Elmar Carvalho

 
Continuando a ler os diários titulados Cadernos de Lanzarote, de José Saramago, cujo exemplar me foi emprestado pelo professor Manoel Paulo Nunes, na anotação referente ao dia 10 de fevereiro de 1995, li interessante trecho, que faço questão de transcrever literalmente: “Vá lá uma pessoa entender os cães. Desde que apareceu aqui a cadela Rubia (mudamos-lhe o nome, este é o que lhe vai bem à figura), Greta, por ciúme, despeito ou descabida inveja, declarou-lhe guerra total. Os escarcéus que as duas têm levantado nesta casa, só vistos e ouvidos. Por vontade de Rubia, discreta e tranquila, haveria paz, mas Greta não lhe deu, em todo este tempo, um minuto de descanso. Ladrava-lhe de manhã à noite, focinho contra focinho, irritada porque a outra se deitava, irritada porque se chegava a nós, irritada porque fazíamos festas, irritada porque lhe púnhamos comida. Já dizíamos: 'Isto não pode continuar, a ver se alguém quer ficar com a Rubia', o que seria a maior das injustiças, uma vez que a malcomportada era a outra – e eis que hoje de manhã viemos dar com as duas na mais bela brincadeira que imaginar se pode, qual de baixo, qual de cima, fervorosamente empenhadas num jogo que só elas devem conhecer. Agora mesmo, enquanto escrevo, aqui estão as duas, a rolar, caladas e felpudas, sobre os tapetes, felizes, apressadas, insistentes, como se quisessem recuperar o tempo que haviam perdido em vãs querelas. Um conflito que tinha visos de vir a terminar com a morte ou o afastamento de uma das contendoras, está resolvido. Não sei como. Que conversas terão tido estas duas a noite passada, enquanto a casa dormia? Se perguntasse a Pepe o que pensa ele do caso, sendo cão também ele, estou certo que me responderia: 'Eu sou homem, de mulheres não percebo nada...'”
 
Agora, remeto o leitor mais curioso a meu registro deste diário relativo ao dia 17 do corrente mês, em que falo dos temperamentos díspares de nossas cadelas Anita e Belinha. A primeira veio morar conosco há mais tempo, quando ainda era bebê, ao passo que a segunda veio mais tarde, e já adulta, de sorte que a primeira sempre teve ciúme da outra e nunca a aceitou de bom grado. A situação piorou recentemente, quando a Pantica foi embora, e a Belinha passou a dormir no mesmo quarto em que dorme a Anita. Como expliquei na referida anotação, a Belinha é mansa, tímida, humilde, pratica a política da boa vizinhança e da resistência pacífica, evitando os confrontos e até mesmo fugindo, quando possível, dos enfrentamentos físicos. Hoje, após o almoço, trouxe a pequenina Anita para o meu quarto, nos braços, uma vez que ela, envelhecida e já um tanto gordinha, não mais consegue subir a escada.
 
Quando ela ouviu os passos da Fátima a subir os degraus, postou-se à porta, como se estivesse à espreita ou de tocaia. No momento em que sua desafeta passou pelo umbral, avançou contra ela, e a atacou com vontade, tendo a outra que se defender. Minha mulher interveio, levantando a Belinha. Porém, a fúria da Anita era de tal monta que pulou e mordeu a parte traseira da rival, ficando com a boca cheia do pelo arrancado da adversária. Portanto, enquanto as cadelas do Saramago terminaram se apaziguando, a rolarem ludicamente no chão, como velhas amigas, a Anita parece ter feito voto de ódio eterno a sua semelhante, o que me faz lembrar o título de um filme de faroeste, do meu tempo de garoto: “Django não perdoa, mata”, estrelado por Franco Nero. Penso até, como uma espécie de homenagem à rainha do cangaço, em mudar o nome de Anita para Maria Bonita, que seria muito apropriado uma vez que ela é bonita e “braba pra cachorro”, no caso, cachorra. Pensando bem, na verdade o seu nome é muito adequado, porquanto Anita foi uma mulher corajosa, de fibra, na qualidade de companheira de Garibaldi, herói gaúcho e italiano.