Amanhã, dia 16, Arthur Engrácio faria 85 anos se estivesse vivo.
Ele é um dos maiores escritores do Norte do Brasil, reconhecido internacionalmente.
Fui eu quem lhe informou que ele estava numa antologia americana.
Ele era um grande amigo à distância e, de todos os críticos da literatura amazonense, um dos poucos que reconhecia meu nome, ele e Anísio Mello.
Nós nos correspondíamos com frequência.
Nasceu em Manicoré, rio Madeira, no Amazonas, no dia 16 de abril de 1927, era jornalista em Manaus, escreveu contos magníficos. Em 1960, publica Histórias de Submundo, depois Restinga, 1976; Ajuste de contos, 1978; Contos do mato, 1981; Estórias do rio, 1984; 20 contos amazônicos (coletânea), 1986; Outras estórias de submundo, 1988; A Vingança do boto (coletânea), 1995. Romance: Áspero chão de Santa Rita, 1986. Organizou ainda a Antologia do novo conto amazonense, em 1971. E vários livros de crítica literária.
Faleceu em Manaus no dia 2 de abril de 1997.
Vamos reler um conto de Arthur Engrácio, do seu livro Contos do mato::
“A Vingança do boto
I
Tinha pressa de chegar. Nicó, no fundo da maqueira, escanzelada que só uma cachorra velha, já devia ter feito umas cem promessas para ele voltar. O danado do peixe o levara longe, mas ali estava estendido, a bocarra aberta para ele como se quisesse dirigir-lhe insultos ou palavras de recriminação. Bom aquele momento. Sentia que depois da luta com o pirarucu, os nervos se relaxavam, a cabeça voltava ao normal. Bom mesmo aquele momento. Não fosse a cabocla doente, suspenderia o remo dágua e deixaria que a canoa por si só fizesse a viagem de retorno. Experimentaria com mais deleite aquela brisa gostosa que a hora do crepúsculo deixava escapar, agitando de leve as flores dos mururés. Retirou por um instante o remo dágua, juntou as mãos em concha e pôs-se a beber. As escaramuças com o bruto o deixaram sequioso. Depois lavou o rosto e atirou uma golfada dágua no peixe, que continuava a olhá-lo, a bocarra aberta, os olhos vermelhos de vingança.
– Conheceste, pai-d’égua!?
Tática ele tem. Força está naqueles enormes músculos, que sobem e descem acompanhando o ritmo do remo. A questão é encontrar mais pirarucu para matar, tirar-lhe as escamas, abrir-lhe a carne em postas e ir vender pro seo Euzébio. Não gosta de pensar no seo Euzébio. Por Deus!, lhe vem logo aquela quizília besta que lhe dá vontade de acabar com a sua raça. Nicó já lhe tem dito: “Por que tu não procura outro patrão, Zé? Com esse seo Euzébio, nós não vai alevantar nunca a cabeça, te digo!...” Procurar outro patrão, como? Se ele era cativo do danisco, devia ao praga até os fios dos cabelos!? Sim que havia uma esperança – muito remota, sim, mas havia.
Mergulhado em seus pensamentos, Zé Porfírio não percebe que os primeiros morcegos e as primeiras corujas já começam a arrastar a noite pelo caminho. Sua visão é mais curta, mas a brisa é mais fria e suave. E ele pensa. Pescaria, doença de Nicó, safadezas do seo Euzébio. Todo ano projeta pagar sua conta e levantar acampamento, procurar vida melhor, botar roçado, ter ao menos quatro pés de maniva. Chegar com o estuporado e atirar-lhe aos pés uma canoa abarrotada de borracha e mantas de pirarucu. “Taí, seo unha-de-fome! Agora é riscar a nossa continha, se faz favor!” Depois, para debochar dele, encher as mãos com a sua coisa e mostrar ao diango.
“– Tome, seo Euzébio, o que o senhor carece é disto pra não ser ladrão. Tome!...”
Sorri de si mesmo, enquanto maneja o remo com mais força. A febre deve estar assando Nicó. Engraçado. Pensa tudo isso, mas na frente do seo Euzébio se desmancha em mesuras, o chapéu de palha varrendo o chão. Gostaria de saber por que a sua coragem tem a natureza de lagartas.
II
Zé Porfírio rema com mais rapidez para fugir do bando de botos que lhe persegue a montaria. Estariam atraídos pelo sangue do peixe? Não trouxe a espingarda, se tivesse trazido já teria largado uma carga de chumbo nesses cabeças furadas. Volteiam a canoa, dão mergulhos alternados e soltam assobios que fazem estremecer as folhas das árvores próximas. A escaramuça dos animais não o intimida, mas o deixa nervoso. Boto é bicho encantado, todo mundo diz, tem parte com o Capeta. Maria Castanheira é quem sabe de uma estória estranha desse irmão do Chifrudo. Faz muito tempo, no lugar Sapucaia, pela festa de Santo Antônio, o Boto apareceu. Vinha vestido de branco, de gravata borboleta, o chapéu de palhinha jogado de lado na cabeça. Os olhos muito azuis e brilhantes, pareciam ter por dentro uma carga intensa de luz. Na porta do salão, ajeitava constantemente a gravata, corrigia a posição do chapéu na cabeça e olhava com estranho interesse os dançantes. Não estivessem eles tão absorvidos pela festa, veriam que, por onde o Boto passava, ia deixando uma esteira luminosa, que parecia magnetizar os que eram tocados por ela.
A festa entrava, já, pelos cinco dias e cinco noites e os festeiros não tencionavam parar. Bebida era como nunca se tinha visto, os quartos de anta e veado, paca e caititu, nos espetos, fumegavam sobre o braseiro colossal. Nunca havia presenciado coisa assim. Nenhuma preocupação lhes perturbava o espírito, o que queriam era dançar, beber, comer e amar. Ao som do violão e do cavaquinho, do maracá e das tabocas, os corpos bamboleavam cheios de lubricidade. Só Maria Castanheira não dançava, havia ido ali para pagar uma promessa. E foi assim que ela pôde ver o mal-assombrado aproximar-se do salão. Sem se perturbar, fazendo de instante a instante o sinal-da-cruz, correu para avisá-los. Acenou-lhes com a mão, gritou-lhes em alta voz, mas em vão. Ouviam-se apenas os gritos dos brincantes reboarem no salão acompanhados da voz ensurdecedora da orquestra. Uma alegria quase diabólica contagiava o ambiente. Mulheres incitadas pelo álcool, nuinhas atiravam as vestes para todos os lados. Foi aí que o Encantado entrou. Correu a vista pela sala e sua atenção, como flecha que busca o alvo, caiu sobre Jacira, a cabocla mais faceira de Sapucaia. Perto dela, falou:
– Vamos dançar esta parte?
Ela o olhou de cima a baixo, o beiço virado de deboche e respondeu que não dançava com desconhecidos. O estranho, como se houvesse recebido forte bofetada, a passos largos, retirou-se da sala. Maria Castanheira, que tudo presenciava, saiu-lhe nas pisadas e pôde ver quando ele se atirou nágua, indo boiar no meião do rio, assoviando o seu assovio de Capiroto. Não tinha mais dúvida. Era ele mesmo, o Boto, que tinha vindo flechar Jacira, a cunhã de corpo belo e recendente a pripioca e que, por diversas vezes, quando estava nos seus dias e ia lavar roupa ou se banhar, ele já havia tentado flechá-la. E iria vingar-se, que o Boto é vingativo. Em vão tentou chamar de novo a atenção dos festeiros – eles só dançavam e riam, acompanhados de um batecum feroz, satânico, formando com a música uma cadência impressionante. Via que era mesmo inútil trazê-los à realidade, e tratou de retirar-se. Foi ela entrar na canoa e a terra começou a estremecer, surgindo enormes fendas que iam engolindo a multidão, os gritos de desespero se perdendo agora no espaço, o ar tomando aquela feição trágica e desoladora. Sem se voltar para trás, procurou alcançar a outra margem do rio, remando sem parar. E foi aí quando correu pelos céus aquele forte estrondo. Apavorada, voltou a vista para Sapucaia só com tempo de ver o último pedaço de terra desaparecer na imensidade das águas barrentas. O Boto havia se vingado, levando Jacira e o resto dos festeiros para o fundão do rio, lá onde tem o seu reino encantado.
III
Em noites de junho, pelas festas de Santo Antônio, vem do fundo das águas, entre espumas, rebojos e vozes fantásticas, o primitivo rumor do pagode – som de flauta, repinicar de cavaquinho, gemidos de sanfona e violão, que acompanham, em estranha cadência, os festeiros de Sapucaia.
Maria Castanheira quando contava isso, esconjurava e se benzia toda, dizendo que aquilo foi castigo de Nossossinhor.”