficou conhecido como “poesia marginal” (como Chacal, Francisco Alvim, Torquato Neto e Ana Cristina Cesar), Heloisa diz que é o “trabalho da palavra” que distingue Armando no panorama da poesia nacional.
— Nos anos 1970, quando se valorizava o improviso, o acaso e o não literário, Armando, que era de uma geração anterior, buscava outra coisa. Ele se relacionava com a geração “marginal”, mas tinha um universo próprio, com uma competência artesanal emocionante — diz Heloisa.
Autor do prefácio de “Cabeça de homem”, publicado por Armando em 1991, o crítico Luiz Costa Lima, amigo de longa data do poeta, vê uma evolução de sua obra em direção a uma simplicidade que recusa a “convencionalidade do banal”.
— A poesia de Armando tem-se depurado neste sentido, aproximando-se da palavra-osso, afastando-se do verbo-cartilagem. Sem que jamais tenha sido um cabralino, mostra que o legado de João Cabral não foi em vão — diz Costa Lima.
Entre os autores da “poesia marginal”, a ligação mais forte de Armando foi com Ana Cristina Cesar, que, ao morrer, em 1983, atribuiu ao amigo a tarefa de organizar seus escritos. Trinta anos depois de seu suicídio, ela continua presente: o poeta é o coordenador do projeto de reedição das obras completas de Ana Cristina, pela Companhia das Letras, que ainda este ano começa a publicar livros há anos fora de catálogo, como “A teus pés” e “Inéditos e dispersos”.
Ana Cristina se faz notar também em vários versos de “Dever”. Um poema recorda o dia em que ela se jogou do apartamento dos pais, 40 minutos depois de conversar com o autor por telefone: “Dia de outrora, duro. Sábado de praia/ impecável, que não chegará ao domingo”. Armando já escreveu 25 poemas sobre a amiga
— Foi como se ela caísse raspando em mim. É uma ferida que fica.
Ana Cristina, Drummond, Bandeira e João Cabral são apenas alguns dos fantasmas que habitam “Dever”. Armando evoca ainda amigos, como o poeta Leonardo Martinelli, morto em 2008, e as vítimas da chacina da Candelária, que completa duas décadas este ano, e do massacre de Realengo, cometido em 2011.
Em meio a esse inventário de perdas pessoais e coletivas, porém, há os versos esperançosos que dedica à família: Cristina, com quem é casado há 33 anos, o filho mais novo, Carlos, de 22, e a mais velha, Maria, de 42, que vive na Suécia com o marido e os dois netos do poeta. Nascida no ano passado, Mia ainda não ganhou um poema do avô. Mas Max, de 6 anos, já aparece no livro novo, anunciando outra vitória sobre o tempo: “Nele, avisto o aviso/do futuro do futuro”