Apresentação de Elementos de Língua Latina

              Marcelino Leal Barroso de Carvalho

          Senhoras e Senhores,

Esto brevis et placebis! Com esta recomendação, amplamente empregada desde a Escolástica e a que sempre se reporta, em suas alocuções públicas, o Prof. Celso Barros Coelho, quero de logo confessar-lhes ter a impressão de que a indigência de meus atributos intelectuais e a superficialidade de meus conhecimentos da língua dos juristas romanos seriam a melhor justificativa de minha escolha para apresentar o livro do Prof. Carlos Evandro Martins Eulálio – Elementos de Língua Latina –, condições que me obrigariam a ser breve em palavras, e, somente por isso, render-me-iam o agrado geral.

Todavia, a surpresa da visita do Autor, há pouco mais de um mês, para comunicar seu desejo de que fizesse a apresentação desta obra, foi amainada pela leveza da conversa que travamos, na mesma esteira de outras tantas ocorridas anteriormente, em que pitadas de saudável humor sempre nos aguçaram a memória e o interesse em partilhar ideias e ideais, aí embutido o sonho de ver preservadas as raízes de nossa língua e restaurados os pilares de nossa cultura.

Na leitura dialogada e ligeira que fizemos na ocasião, pude constatar, de plano, que o livro ora lançado se ajusta ao preenchimento de inegável lacuna na bibliografia direcionada aos níveis de ensino fundamental e médio, no Brasil, qual seja a opção por um estilo realmente capaz de prender a atenção e despertar o interesse de estudantes em plena agitação da adolescência, num contexto sociocultural em que o aparato midiático dificilmente cede espaço ou tempo a estudos de uma língua que estaria “morta”.

Logo à primeira visão da tábua de temas da obra, verificam-se o rigor metódico e a preocupação didática com que se conduzem as lições, todas elas epigrafadas por máximas, provérbios ou brocardos recolhidos da literatura clássica, e abertas, em quase totalidade, pelos textos latinos que servirão de “laboratório” para o estudo gramatical e a iniciação estilística, propondo ao leitor o esforço de responder aos exercícios que, por certo, conduzirão a bons resultados em seu aprendizado.

Oportuníssimo é o ensaio exordial sobre a origem, a pronúncia e a estrutura da língua, que protege o leitor de possíveis incompreensões da maneira como se ensina o chamado “latim renovado”, de tal sorte que possa adotar uma opção fonética coerente. Afugentando o preconceito contra a germanização do Latim, registro que foram os filólogos alemães, belgas, franceses e até mesmo americanos (1) que mais contribuíram para o “renascimento” dessa extraordinária construção romana.

Ao escrever a apresentação, em 2009, do livro “Latim Forense para Estudantes”, também da lavra do Prof. Carlos Evandro, fiz algumas anotações pretensiosas, duas das quais repito agora, no intuito de lembrar, aos presentes, que o nosso Mestre vem, há muito tempo, oferecendo contribuição efetiva para o resgate de imensa dívida das autoridades e dos sistemas educacionais para com os jovens. Dizia, então:

Na instrução formal brasileira, criou-se uma cultura favorável ao estudo de idiomas, sobretudo o inglês e o espanhol, atualmente considerados universais. Difunde-se, por isso, a idéia de que o latim seja uma língua morta e, paradoxalmente, impõe-se aos alunos de ensino médio o domínio de vastíssima nomenclatura latina nas disciplinas da área de ciências, com a agravante de conter inúmeras construções de vínculos antroponímico e toponímico. A literatura jurídica e os meios forenses, por seu turno, nunca lograram afastar-se definitivamente dos brocardos ou máximas latinos.

O preconceito que leva os jovens a rejeitarem o latim e a desconhecer sua importância não deixa de revelar uma certa ignorância da instrumentalidade de suas declinações e do rigor lógico de suas estruturas frasais. O reconhecimento do latim como língua do raciocínio é, contudo, uma auspiciosa realidade nos mais avançados círculos científicos e tecnológicos do mundo e um oportuno alerta àqueles juristas que ignoram esse papel.

 

Os desavisados não percebem que a língua latina permanece viva até mesmo nas indicações daquilo que mais se tem por moderno, como ainda há pouco referi ao empregar o termo “midiático”, que muitos utilizam sem se aperceber de que deriva de media (meios), neutro plural de medium (meio), com pronúncia corrompida pelos povos de língua inglesa (mídia), no princípio para indicar apenas os meios de comunicação (mass media), e hoje a abarcar uma infinidade de produtos e recursos tecnológicos.

Essa pobreza é que permite que muitos profissionais de imprensa, gestores públicos, cerimonialistas e políticos lancem mão de termos latinos como se fossem indicadores de erudição, e soltem pérolas como: “curriculum vi-tai” (curriculum vitae), “a-é-dis a-e-gí-pi-ti” (Aedes aegypti), “mi-cha-el” (Michael), “regina co-é-li” (Regina Coeli), “mó-dus operante” (modus operandi), “in me-mó-ri-an” (in memoriam).

No meu tempo de criança, ninguém podia ser coroinha, na Igreja Católica, sem que tivesse, na ponta da língua, pelo menos, os Ritos da Missa Ordinária, da Bênção do Santíssimo Sacramento, da Unção dos Enfermos e da Encomendação das Almas, porque, em geral, afora o coro, somente ele e o padre se faziam ouvir durante os ofícios. Um menino (não se aceitavam meninas) com tal responsabilidade poderia, num eventual lapso de memória, estragar um culto, como certa vez me contou o Pe. David Mendes de Oliveira, meu formador pré-seminário. O acólito começou o Ato de Contrição (vulgarmente chamado “Eu Pecador”):

Confiteor Deo omnipotenti et vobis, fratres,

quia peccavi nimis cogitatione, verbo, opere et omissione:

mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa...

Esperando um pouco, e vendo que o garoto entalara, o vigário, irreverente, perguntou baixinho: “Deu o prego?”, e o menino, qual Guia Turístico de Olinda, solene emendou:

Ideo precor beatam Mariam semper Virginem,

omnes Angelos et Sanctos, et vos fratres,

orare pro me ad Dominum Deum nostrum.

Não vislumbro, no ideal de ver restaurado o ensino de língua latina, necessidade de purismos ortodoxos como o encorajado pelo Motu Proprio do Papa Bento XVI, em 2007, ao permitir o retorno das missas em Latim (Ritual Tridentino), com os padres podendo retomar velhos ritos, inclusive celebrando de costas para a Assembleia, como relata, em bem humorado artigo, a jornalista Vanessa Bárbara, da Revista Piauí, em que um pimpolho de 3 anos, depois de mais de hora a ver e ouvir o que não entendia, a um pequeno movimento de pessoas exprimiu, em alto e bom tom, pensando que já era tempo: “Cabô!”(2)

O que sinto e desejo é que a juventude seja formada e informada na perspectiva de que não se avança, em nenhuma área do conhecimento, sem o domínio de seus fundamentos e sem a habilidade no manejo dos instrumentos que o operacionalizam, em cujo rol coloco a familiaridade com o vernáculo e com suas raízes linguísticas.

Um bom educador certamente estimula os estudantes a perceberem que, no linguajar simples do povo, estão vivos os traços de uma cultura que não se mata sequer com os desregramentos de neologismos e hibridismos, que desfiguram a língua vernácula e a tornam cada vez mais ausente dos manuais técnicos e tecnológicos. Essa atitude bem se traduz na oração: “Qui bene amat, bene castigat”(3). E os mais simples parafraseiam-na: “Quem não faz um filho chorar, chora por ele”.

Lembro, ainda, que a apropriação forense da língua contribui para reforçar o folclore nacional, como na insólita sentença do 1º Suplente de Juiz Municipal Manoel Fernandes dos Santos, da Vila de Porto da Folha, Sergipe, proferida em 15 de outubro de 1833, conforme documento arquivado no Instituto Histórico de Alagoas, arrematada com uma espécie daquilo que hoje denominamos paradigma:

O nosso priô acumselha: Homine debochato, debochatus mulherorum, invocabus est. Quibus capare et capatus est macete macetorum carrascuas sine fato negare pote. (..) Apelho insofico (...).(4)

 

O que espero, por fim, é que o estudo da língua latina e o uso de suas máximas ou brocardos não sirvam apenas para gongorizar petições forenses ou para discriminar espécies biológicas, mas também, e sobretudo, para estimular o raciocínio e para aguçar a inteligência de quantos ainda se mirem no legado da história como plataforma de um presente atuante e como garantia de um futuro promissor. 

Teresina, 2 de março de 2013.

Apresentação do livro “Elementos de Língua Latina”, de Carlos Evandro Martins Eulálio, na Livraria Entrelivros, Teresina-PI.

 

Marcelino Leal Barroso de Carvalho é Bacharel em Direito, licenciado em Filosofia, Mestre em Direito Público, Professor Adjunto  (aposentado) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Diretor Acadêmico do Instituto Camilo Filho (Teresina – PI).

Notas:

(1) SILVA NETO, Serafim da. História do latim vulgar. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1977, p. 3-10.

(2) VANESSA, Bárbara. Per omnia saecula saeculorum. Revista Piauí, n. 15, dez. 2007. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-15/esquina/per-omnia-saecula-saeculorum>. Acesso em: 28 fev. 2013.

(3) EULÁLIO, Carlos Evandro M. Elementos de língua latina. Teresina: Nova Aliança, 2013, p. 57.

(4) ACADEMUS. Pena de castração. Disponível em: <http://www.academus.pro.br/implementos/variedades/impressao_variedade.asp?titulo=Variedades&codigo=52&nome_categoria=>. Acesso em: 28 fev. 2013.