Antônio Cícero

 Li A montanha mágica pela primeira vez quando adolescente. A imponência do volume sugeria, de fato, uma montanha a ser escalada; quanto à mágica, senti-a desde as primeiras páginas. 


Na verdade, Thomas Mann extraiu o título desse romance do trecho de O nascimento da tragédia em que Nietzsche diz: “Agora a montanha mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu e sentiu os pavores e horrores da existência: para poder não mais que viver, precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Mas os tempos modernos são outros. Ironicamente, na montanha mágica de Thomas Mann, situada na Suíça, não se encontram seres sobre-humanos, mas humanos enfermos: não a morada dos deuses, mas um sanatório para tuberculosos, do qual o escritor alemão faz um microcosmo em que encena, de modo magistralmente depurado, tanto o enfrentamento quanto o entrelaçamento das diferentes idéias que moviam o espírito europeu nos anos imediatamente anteriores à eclosão da primeira guerra mundial.

Entretanto, A montanha mágica não consiste num tratado de filosofia ou de história das idéias, mas num romance. Graças à arte do autor, seus personagens ficam-nos na memória como seres de carne e osso. Alguns são inesquecíveis: a russa Mme. Chauchat, cujos “olhos quirguizes” lembram ao personagem central – o “jovem singelo, ainda que simpático”, Hans Castorp – certo colega do ginásio, e contribuem para lhe provocar uma verdadeira obsessão erótica; o holandês Mynheer Peeperkorn (baseado no escritor – Prêmio Nobel de Literatura – Gerhart Hauptmann), que, “robusto e delicado”, domina, pela sua presença monumental e pelos seus gestos teatrais, os ambientes em que se encontra, apesar (ou também por causa?) do caráter inconcluso de quase todas as suas afirmações; e sobretudo, pelo menos para mim, o humanista italiano Settembrini e o jesuíta Naphta (que tudo indica ter sido baseado no filósofo Georg Lukacs), que se digladiam intelectualmente em torno do espírito de Hans Castorp – e do leitor.

Settembrini é o que Thomas Mann chama, não sem uma pitada de desdém, de Zivilizationsliterat, “literato da civilização”, isto é, um intelectual, herdeiro espiritual do humanismo e da Ilustração, nos moldes tradicionais da Europa Ocidental. Sua linguagem é “plástica”, como ele mesmo define, e tende a resvalar para a retórica. Interessado na vida mundana, sua figura é, no entanto, um pouco démodé e ridícula, tanto que, logo que o vê, Castorp o toma por um tocador de realejo. Naphta deveria representar, ao contrário, a cultura genuinamente alemã e romântica, em oposição àquilo que inúmeros pensadores alemães, tais como Spengler, tomavam como o mito superficial da civilização universal; no entanto, com notável ironia e profundidade, Thomas Mann o caracteriza como judeu da Europa Central, jesuíta e apologista dos valores da Idade Média. Chocantemente feio, ele é, no entanto, ao contrário de Settembrini, impecavelmente elegante e refinado.

“A malícia, senhor”, diz Settembrini no seu primeiro encontro com Hans Castorp, “é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento”. Ao tratar cada um desses dois personagens com irreverência, logo distância crítica, equivalente, Thomas Mann assume plenamente o direito de – nas palavras de Strindberg que ele gostava de citar – “jogar com pensamentos e experimentar com pontos de vista, mas sem se atar a coisa alguma, pois a liberdade é o ar vital do poeta”. A verdade é que A montanha mágica exemplifica perfeitamente a tese de Schlegel de que “os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal a sabedoria de vida refugiou-se da sabedoria escolar”.

De todo modo, talvez a característica mais assombrosa das discussões entre Settembrini e Naphta, para quem os lê no princípio do século XXI, é a sua inteira atualidade. De um lado, o religioso para quem é mister “espalhar o terror para a redenção do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a intervenção do Estado e das classes”; de outro, o secularista para quem é imperativo salvar e expandir as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, que, segundo ele, são “personalidade, direitos do homem, liberdade”. Essas posições se confrontam e desenvolvem em diálogos memoráveis, e um calafrio nos percorre quando nos damos conta do caráter profético das palavras com que Thomas Mann – bem antes da ocorrência de Auschwitz ou do Arquipélago Gulag, ou dos aviões e homens-bomba do nosso tempo – faz Naphta defender, por exemplo, a tese de que “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror”.

Mas A montanha mágica é atual também em outro sentido. No passado, não faltou quem qualificasse a estrutura dos seus romances de insuficientemente experimental, em comparação com as dos romances de James Joyce ou Robert Musil, por exemplo. Trata-se de um equívoco. Cada obra de arte é sui generis, e deve ser respeitada e julgada segundo os critérios que ela mesma impõe. Em particular, são inaceitáveis os diagnósticos e as receitas baseados em tendências literárias à la page. A arte de Thomas Mann não fica em nada a dever à de Joyce ou Musil. Além disso, não se poderia compreender o caráter experimental de uma obra partir de semelhantes comparações. Convém contemplar a probabilidade de que o autor leve a sério a máxima que repete diversas vezes, ao longo do romance: placet experiri, isto é, “convém experimentar”. Seria cegueira taxar de conservador um estilo que admite, por exemplo, amplas passagens ensaísticas; que relativiza perspectivisticamente todas as posições espirituais, inclusive as do narrador; que emprega técnicas de composição extraídas da arte musical, como o Leitmotiv; que utiliza magistralmente a citação e a alusão; etc.

De todo modo, devo dizer que A montanha mágica foi para mim um Bildungsroman, isto é, um romance de formação, não apenas no sentido convencional e tradicionalmente reconhecido de que narra o aprendizado intelectual e emocional do já citado Hans Castorp, mas também de um modo muito pessoal, pois contribuiu decisivamente para a minha própria formação intelectual e emocional. Data, com efeito, da época da minha primeira leitura desse livro a decisão de dedicar os meus estudos prioritariamente à filosofia.

É por isso que me foi irresistível o convite para escrever esta apresentação. Aceitei-o, portanto, e reli o livro. Muita paixão literária da juventude perece, quando submetida a um olhar maduro. No caso de A montanha mágica, porém, creio que a experiência e os estudos me tenham armado para captar ainda melhor as inúmeras sugestões, alusões e sutilezas que, tendo escapado ao adolescente sem lhe fazerem falta, aumentam o deleite do adulto: o fato é que, para mim, ela se provou uma dessas obras-primas que não apenas resistem ao tempo, mas com ele crescem.


Apresentação a: MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira2006.