Apenas Memórias, de Cunha e Silva Filho
Em: 09/11/2016, às 22H30
Francisco Venceslau dos Santos ( Prof. Adjunto de Teoria da Literatura da UERJ, aposentado, e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia)
Logo de saída, o autor demonstra conhecer o gênero memórias, mostrando uma coerência ética na narrativa de suas experiências. Uma visão de passagens da sua vida e uma visão global do eu da escrita com seus desejos, sentimentos, ações, numa duração temporal. A matéria-prima da obra é a lembrança narrada de uma trajetória individual que articula os anos vividos. Desenvolve-se em dois planos: o linear e o vertical, com os acréscimos que se superpõem ao longo de sua construção.
Apenas memória conta a experiência de vida do autor, desde a infância , em Amarante, Piauí, à maturidade na grande metrópole. Inicia-se na metade dos anos 1940, com foco mais específico nos anos 1950, ,em Teresina, e prossegue nas décadas seguintes, no Rio de Janeiro. Centrada no eu e nos seus contemporâneos, o relato de formação incorpora cenas e a cultura do quotidiano na Teresina dos anos 1950: a influência do cinema, a vivência no curso primário, a magia dos estudos no ginásio , as reminiscências durante o Curso Científico no Liceu Piauiense, os estudos voltados para a aprendizagem de línguas, a convivência com os professores A. Tito Filho, os irmãos Domício, e outros mestres.
Na primeira parte, à medida que avança na escrita de si, o narrador empreende uma autointerpretação da aprendizagem, buscando motivos para êxitos e eventuais empecilhos na caminhada : os índices literários, notações de autoanálise, e autointerpretações dos eventos externos do mundo vivido constituem traços do livro. Percorre a escrita a intimidade intelectual/afetiva entre o filho responsável pelas recordações e o pai Cunha e Silva, persona social, professor reconhecido, respeitável, que foi diretor do Liceu Piauiense.
Esta troca de experiências aparece nitidamente em Apenas memorias na figura do “Quarto Biblioteca” que representa as trocas intelectuais entre os dois, a vida real e a vida literária, a convivência mental/ afetiva, a herança também no plano da alma. A partir desta figura da origem, Cunha e Silva Filho resgata toda uma memória bibliográfica daqueles anos, registro concreto da geração estudiosa da segunda metade do século xx. E presentifica retratos de docentes, traços da memória coletiva. Uma espécie de genealogia da amizade de uma época.
Também traz para o presente , a paisagem da vida da rua Arlindo Nogueira, na capital do Piaui, nos meados dos anos 1950. Ele, flaneur, olhava as vendedoras de rua, vestidas em seus trajes brancos, e as “ meninas mais lindas de Teresina” que passavam em frente à janela da casa.
A narrativa avança com a migração para a metrópole do Sudeste, em 1964. O percurso se parece com o itinerário de um protagonista de romance, mas os eventos ocorrem no plano da realidade.: “ não sabia quantas coisas boas e ruins iria encontrar no Rio de Janeiro. Alea jacta est.” (p. 87). “O coração dominado pelas incertezas futuras” , o protagonista luta pela aprendizagem, por um lugar para morar, e por um emprego. Nesta nova etapa, enfrenta alguns obstáculos: a doença, o tratamento hospitalar, a falta de recursos, a solidão, e começa a derrubar as barreiras com a descoberta de novos espaços como o Restaurante do Calabouço, a Casa do Estudante Secundarista do Brasil. E principalmente mobiliza a sua vontade de enfrentar as vicissitudes da existência.
Passa por empregos em bancos, inclusive estrangeiros, devido a sua performance e fluência
Outra característica marcante do livro é o cultivo da intimidade e da reflexão intelectual. Nele, a memória trava um diálogo com a literatura, o autor tece considerações sobre a paisagem : “Só depois de alguns dias. Indo ao centro do Rio, fui mudando de opinião com referência à cidade que esperava encontrar. [...] pude sentir todo o encanto e charme dessa [...]” (p. 94). O atento memorialista dedica todo um capítulo ao subúrbio carioca.
Como já fiz referência, a leitura deixa transparecer, em alguns trechos, a identificação entre a vida e a ficção literária, como na noite em que permaneceu na Central do Brasil: “zona cinzenta de vida noturna pecaminosa da baixa malandragem e dos perigos espreitando em cada canto das ruas, bares e hotelecos, como se fossem cenas tornadas realidades saídas dos contos de João Antonio. Ficaria sentado num dos batentes de uma das entradas daquela estação ferroviária” (p. 109).
Para Silva Filho, a Universidade é o correlato da vida. É neste sentido que o texto pode ser considerado parente do romance de formação. Daí, a presença do mundo vivido: bibliotecas públicas, livros, escritores , ambientes de estudos, as tensões na vida acadêmica. Em um final de ano letivo no Curso de Letras, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, o autor se recolhe num bar próximo, e diz: “Me senti um personagem daquele conto comovente e trágico, ´The outcasts of Poker Flat´ (1869) do escritor americano Bret Harte (1836-1902). Ou, talvez, um personagem trágico shakesperiano, um Hamlet atormentado com as mesquinharias humanas” (p. 194).
Esta obra de Francisco Cunha e Silva constitui um documento cultural importante para a memória coletiva nos anos de 1960, 1970 e parte dos anos 1980. Os intelectuais imigrantes no Rio de Janeiro costumavam estudar nos centros de sociabilidade , fortes na época: Biblioteca Demonstrativa Castro Alves, Biblioteca Nacional, bibliotecas da FNFi, da Maison de France, do Ministério da Fazenda, e até mesmo da Casa do Estudante Universitário (CEU), na rua Visconde Maranguape, 26, retratados aqui
De outro ângulo, o escritor põe em Apenas memórias, as personagens que conheceu na trajetória: amizades intelectuais, pessoas de seu relacionamento; e indaga sobre o destino de algumas: moradores de casas de estudantes, professores famosos e intelectuais que ficaram esquecidos na poeira do tempo. Descreve cenas nos empregos, encontros com funcionários comuns também levados pela vassoura dos anos.
Na parte final, percebe-se o aumento da carga de sensibilidade, com a escrita de notações líricas sobre a perda da inocência, de reminiscências do pai e da mãe, e crônicas bibliográficas de corte poético. Este livro enriquece a vida de Silva Filho, que percorreu uma verdadeira via crucis, porém teve a felicidade de casar com uma mulher admirável, conquistar altos títulos acadêmicos, ter filhos, e construir um bonito convívio humano. Engrandece também a existência de nós contemporâneos por estarmos ali representados, e sobretudo a vida literária brasileira e piauiense.