Vista do centro histórico de Oeiras.
Vista do centro histórico de Oeiras.

Reginaldo Miranda[1]

Labora em indiscutível erro a informação contida na Cronologia histórica do Estado do Piauí, de F. A. Pereira da Costa, de que em 28 de janeiro de 1723, foi “provido no cargo de ouvidor da comarca do Piauí o dr. Vicente Leite Ripado”. Na verdade, nesta data quem foi provido no cargo de ouvidor geral da comarca do Piauí foi o dr. Antônio Marques Cardoso, que a instalou assumindo como seu primeiro titular. Leite Ripado, até então exercia sua jurisdição no Piauí, como titular da ouvidoria do Maranhão, onde morava e de onde fora desanexada a do Piauí.

Aliás, constituindo o território piauiense uma conquista recente no início daquele século começaram os pleitos pela instalação da Justiça mais próxima do primitivo colonizador. Carta Régia de 30 de junho de 1712, dirigida ao ouvidor- geral do Maranhão, Eusébio Capely, manda que ele vá ao Piauí e no lugar em que está situada a igreja matriz crie uma vila com senado da câmara, juízes, vereadores, almotacés, provedor e seu escrivão, e outro para o judicial, ou um só para ambas as escrivanias, com jurisdição para nomear escrivão da câmara e do judicial, se o não houver, sendo que das sentenças prolatadas por tais juízes caberia agravo ou apelação para a Relação da Bahia. Na mesma data, o rei comunicou também o fato ao governador e capitão-general do Estado do Maranhão, Cristóvão da Costa Freire (1707 – 1718), que anteriormente havia pedido a criação do cargo de juiz de fora no mesmo território. Acrescentou que depois de formada a vila com senado da câmara proveria o território de ministro de letras com 300$000 (trezentos mil reis) de ordenados lançados pelos sítios das terras que hoje possuem aqueles moradores, como eles mesmos ofereceram. Essa medida visava três objetivos básicos, a saber: evitar o cometimento de delitos por falta de castigo; pôr em arrecadação a fazenda dos defuntos e ausentes; e fazer as medições de terras (COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. 3ª Ed. Coleção Centenário 3. Teresina: APL, 2015).

Porém, em face do Levante Geral dos Índios que abalou o Piauí, essa carta não teve imediata execução, somente ocorrendo a instalação da vila com a denominação de Mocha, em 26 de dezembro de 1717, pelo ouvidor do Maranhão, Vicente Leite Ripado, que substituíra Eusébio Capely. No ano seguinte, foi criada a capitania do Piauí, porém só sendo oficialmente instalada em 20 de setembro de 1759, depois de 41 anos.

Conforme havia prometido o rei, cumprira a promessa de criar a Ouvidoria depois de instalada a vila. Assim, por Provisão de 18 de março de 1722, foi criado o cargo de ouvidor-geral da vila da Mocha do Piauí, reunidamente com os de provedor da real fazenda e dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos.

Em 28 de janeiro de 1723, foi nomeado para prover o dito cargo de ouvidor-geral da vila do Mocha, o bacharel Antônio Marques Cardoso, de cuja nomeação segue o principal trecho:

“Há V. Maj., de bem fazer-lhe mercê do lugar de ouvidor geral da Mocha do Piauhy, que foi o dito senhor servido mandar criar de novo, por tempo de 3 anos e além deles o mais que houver por bem enquanto lhe não mandar tomar residência” (PT/TT/RGM/C/0014. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 14, f.319 e v).

Em 6 de fevereiro seguinte foi passado Alvará determinando que o pagamento do novo ouvidor fosse da forma seguinte:

“Há por bem que o dito ouvidor geral da Vila da Mocha do Piauhy criado de novo em que o dito Bel. Antonio Marques Cardoso está provido vença de ordenado cada ano 300rs e de aposentadoria para casas 100rs, pagando tudo pelo rendimento dos dízimos da capitania do Piauhy e que possa levar as mesmas assinaturas que leva o ouvidor geral do Maranhão” (PT/TT/RGM/C/0014. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 14, f.319 e v).

Em 10 de março do referido ano de 1723, foi assinada Provisão determinando que se lhe anexasse a Provedoria da Real Fazenda, pelas razões seguintes:

“‘Houve S. Maj., por bem por ter Resoluto que se crie de novo na Vila da Mocha do Piauhy, distrito do Maranhão, o lugar de ouvidor geral e que a ele se anexe a Provedoria da Fazenda Real, para que por este meio se ajude dos emolumentos desta ocupação, quanto poder passar mais comodamente visto não haver de ter negócio por lhe estar proibido e o dito Bel. Antônio Marques Cardoso estar provido pelo Tribunal do Desembargo do Paço no lugar de ouvidor geral da dita Vila da Mocha do Piauhy, criado de novo: Há S. Maj., por bem fazer-lhe mercê de que sirva juntamente com o dito lugar de Ouvidor Geral o de Provedor da Fazenda Real daquela Capitania, debaixo da posse e juramento que se lhe der do dito lugar de Ouvidor geral com o qual o ofício de Provedor da Fazenda não haverá ordenado mas somente as propinas, proes e percalços que em razão do dito ofício de Provedor da Fazenda lhe tocarem” (PT/TT/RGM/ C/0014. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 14, f.319 e v).

Foi também anexado o cargo de Provedor dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, por Provisão de 9 de março de 1723:

“Houve S. Maj., por bem tendo respeito ao que se representou por parte do Bel. Antônio Marques Cardoso, que ora vai servir no lugar de Ouvidor geral da vila da Mocha do Piauhy criado de novo e a estes lugares andarem anexos os ofícios de Provedores dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, por ser muito conveniente servirem-se por um Ministro de Letras, de toda a satisfação para a boa arrecadação delas, e confiando do dito Antônio Marques Cardoso, que em tudo o de que o encarregar servirá muito a satisfação de S. Maj.: Há por bem fazer- lhe mercê da serventia de Provedor das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos da vila da Mocha do Piauhy, pelo tempo e distrito em que servir  o  lugar de Ouvidor, se o dito Senhor antes não mandar o contrário, com o qual haverá os proes e percalços diretamente conforme ao Regimento que será obrigado a ter, e lhe pertencer com declaração feita na forma de semelhante Provisão registrada à fl. 160. De que lhe foi passada Provisão a 9 de março de 1723” (PT/TT/RGM/C/ 0014. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 14, f.319 e v).

Em seguida, ainda na Corte, faz pleitos e solicita diversas informações sobre os novos cargos que iria ocupar. Também, pede “se lhe conceda licença para poder fazer os Regimentos aos oficiais de justiça e fazenda da dita vila, e a avaliação dos ditos ofícios para se saber o quanto dos provimentos se devia de novos direitos a pagar, se lhe deferiu se regulasse no que respeitara aos salários que o ouvidor-geral do Maranhão tinha e no que tocara aos oficiais, pelo que a Ordenação dispunha, e porque os salários que o dito ouvidor-geral tem, pertencem a semelhante ocupação e a diferente fim, que é o de suas assinaturas, que se não devem aplicar aos oficiais de justiça o que dispõe a Ordenação, a respeito deles não poder ter lugar por se achar derrogada nessa parte, porquanto aos oficiais de justiça e fazenda do Estado do Maranhão, tem notícia o suplicante se acham feitos Regimentos Particulares, em que se lhes tem determinado seus salários, considerando-se o valor que o papel no dito Estado tinha e a distância das diligências”. Pede também que o ofício de meirinho geral da vila da Mocha seja ocupado por Antônio Lopes Pimentel, que serviu no Estado da Índia por oito anos, oito meses e quinze dias, com boa satisfação e igual procedimento, sendo filho de Manoel Lopes Elvas, também com serviços prestados. Solicita ainda que se lhe pague o ordenado desde o dia em que embarcar na Corte, como se costuma proceder com os ministros que vão servir nos lugares ultramarinos. Por fim, em face de lhe ter sido prometida ajuda de custo para a viagem no valor de seiscentos mil reis, para ser paga no Maranhão, pede que a mesma seja paga em Pernambuco em razão de ter viajado por aquela parte (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 12, 17, 20 e 24).

No mesmo período, solicita concessão de perdão aos criminosos de sua jurisdição na forma que se concedeu aos de São Paulo quando ali se iniciou a justiça, porque não parece justo que ao tempo em que se cria um lugar, que tem notícia ser povoado com alguns destes, que se diz, serem os mais opulentos dele, se ache com o temor da justiça deserto, por cuja causa, para o maior sossego, se concedeu o mesmo indulto algumas vezes a vários moradores do Maranhão, que se achavam criminosos”. Para executar suas decisões e dar-lhe proteção, pede vinte soldados tirados da praça do Maranhão junto com um sargento ou alferes, os quais sendo casados podem levar suas mulheres para aumentarem a povoação. Pede também autorização para a criação de novas vilas, a fim de sujeitar o gentio, trazendo-os ao doméstico trato e ao grêmio da igreja. No que se refere à vila da Mocha, por notícias recebidas, pede que se lhe autorize criar os ofícios da justiça, que ainda não existiam, a construção da casa da câmara e cadeia, que também não existiam, porém, sugere sejam essas construídas em outro local, justificando: “No distrito da dita vila se diz haver melhor fundação para ela, do que aquela em que está estabelecida, em a qual com o consentimento do povo, sendo mais salutífera e capaz do comércio, que segundo a qualidade da terra se permite, se lhe deve dar faculdade se faça as casas que houverem de servir de câmara, audiência e cadeia, porque nesta forma se continuará a povoação nesse limite, e por razão do sítio se aumentará”. Pede seja concedida uma légua de terras para patrimônio e renda da vila, privilégios de jurisdição aos seus moradores na própria vila nas causas que demandarem, sendo esse pleito negado pelo Conselho Ultramarino; sejam dirimidos conflitos de jurisdição com as capitanias vizinhas, especialmente relativo ao Riacho de Parnaguá, instrução sobre arrecadação dos dízimos e, por fim, autorização para sondar a barra da Parnaíba e ver a possibilidade de estabelecer um porto de mar para dar saída à courama dos muitos gados e madeira que nela se criam, o que lhes foi deferido (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 19).

Percebe-se, assim, que além de implantar a estrutura judiciária, se preocupou com diversos outros aspectos administrativos e econômicos, inclusive em dirimir litígios territoriais e levar paz aos moradores.

O bacharel Antônio Marques Cardoso, nasceu em Lisboa, por volta do ano de 1685, sendo filho de Crispim Marques Viana e de sua esposa. Foi na cidade natal que fez todos os seus estudos iniciais, posteriormente matriculando- se na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra, em 1º de outubro de 1703. Em 14 de junho de 1709, alcançou o grau de bacharel, mas só colando grau em 23 de dezembro do mesmo ano. Não sei se por motivo de doença, somente em 6 de outubro de 1714, formou-se em Leis na mesma instituição de ensino. Foi casado com Francisca Clara Xavier Vilela (PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/C/001865.PT/TT/RGM/D/0002/63197. Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 2, f. 455).

Iniciando-se na vida pública, em 3 de novembro de 1717, foi aprovado e nomeado para o cargo de Juiz de Fora das vilas de Torrão e Ferreira pelo tempo de três anos e além desse o mais que houvesse enquanto se lhe não tomasse residência. Na verdade, permaneceu no exercício desse cargo até sua nomeação para a Ouvidoria e mais cargos anexos no Piauí, conforme foi demonstrado (PT/TT/RGM/C/0009/381100. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 9, f.276).

Portanto, reunindo grande soma de poderes partiu o bacharel Antônio Marques Cardoso, de Lisboa em navegação direta para o porto do Recife e não do Maranhão, como se esperava. Dali seguiu para o Ceará de onde subiu pelo vale do Jaguaribe até o sertão, tomando a direitura da vila da Mocha, montado em lombo de animais, onde foi festivamente recebido pelo senado da câmara, vigário e mais governança do lugar, tomando posse e, assim, entrando no exercício das funções para as quais fora nomeado, em 28 de janeiro de 1723. Os documentos de sua nomeação foram registrados na Secretaria do Estado de Belém do Pará, em 25 de julho de 1724. Sua chegada foi assim anunciada pelo governador do Maranhão, João da Maia da Gama, em carta a El-rei, data de 24 de agosto de 1724:

“Chegou à vila da Mocha e Capitania do Piauhy, o novo ouvidor geral dela, Antônio Marques Cardoso, e pelos avisos que tive do Jaguaribe e Capitania do Ceará, por onde passou, e da do Piauhy, aonde assiste, me consta a sua liberalidade, limpeza e desinteresse, bom modo e habilidade para todos, e a grande prudência e capacidade com que vai estabelecendo os fundamentos da República; e como desde o ano passado lhe tinha remetido várias ordens para devassas e residências, e pedido várias informações me respondeu a tudo com muita clareza e individuação, e com documentos jurídicos de tudo, no que se conhece claramente o seu zelo, reta atenção, capacidade, letras e talento, o que me pareceu pôr na Real presença de V. Maj., e beijar a Real mão pela acertada eleição de um ministro tão capaz como pedia a necessidade daqueles povos, e para estabelecer aquela nova República, e dar-lhe a forma que deve ter pois do princípio depende tudo” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 26. Cx. 2. D. 129).

Chegando à vila da Mocha, Antônio Marques Cardoso lançou-se ao trabalho com afinco e denodo procurando estabelecer a estrutura de governo, instalando as serventias para as quais estava autorizado, assim como fazendo pleitos e sugestões para a criação e estabelecimento de outras. Sobre o assunto é esclarecedora a correspondência de Maia da Gama:

“É uma das principais dizer-me o Ministro que suposto há câmara e justiça na vila da Mocha, a não há nas mais freguesias, as quais necessitam ao menos de um juiz e de um escrivão, cuja necessidade me representava e pedia o meu parecer ou disposição; respondi-lhe com o exemplo da Parahiba, e do juiz que se tinha criado para o Piancó e Piranhas, como V. Maj., foi servido determinar e aprovar, e que visto a necessidade, e não haver câmaras nas ditas freguesias, me parecia que o dito Ministro com a Câmara da Mocha, elegessem um juiz para cada uma das freguesias até Resolução de V. Maj., a quem eu daria conta como faço por esta, para que sendo V. Maj., servido mande passar as ordens para se fazer um juiz e criar um escrivão, que o seja também do público, judicial e notas em cada uma das freguesias” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 26).

Sobre a situação patrimonial da vila da Mocha, é esclarecedora a presente correspondência:

“Também me dá conta de que a terra em que está a vila, era da que se repartiu para a Igreja, e passais do vigário, e que seria necessário comutar aquela terra por outra, que se desse à Igreja e que aquela ficasse para a Vila, para se aforar para a câmara, ficando desta uma légua de terra para o referido, e a isto respondi que se informasse se o vigário aceitaria outra terra em lugar daquela, e que antes de se aumentarem os edifícios, visse se a situação da vila era capaz porque me diziam que era em uma baixa e em um lamaçal, por cuja causa era mui doentia, e que visse consultando a câmara e aqueles moradores se havia melhor lugar e sítio mais capaz para se estabelecer a dita vila, e que me informasse para dar conta a V. Maj., porque muitas vezes se choram ao depois sem remediar a eleição de semelhantes fundações, e sobre esta matéria espero também Resolução de V. Maj.” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 26).

Recebeu também incumbência pelo general do Estado de ir à impropriamente dita vila da Parnaíba, tirar a residência do capitão-mor João Gomes do Rego, para cuja diligência pediu o auxílio de soldados, assim também para o acompanharem nas correições que haveria de fazer, com receio de assalto por parte do gentio. Esse assunto também é abordado em correspondência de 31 de agosto de 1724, que trata ainda de salários a vencer nas diligências, remessa de devassas da guerra, regimento dos presos, arrecadação de bens dos ausentes, valores dos dízimos do Piauí a serem cobrados pela primeira vez no Piauí e da oposição que fazia o provedor do Maranhão para permanecer ali cobrando, no que contou com o apoio do governador Maia da Gama, que muito elogiou o zelo, prudência, conhecimento e rigorosa honestidade desse homem com foros de estadista que assumia a testa da justiça e finanças no Piauí (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 26).

Em 3 de fevereiro de 1726, trata com o governador e capitão-general do Estado do Maranhão, João da Maia da Gama, sobre as condições da arrematação do contrato dos dízimos reais do Piauí de 1726 a 1731. Esse assunto volta a ser abordado em 28 de julho do mesmo ano, no entanto, em 29 de junho havia falecido o contratador Domingos Jorge, sem ter cumprido as condições do contrato (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 28, 29 e 31).

Nesse mesmo ano reclama dos constantes roubos e descaminhos de gado nos caminhos de travessia para o sertão de Pernambuco, Bahia e Minas, onde muitos daqueles habitantes os espalhavam com espantos para depois os recolher, em prejuízo dos criadores e da Real Fazenda. Sugere a el-rei que promova devassa geral e instrua os demais ouvidores, assim como os juízes ordinários de Rodelas e Jacobina a questionarem tais boiadeiros, examinando marcas e pronunciando os culpados (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 68).

Em meados do ano de 1724, o bacharel Antônio Marques Cardoso mandou um dos juízes da freguesia de Nossa Senhora da Vitória (Mocha) ir tirar devassa no Riacho de Parnaguá. No entanto, sofreu este oposição do juiz ordinário da Barra do Rio Grande do Sul, que fez chegar sua representação ao Ouvidor do Piauí, dizendo que aquela região se achava na posse dos juízes seus antecessores que ali administravam a justiça. Então, Marques Cardoso comprovou àquela autoridade e ao Vice-Rei do Brasil, que os dízimos do Riacho de Parnaguá e de toda aquela região cujas águas corriam para o rio Parnaíba, pertenciam à freguesia de Nossa Senhora da Vitória desde a edição da Resolução de 13 de março de 1702, que assim determinou. Entretanto, tomou uma medida efetiva que veio extirpar de vez as pretensões de Pernambuco àquela região. Conforme comunica em 10 de janeiro de 1727, em face da distância de mais de cem léguas, não se podendo aplicar justiça pelos juízes da Mocha sem grande opressão das partes, Cardoso influenciou a câmara para eleger “um juiz para o dito Riacho por ser povoação, que contava de muitos vizinhos, os quais por não virem a esta vila deixavam muitas vezes perder as suas causas, e quando lhes era preciso tratar de algumas tinham grande discômodo na assistência da dita vila, aonde também lhes custava muito conduzirem testemunhas, e na mesma forma ficava difícil a justiça trazê-la à mesma vila para as devassas, em que muitas se deviam tirar, que ao tempo das diligências que no dito riacho se faziam, não se achavam na terra”. Este juiz tomou posse na câmara da dita vila em maio do mesmo ano (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 32, 59 e 60).

Na mesma correspondência de 10 de janeiro de 1727, o Ouvidor Antônio Marques Cardoso comunica a el-rei, que em virtude da distância entre aquela vila e a da Parnaíba, de cento e dez léguas para a parte norte, “se elegeu outro juiz para a dita vila e freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, ao que se não pôs dúvida alguma, nem entendo haverá em aceitarem os juízes que se elegeram”, tendo este tomado posse em junho do mesmo ano (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 32 e 59).

A alçada desses juízes era determinada pelos capítulos terceiro e oitavo do Regimento dos Ouvidores do Maranhão, de que se usava no Piauí, permitindo- se-lhes nas causas cíveis a alçada permitida aos ouvidores do Maranhão e nas criminais somente tomarem conhecimento cabendo apelação e agravo para o Juízo da Ouvidoria. Pediu a el-rei também a criação de mais três juízes com a mesma alçada nas freguesias de Santo Antônio do Surubim e Santo Antônio do Gurgueia, para se evitarem os escandalosos delitos que por falta de justiça padeciam; “também na passagem da ribeira da Parnaíba, que faz caminho para o Maranhão, se carece de vara de justiça com jurisdição especial para devassar dos crimes que acontecem sendo dessa qualidade, e de receberem querela para se evitarem algumas desordens que podem suceder com o concurso de homens de negócio, que de presentemente se vão ao Maranhão, donde conduzem os panos de algodão, com que tratam nesse sertão, e fora dele até dentro das Minas, o que tudo mandará V. Maj., o que for servido” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 32).

A esses juízes foram criados os cargos de tabeliães, sendo que o de Parnaguá foi com provimento de Provedor dos Defuntos e Ausentes, sendo nomeados também provedores para as freguesias de Santo Antônio do Surubim e Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca, junto com os cargos de tabeliães para escreverem inventários, testamentos e o mais que respeitasse ao dito ofício (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 59).

Em 23 de setembro de 1727, a preocupação de Marques Cardoso era para resolver as queixas do marchante da vila da Mocha, que havia arrematado os dízimos com a condição de que os donos dos gados preferissem a ele na venda dos animais e não os vendendo, que cortassem no açougue pagando-lhes o subsídio. Porém, estava esse arrematante enfrentando concorrência desleal por parte de pessoas de fora que adquiriam o gado sem respeitar aquela preferência e vendendo a arroba por oitenta reis a menos do que tinha sido arrematado. Deferindo esse pleito junto com a câmara, mandou fixar edital no lugar de costume. Entretanto, “foi o mesmo riscado e alterado por Manuel Peres Gutierres e Floriano Correia de Brito, ambos moradores em uma casa e naturais de Pernambuco, sendo o dito Manuel Peres homem tumultuoso e de má consciência, que tinha fugido das Minas por crimes e por esse respeito se prenderam”. Disse que o mesmo Manoel Peres era mal visto porque desde que chegou à vila tinha colocado alcunha em muitos moradores e, também, suspeitava ser ele autor de alguns papéis apócrifos que vez ou outra circulavam na vila. Todavia, antes desses fatos fora ele aceito como rábula. “Floriano Correia serviu o ofício de juiz de órfãos mas foi suspenso por mal procedimento”. Por fim, foram condenados pelo crime de conjuração a quatro anos de degredo no Maranhão e Pará, respectivamente, prendendo-se de imediato com guarda à porta. Ao comunicar esses fatos desabafou de forma a exprimir sua real situação: “... estou neste sertão muito remoto sem defesa alguma e sem oficiais de justiça de que se carece para se administrarem, e sem cadeia capaz, e pouco segura e só com a companhia de semelhantes homens, uns  pelo seu mau ânimo, como este Manoel Peres Gutierres, e outros pela sua rusticidade não têm temor algum de Deus, e assim sem poder algum só se faz justiça como se pode, e não como se deve fazer, porque em outra forma poderia ter sucedido algum absurdo, a que se não pudesse acudir sem grande desordem” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 34).

Em 3 de outubro de 1727, o Ouvidor Antônio Marques Cardoso faz alguns pleitos e ponderações baseadas numa sessão do Senado da Câmara de 15 de dezembro de 1718. Naquela oportunidade pediram os oficiais que a câmara fosse autorizada a passar carta de seguro, obrigando-se à correição de Ministro a cada três anos; também, que a remessa do dinheiro do cofre dos defuntos e ausentes fosse mandada para a Bahia, porque era de prejuízo para o Maranhão, onde o pagamento nunca era no mesmo gênero remetido, bem como a remessa para o reino corria risco de descaminho em face dos navios não serem comboiados por naus de guerra, como o eram pela Bahia, discordando apenas da remessa do cofre dos defuntos e ausentes com fundadas alegações; sobre os riscos da remessa do dinheiro ponderam os vereadores que no caminho do Maranhão havia risco de ataque do gentio e no da Bahia do assalto de ladrões, pois existem trechos desertos; pedem ajuda para construírem cadeia e casa da câmara, pois não tinham renda, sendo a terra em que se achava a vila concedida a Nossa Senhora. No que se refere à cadeia, esclarece o ouvidor, que depois que chegou usara parte da casa de um oficial de justiça e depois a casa toda, sendo aquele obrigado a desocupá- la, onde colocara um tronco que se seguiu outro para prender os detentos; depois, tentando construir prédio mais seguro esbarrou na falta de pedreiro e carpinteiro no lugar, apenas sendo construídos os alicerces pelos escravos de um morador que se oferecera a construir. Naquela ocasião, pediram também os oficiais da câmara a nomeação de ouvidor para o Piauí, porém, como esse pleito não foi unânime, alguns se colocando contra a presença de tal autoridade, somente em 16 de janeiro de 1721, foi aquela correspondência assinada pelos oficiais daquela gestão, de que agora nos informa o ouvidor Cardoso. Foi com base nesse documento que ele teve a certeza de que nem todos os moradores desejavam a presença da justiça no Piauí de antanho (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 35).

Desde que fora nomeado Provedor da Real Fazenda do Piauí, cujo cargo era anexo ao de Ouvidor-geral, o doutor Antônio Marques Cardoso procurou inteirar-se da forma pela qual se arrendavam os dízimos reais no mesmo território. E constatou que os mesmos se arrematavam na cidade do Maranhão, obrigando- se os rendeiros a pagarem sua obrigação na mesma cidade, pela moeda nela corrente, introduzindo para essa satisfação fazendas do reino, o que parecia útil à Real Fazenda pelos lucros que na mesma cidade deixavam as fazendas.    Então, depois de indagações foi autorizado a fazê-la da mesma forma, agora na vila da Mocha, onde residia. No entanto, enfrentou alguma oposição do Provedor do Maranhão, que ali também tentou realizá-la, sendo logo dirimido esse conflito pelo governador João da Maia da Gama, em face da provisão real que trazia. Por essa razão atrasou a dita arrematação, que deveria ter sido feita em janeiro de 1725, porém, só ocorrendo em março de 1726, na vila da Mocha, pela primeira vez, e pelo espaço de três anos e preço de sessenta e oito mil cruzados, a ser pago em pano de algodão, na cidade do Maranhão, como era costume desde o ano de 1700, acrescentando-se mais oito mil cruzados do preço de sessenta mil cruzados porque se tinha arrematado os três anos antecedentes. Todavia, conforme se disse, porque faleceu o contratador dos dízimos sem ter pago a fiança de que se obrigou, foi necessária nova arrematação em praça, o que desta segunda vez foi feita pelo preço de setenta e cinco mil cruzados, crescendo, assim, mais sete mil em benefício da Real Fazenda. Interessante ressaltar, que o pagamento da arrematação seria pago em quatro prestações no decurso de sete anos. Foi esta, pois a primeira arrematação de dízimos reais feita no Piauí, depois de ter sido realizada no Maranhão e, mais remotamente, em Pernambuco (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 35).

Com o impedimento do rábula Manoel Peres, desde setembro de 1728, foi pelo ouvidor admitido para advogar no foro da vila o licenciado Manoel de Souza de Araújo, advogando com aceitação, bom procedimento e prática do direito civil e canônico, sendo a licença renovada anualmente por provisões do vice-rei do Brasil e do governador e capitão-general do Maranhão. Por essa razão, em 1733 solicita este licenciado a el-rei provisão definitiva para advogar tanto na vila da Mocha quanto no Maranhão (ACU. ACL. CU 01. Cx. 2. D. 99). Em 10 de julho de 1729, o Provedor-mor da Real Fazenda do Maranhão, informa ter pago ao desembargador Antônio Marques Cardoso, o seu ordenado e a ajuda de custo, que fora mandado pagar com preferência a qualquer outra despesa, depois de pago o governador do Estado, o que foi feito com recurso arrecadado na mão de Manoel Marques Padilha, contratador dos dízimos que tinha sido da Capitania do Piauhy (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 36).

Em 4 de setembro de 1727, enviou ao Conselho Ultramarino carta com cópia do Regimento que fez disciplinando os emolumentos que deviam perceber os oficiais de justiça e fazenda da capitania do Piauhy. Fora autorizado a elaborar tal documento por provisão de 8 de janeiro de 1723. Esse Regimento foi elaborado junto com os oficiais da câmara e tomando por base o do Maranhão, sendo confirmado por el-rei por Provisão de 18 de junho de 1728 (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 51).

 

Por Provisão de 28 de novembro de 1727, foi o bacharel Antônio Marques Cardoso mandado averiguar e informar dos emolumentos que levavam as irmandades das igrejas existentes em sua jurisdição, pois haviam queixas de que eram imoderados e resultando em grande clamor. Depois de bem averiguar informou o ouvidor por carta de 13 de novembro de 1729, que não haviam excessos e nem queixas dos fregueses (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 52).

Em 25 de novembro de 1729, indaga sobre a quantia a cobrar do mestre- de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, que então morava no Maranhão, por ter sido fiador do antigo Tesoureiro do Dízimo da Alfândega da Bahia, José de Sousa da Silva, da importância de cinco contos, trezentos e nove mil e quarenta e dois reis. É que recebera carta precatória do desembargador Bernardo de Sousa Estrela, Provedor Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil, responsável pela execução forçada dos bens (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 53).

Em 2 de dezembro de 1729, sendo advertido, justifica que não se omitiu na cobrança das condenações devidas às despesas da Relação da Bahia, em prejuízo da Real Fazenda, informando que não efetuou este pagamento porque não recebeu instrução do Chanceler daquela Relação a ordenar tal procedimento. Esclarece que somente consta de certidão a quantia que foi condenado o réu Luís Cardoso Balegão, a quem não se arrecadou por não ter bens suficientes ao ressarcimento da importância que devia ao juízo dos defuntos e ausentes, sendo também necessário para satisfazer a obrigação arrecadar de seu fiador, Miguel de Araújo Reimão (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 53).

Esse foi o último ato aqui praticado pelo bacharel Antônio Marques Cardoso, logo se retirando para a Bahia, onde continuou servindo àquela Relação, depois de mais de cinco anos de serviço efetivo à frente do judiciário e arrecadação de fazenda no Piauí, onde prestou relevantes serviços. No dia seguinte, entregou os cargos e deu posse ao seu sucessor, José de Barros Coelho, que lhe tirou residência[2] remetendo devassa para o reino em 9 de janeiro de 1730. Declara o referido sucessor “ter o dito bacharel [Antônio Marques Cardoso] experimentado um excessivo trabalho na criação do dito lugar, por abominarem os moradores dele a justiça em razão de estarem costumados a viver na liberdade, matando e roubando e de se embolsarem dos bens dos defuntos e ausentes, de que resultou haverem ranchos e confederações contra o dito Ministro para o matarem por este os obrigar a que repusessem o que deviam aos ausentes, sendo o principal intento roubarem os cofres que o mesmo Ministro tinha em sua casa pelo risco que corria na Tesouraria. Achei outrossim ter servido com boa satisfação e limpeza de mãos” (ACU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 55).

Portanto, em sua gestão houve-se com equidade, zelo e prudência, assim instalando a justiça na vila da Mocha, hoje cidade de Oeiras e em outras longínquas freguesias e curatos do Piauí de antanho. Arrecadou bens de ausentes, dízimos reais, fazendo muitas remessas desses recursos, insinuou modos de cobrar dívidas dificultosas, sugeriu meios de defesa das boiadas, tirou muitas devassas de crimes, insultos, mortes, violências e guerras, assim como puniu e prendeu criminosos com risco da própria vida, pois não tinha o aparato policial desejado. Estimulou o povo a construir casas de cadeia e câmara, entre outros tantos feitos de repercussão. Em tudo agiu em sintonia com o governador do Maranhão e capitão- general do Estado, João da Maia da Gama, com quem desenvolveu salutar afinidade administrativa. Por fim, arrecadou tributos e promoveu justiça inscrevendo seu nome como pioneiro do judiciário em terras do Piauí.

Posteriormente, em 12 de novembro de 1735, foi nomeado para o lugar de Ouvidor-geral do crime da dita Relação da Bahia, onde exerceu o cargo de desembargador pelo espaço de 15 anos, 6 meses e 11 dias. Permaneceu nessa função até 30 de outubro de 1745, quando foi removido para a Relação do Porto, ocupando a vaga aberta com o óbito do desembargador Manoel Dias de Lima, em cujo cargo alcançou a aposentadoria em 3 de janeiro de 1750, com o ordenado, propinas, emolumentos e honras que lhe pertencem. Foi também agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo, cuja tença, em 1757, renuncia em parte para a esposa e em parte para o doutor Antônio Francisco da Silva, provavelmente um protegido, assim indicando a ausência de filhos consanguineos (PT/TT/RGM/ C/0014. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 14, f.319-319/v; PT/TT/RGM/C/0040. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 40, f.375. PT/TT/RGM/D/0002/63197. Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 2, f. 455).

Com essas notas resgatamos importante capítulo da história piauiense e, de quebra, prestamos justa homenagem a um pioneiro que enfrentando toda sorte de adversidade, muito serviu à nossa terra implantando bases sólidas que ainda hoje perduram.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí.

[2] Residência, significa o exame feito ou a informação que se costumava tirar do procedimento de um ministro ou governador a respeito do que procedeu nas coisas de seu ofício, durante o tempo que residia na terra em que exerceu.