Cunha e Silva Filho

 

   Ao longo do período venturoso que passei na CESB, evoluindo nas amizades com os meus companheiros de alojamento, é obvio que alguns colegas se me tornassem mais íntimos do que outros. A filtragem da amizade é uma coisa curiosa. Está muito relacionada a  ideias afins compartilhadas entre amigos tendo como base de sustentação o nível de liberdade, de confiança, de admiração mútua que se estabelece entre dois ou mais amigos.
    Tentando ser o mais possível justo com a minha consciência, vejo a figura altaneira, inteligentíssima de Antônio de Almeida, aquele jovem baiano de Ilhéus grande amigo que encontrei lá na Casa. Talvez em muitos aspectos, ele fosse mais amadurecido do que eu. Ao saber que me ia casar, logo lobriguei-lhe no olhar uma nuvem de tristeza e, agora, depois de tantos anos decorridos, a interpreto com mais clareza. Antônio de Almeida sabia que eu ainda era muito jovem, mal tinha completado vinte e um anos.
    Nem compareceu à cerimônia do meu casamento, em 15 de julho de 1967 na Igreja Nossa Senhora da Glória do Largo do Machado. Dos meus colegas da CESB, lembro apenas que estiveram presentes o maranhense Raimundinho e o paraibano João Ernesto, aquele que gostava de latim, tinha sido por um tempo, seminarista na terra natal. Estiveram também presentes os amigos de Elza, alunos dos cursos de licenciatura de química da Faculdade Nacional de Filosofia e outros da Faculdade Nacional de Química Industrial. Outro que compareceu, através de um convite da Elza, foi o ex-governador do Piauí, João Clímaco de Almeida, o Joqueira, que, por sinal se encontrava no Rio de Janeiro por algum motivo.Ela conhecia seu secretário e, por intermédio dele, num simples e casual encontro na Cinelândia, enviou o convite ao governador piauiense.
   Após a cerimônia, preparamos uma pequena e modesta festa para alguns convidados, realizada no lindo bairro de Santa Tereza. Ao final da festa, fui, com alguns amigos, para a Cinelândia, conversar um pouco. Depois, já era tarde da noite, regressara para a CESB. Minha esposa voltara para um internato em Laranjeiras.
  Só fiquei na querida CESB por apenas um dia mais. Cuidei de arranjar uma morada a fim de começar uma outra etapa de minha vida pessoal. Uma amiga da Elxa nos colocou à disposição um a casa velha mas confortável para passarmos uma semana de lua de mel. Era na Tijuca, justamente no bairro que, muitos anos depois, iria residir.
   De regresso a Teresina, o governador Joqueira transmitiu ao meu pai a notícia de meu enlace. Papai não aprovou, alegando que eu era muito jovem e ainda não estava preparado para o casamento. Mamãe deve ter tido a mesma opinião sobre o acontecimento. Por outro lado, em 1927, com vinte e dois anos, meu pai igualmente se casara no Rio de Janeiro. A história aí se repetiu. Com o tempo, meus pais foram aceitando, porém não completamente.
   Realmente, aos vinte e um anos, somos muito jovens para o casamento e, no meu caso, com uma agravante, não tinha ainda me formado nem tinha emprego certo, porquanto vivia de bico, dando aulas particulares de português e inglês pra amigos que conheci no Calabouço.
   Alguns bons amigos farão semre  parte de nossas  relembranças, como o maranhense João Nepomuceno, um moço esforçado, trabalhador, que cursava, se não incorro em lapso de memória, contabilidade numa faculdade. Morava, num pequeno apartamento, na época, em Botafogo. Suponho que na Rua Marquês de Abrantes. Toda vez que lhe ia dar aulas, almoçava com ele e era sempre bem tratado. Guardei sua lembrança no meu coração.
  Volto a falar de meu saudoso amigo da CESB, Antônio de Almeida. No dia seguinte ao meu casamento, , de pois que acordei, Antônio de Almeida se dirigiu a mim e, sem papas na língua, me afirmara que tinha feito algo precipitado. Não era tempo para casamento. “E a faculdade? E o emprego? E a moradia? Como vai resolver tudo isso, Francisco?” Me calei, pois sabia que, no fundo, ele estava certo e só queria o meu bem.
   Entretanto, me despedi de todos os que estavam presentes naquele dia. Não me lembro de ter dado um abraço apertado no meu amigo de Ilhéus, misto de filósofo e de historiador, leitor assíduo de Will Durant, apaixonado pela música clássica, uma inteligência de menino precoce. Estou a me recordar de um dia que com ele fui a uma favela de Copacabana, bem no alto, de onde se descortinava a paisagem da bela praia de Copacabana, um deslumbramento, um encanto da natureza soberana. É que lá morava um irmão dele, a quem fomos visitar.

  Antônio de Almeida tinha bom gosto em tudo, até na escolha de amigos. Se dava bem com as camadas pobres tanto quanto  com gente abastada, como aquele estudante de engenharia da PUC-Rio, educado, simples, morador de um amplo e luxuoso apartamento da Avenida Atlântica. Uma vez, me levou pra conhecer o estudante de engenharia. Tomamos café juntos. Ele nos pôs à vontade. Um café farto nos foi servido pela doméstica. Eu fiquei meio acanhado durante o café e, ao cortar um pedaço de queijo, estava comendo a casca dura quando fui aparteado pelo estudante: “Francisco, não precisa comer a casca, tire-a e coma apenas o queijo.” “Que gafe a minha!”. Os dois apenas riram e sem ironia.
  Dele gostava muito um amigo comum, muito mais velho que nós, mas pessoa culta, inteligente, conhecedora de história universal, adorava literatura, e de grande memória, Chamava-se Wismar. Não me lembro bem, mas acho que Wismar trabalhava na Imprensa Nacional.
  Uma simpatia de pessoa. Carismático, era um incondicional amigo de Antônio de Almeida. Sabia também que tinha uma grande admiração por mim, como se fosse um pai presente ou um tio querido.   Da última vez que o vi – acredito que foi numa rua perto da Mem de Sá -, ele me havia prometido ofertar um dicionário ou uma enciclopédia de escritores universais publicado em inglês. Combinamos de nos encontrar no Centro do Rio, mas, por um contratempo, não consegui realizar o encontro e pegar o exemplar.Dessa data em diante, nunca mais revi o querido amigo.
  Foi chegado o dia dos exames para a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). As provas se realizaram num antigo prédio do Tribunal Eleitoral, prédio antigo, com uma entrada em duas escadarias conduzindo ao interior do andar de cima. Hoje, aquele prédio, depois demolido, abriga o arranha-céu construído pela Academia Brasileira de Letras, Petit Trianon, que fica ao lado dele e a ele tem acesso, visto que a ABL mantém dois ou três andares do espigão para acomodar algumas seções da Casa de Machado de Assis.
   Não me membro se estava nervoso e apreensivo com as provas . Senti que me ia dar bem em todas as etapas. Me recordo da prova de ditado, feita por uma professora que iria me lecionar gramática inglesa em dois curso que faria com ela.
  A professora Regina Pinto. Séria, vestida com elegância, já madurona – lembro-me mais dos lábios dela, finos, com leve toque aristocrático, entrando  na sala da prova, que aconteceu no auditório daquele prédio do Tribunal, onde ainda teria aulas com o famoso linguista brasileiro, Mattoso Câmara Jr., chamado  pelo   também linguísta   brasileiro, Francisco Gomes de Matos, de o "Pai da Linguística" no Brasil.   Estávamos todos sentados calados, esperando pelo momento em que ela iniciaria a leitura um tanto pausada e com voz firme de acento britânico. Era um texto de extensão média. A leitura não se fazia com repetição de frases. Quem não acompanhasse, estaria em maus lençóis. (Continua).