[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Uma das atitudes mais simples para uma mulher completamente moderna, hoje, é decidir se deve ou não fazer o aborto se o feto que carrega é anencéfalo. Ela pode decidir com um “sim” em um segundo e, no outro, já estar no shopping comprando sapatinhos para a próxima gravidez. Caso o aborto não tivesse implicações legais no Brasil, e sendo ela efetivamente moderna, a mãe abortista poderia realmente fazer isso sem dramas. Se alguém a questionasse, ela poderia dizer: “não fiz absolutamente nada que não arrancar uma unha encravada”.

Bem, é claro que uma colega sua, teria chances de levantar questões morais e, não sendo intelectual, certamente calçaria sua opinião em preceitos religiosos. Diria que “a vida é um mistério, que algo dado por Deus e que só Deus pode tirar. Sendo assim, a criança deveria vir à luz e esperar a morte – ou seja, o acaso ou a sorte, o que batizamos com o nome de Deus. Afinal, há casos de anencéfalos que não nasceram mortos. Há até os que viveram mais que o esperado por todo mundo. A mãe decidida a abortar diria simplesmente o seguinte, na réplica: “consultei os médicos, ou seja, a ciência, e eles dizem que não haverá criança nenhuma, que será apenas um corpo, não uma pessoa, não terá cérebro, consciência, nada. Do que você está falando? De que vida?”

No âmbito do senso comum moderno, o debate estaria assim instaurado. É desse modo que ele está posto no Brasil atual. Mas poderíamos ir para além desse tipo de contenda. Chamaríamos filósofos para conversar ou para ajudar no debate.

Os argumentos filosóficos podem ser do campo ético-moral e do campo metafísico. E é claro que esses campos, para vários filósofos, se cruzam. No entanto, do ponto de vista metafísico, o caso não tem solução, se é que a questão metafísica é sabermos o que é vida e o que não é a vida. Em tudo que a metafísica quiser ajudar os não abortistas, ela só vai atrapalhar. Pois a própria filosofia trará a história e a crítica da ciência não para colocar a metafísica para correr, mas para desautorizá-la. Sabemos que a entrada na vida (nascimento) e a saída da vida (morte) não são situações simétricas. Já foram. Mas não são mais. Falamos em vida, de um modo mais determinado, não necessariamente a partir de um teste positivo de gravidez e, sim, a partir de um ultrassom em que vemos uma coisinha pequena pulsando. Falamos em morte, de um modo mais determinado, não com a parada cardíaca ou qualquer outra afetação corporal, mas a partir da chamada morte cerebral – o cérebro não deve estar mais emitindo onda alguma. Detectamos a vida e a morte de modos diferentes e, por isso, não podemos dizer que se trata de processos simétricos. Tudo isso é dito pela própria filosofia, instruída pela ciência, mas não em favor da ciência. É dito pela própria filosofia para mostrar para a metafísica não tem muita munição nisso tudo, e para relembrar à própria ciência que a definição de vida e morte podem se alterar. Sendo assim, a vida e a morte não são tão misteriosas quanto pensa o religioso não abortista, mas estão longe de serem coisas com definições claras e constantes, como pensa a mãe abortista.

Descobre-se com isso algo que o pragmatismo contemporâneo e outras tendências filosóficas do século XX cansaram de afirmar: se a ética quiser vir calçada pela metafísica e isso estiver articulado a alguma coisa como a definição do que é a natureza humana e o que é a vida, as chances de alguém poder dizer que está com a verdade desaparecem. Todavia, o debate ético ainda tem legitimidade. Basta a ética deixar de lado qualquer metaética de cunho metafísico e, assim, procurar na vida moral e política sua melhor informação. Ou seja, seguimos metodologicamente Rawls e Rorty: façamos antes filosofia política que metafísica.

Na vida moral e política o que vai contar, querendo nós ou não, terá por base a filosofia do utilitarismo inglês e a doutrina geral do liberalismo. Por este último, pode-se dizer que o princípio a ser respeitado é o da liberdade individual da mulher. Ela é proprietária e a propriedade vem em primeiro lugar. Qual é a sua propriedade? Ora, o corpo e a consciência, além de bens. Assim, se há algo nela, um feto no interior de seu corpo, resultante de seu corpo e alimentado por ele, esse feto é de sua propriedade também. Ele não é um indivíduo. A mulher é o indivíduo. O feto é da mulher e esta, por direito liberal, dispõe sobre ele. Em princípio, pode então decepá-lo do seu corpo.

É claro que um argumento desse tipo não se sustenta. Pois sabemos o quanto o liberalismo se reformulou. O liberalismo incorporou uma série de preceitos comunitários, social-democratas ou cristãos, e deu condição de proteção ao que ainda não é um indivíduo em um sentido pleno, mas que deve ser protegido para tal ou para o bem estar de um indivíduo pleno a ele associado, ou o bem estar da comunidade. Assim, protegemos pandas, koalas, crianças, cachorros, velhos, plantas, índios etc. Podemos variar a escala qualitativa do que protegemos. Podemos variar a escala quantitativa. Podemos então, certamente, dizer que o feto é já uma criança, e que não se pode abortá-lo – isso seria um crime contra a criança, seria uma afronta ao nosso progresso legislativo, que cresceu no sentido de gerar uma sociedade de proteção dos fracos contra os fortes não a despeito do liberalismo, mas para colaborar com ele.

O argumento do corpo como propriedade da mulher não valeria, também, por outros motivos. É fácil desmontá-lo. Basta imaginar a seguinte situação: posso dizer que minha mão faz parte do meu corpo e que, então, se ela pegar uma arma e atirar em uma criança, ela estará cumprindo um direito, que é o de liberdade do indivíduo enquanto proprietário do corpo. É legítimo ter propriedade conquistada legitimamente. Nada mais legítimo ter meu que meu corpo e minha mão! Sim, mas o ato da mão pegar a arma escapa da questão da propriedade e da liberdade. Do mesmo modo que o ato da mão pegar o cartão de crédito para pagar o médico abortista escapa da questão da propriedade e da liberdade. Em ambos os casos, o objetivo da pretensa liberdade é o ataque a algo que a sociedade como um todo, e os indivíduos particularmente, segundo uma ordem liberal reformada, decidiram que não valeria. Estar-se-ia quebrando um preceito incorporado pelo liberalismo, o de proteção dos mais fracos contra os mais fortes.  Assim, argumentos um tanto ingênuos de professores abortistas, que falam no suposto direito da mulher sobre o seu corpo, como os de um artigo do marxista Wladimir Safatle na revista Carta Capital (Claramente a favor do aborto), são facilmente descartados – não valem à luz de nenhum liberalismo.

Diante desse contra-argumento, a abortista não terá outro campo a recorrer que não o do utilitarismo inglês, que está articulado ao hedonismo social: é ético-moral a maior felicidade para o maior número de pessoas. Assim, o aborto do anencéfalo se justificaria pela questão do sofrimento da mãe e da família, além de onerar social e financeiramente a sociedade, responsável com seus impostos por hospitais, médicos, enfermeiras etc. Todos sairiam perdendo deixando vir à luz uma criança sem cérebro que, supondo viva por algumas horas ou dias, estaria em uma condição semi-vegetativa. É sob esse preceito ético-moral que, no nosso caso, o Supremo Tribunal Federal poderia avaliar e julgar. Em parte, foi assim que correu o parecer do relator do STF, Marco Aurélio Mello, no julgamento de aborto por anencefalia, em 11/04/2012, na averiguação de casos de descriminalização do aborto (Notícia aqui).

O parecer de Marco Aurélio Mello iniciou-se corretamente: ele descartou questões de ordem religiosa garantindo a laicidade do estado, ou melhor, a neutralidade do estado em disputas religiosas. Deu o primeiro passo de cumpridor de suas reais funções: proteção da Constituição republicana. Em seguida, ele se dirigiu aos argumentos ético-morais. Evocou de modo parcial o que seria o utilitarismo inglês, sem nomeá-lo, é claro. Todavia, escorregou, pois chamou de volta pela janela elementos metafísicos que ele próprio já havia, com a questão da neutralidade do Estado, posto porta à fora. Marco Aurélio de Mello resolveu basear seu parecer, em parte, na discussão do que é vida. E proferiu uma frase péssima: “anencefalia e vida são incompatíveis”. Ora, o que é vida? Sim, ele se baseou na ciência. Na nossa ciência. Mas seria melhor não fazê-lo – não do modo que fez.

Nossa ciência, nessa hora, desliza para metafísica com facilidade e os cientistas, talvez não os médicos, aprovariam o que eu disse. Os médicos são mais empiristas. Olham o morto (ou candidato a morto) e dizem “está de fato morto”. Mas os homens de ciência não lidam com o morto e, sim, com o conceito de morte. Tendem aí a funcionar como metafísicos. E nesse campo, anencefalia e vida não podem ser compatíveis ou incompatíveis. O bom filósofo, nesse caso, segue o cético. Suspende o juízo. Pratica a epoqué. Só não pratica a ataraxia, a suspensão da ação, porque pode trabalhar com ética e política sem metafísica. Pode agir segundo um preceito geral do pragmatismo. Jogando tudo para a política, decidem única e exclusivamente, se a favor do aborto, pela linha máxima do argumento do hedonismo contemporâneo, já citado.

Assim, a decisão do relator do STF foi acertada do ponto de vista jurídico. Não desrespeitou a ética liberal, com a qual o utilitarismo inglês convive, é claro, muito bem. Mas a fundamentação do relator do STF foi completamente descabida, revelando um tropeço filosófico desagradável, uma vontade exagerada de argumentar para além das necessidades de argumentação, pegando um caminho tortuoso.  Desse modo, o parecer perde um pouco a força. Os defensores do não aborto se sentirão à vontade para pegar uma trilha de revide. Não farão nada contra a decisão, concretamente. Mas retoricamente, vão provocar um debate fora do eixo e um tanto … anencefálico!

© 2012 Paulo Ghiraldelli, 54, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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