[Paulo Ghiraldelli Jr.]

No passado todo “homem de bem” tinha uma “a outra” – a “amante”. Com a ampliação da classe média urbana os casamentos “por amor” se tornaram mais frequentes e, claro, as separações “porque o amor acabou”, felizmente, também. Isso para homens e mulheres cujas relações se aburguesaram ou, melhor dizendo, se modernizaram. Para políticos em cargos executivos, não! A política liberal democrática é tipicamente burguesa, moderna, mas ela ainda tem muito da Corte, em todos os países ocidentais.

A Corte, como nós sabemos por meio dos manuais de sociologia e história, é o lugar da vida mascarada, a vida típica do homem público, aquele que está quase que proibido de ter vida privada. Afinal, a população, não raro, cria avaliações sobre um homem público nem sempre pelo seu comportamento político – a vida mascarada – e sim pelos seu comportamento privado – avaliado como “a verdade”. A população não está de todo errada ao fazer isso. Ela imagina que a vida moral de um presidente possa ter muito a ver com a sua vida ética. Ela imagina que quem vai para a cama com o presidente pode ficar sabendo de coisas do âmbito do governo que favoreça uns cidadãos mais que outros, na vida particular destes. Assim, a imagem da vida promíscua da Corte, uma vez transportada para a vida no governo executivo de democracias como a nossa (ou como a americana), faz a população, às vezes, querer saber de modo até sério sobre o que faz um governante quando não está governando. Ora, sabemos como é isso, ao menos em termos gerais: todo governante que se preza tem uma ou várias amantes. Ele fica com as amantes quando não está governando (quando está de férias oficiais, ele está governando, por isso, fica com a mulher numa praia visível).

Os amores acabam, sabemos bem, mas os casamentos de pessoas em cargos executivos, não tendem a acabar e, assim, a amante, uma peça possível de ser descartada para quem não é político e não é rico, mantém sua importância para quem exerce o cargo, por exemplo, de governador ou presidente.

Os casos famosos todos sabemos: Kennedy tinha uma mulher desejada pelo mundo e, no entanto, ele conseguiu ter amantes mais desejadas ainda. Ele foi uma espécie de Cristiano Ronaldo da política. Bill Clinton fez aquela parafernália toda com charutos e, hoje, é peça chave na vida de Hilary e dos Estados Unidos.  E nós aqui, abaixo do Equador, começamos nossa independência política com D. Pedro I voltando da casa da Marquesa de Santos. Mais recentemente, ficamos sabendo que o feminismo de Dona Ruth Cardoso abria exceções generosas, de modo que FHC teve uma amante jornalista que, enfim, foi ter filho fora do Brasil. Aliás, FHC descobriu mais tarde que a amante dele era amante de outro também, e que o filho que teve com ela, assumido, nem era filho dele.

Que amante engana o governante que está com ela, isso também nós todos sabemos. Todo governante também sabe disso, mas essa clarividência ocorre quando ele olha para os outros, pois ele próprio sempre se acha o mais esperto de todos os outros heróis da história, e, também, o mais sedutor e gostoso. O calvário de Lula a respeito de sua amante, Rosemary, agora apanhada em uma operação da Polícia Federal de nome até sarcástico, Porto Seguro, está só começando. Ele terá uma boa dor de cabeça por conta de fazer o que todos os homens fazem, ou seja, deixar a cabeça de baixo pensar no lugar da cabeça de cima, mesmo quando avisado pela de cima que só ela tem neurônios, e que a outra, a de baixo, é uma “cabeça oca”.

Há amantes e amantes, é claro. Há mulheres que são amantes por amor, outras por prazer, e outras pelas duas coisas. Mas esses dois tipos de mulheres não exclui uma terceira alma dentro delas mesmas, a da mulher que tem, também, interesse material. Pela sua própria vida, Rosemary parece ter deixado isso claro ao presidente Lula, mas ele não quis acreditar ou não quis pensar nisso. Do mesmo modo que ele jamais quis pensar que seu amigo do peito Zé Dirceu, poderia dar passos a mais do que ele próprio aconselharia, mesmo não sendo santo.

Lula é o tipo do homem que guarda certa ingenuidade com o mundo, e isso não só por defeito, mas também por virtude. Ele é um brasileiro daqueles que gostam da fartura, daqueles que odeiam ver pessoas passando necessidade por mesquinharia. Lula é um avô mão aberta. Lula é aquela figura que não gosta de pensar que pode ser errado deixar alguém se aproximar dele porque essa pessoa tem má intenção. Duvido que ele sequer entenda esse tipo de gente. A própria política do Lula, que de certo modo guarda um lado antes populista que propriamente social democrata, espelha bem isso. Ele não chegou a ser líder do PT de modo tão diferente do modo que Ulisses Guimarães chegou a ser líder do PMDB. Não se é um líder de partido de massa, de centro-esquerda, sem ser generoso, descuidado, até absorto. As pessoas que não reconhecem esse lado do Lula, que o demonizam, são justamente as pessoas que não conhecem a ingenuidade – e isso ficou bem claro no texto de Francisco Weffort (ex-presidente do PT e ex-ministro de FHC) sobre Lula, quando da época das denúncias sobre “o mensalão”.

Não! Lula não é um santo. Não, Lula não é aquele cara que ele próprio diz, “que não sabia de nada”. Lula é o cara que não sabia de nada, sim, mas por dois motivos que ele próprio não gosta de saber: ele não olha e não quer ver, não olha e não pode ver, e se olhar, não nota. Lula viveu uma vida por conta de algo que algumas pessoas, tanto na direita política quanto na esquerda, não sabem o que é: solidariedade e amizade. Ser pobre e, então, virar peão de fábrica e depois alcançar o mundo sindical é aprender a contar com o outro no aperto, na dificuldade. Isso gera tipos bandidos, aproveitadores de todo tipo, mas gera muita gente generosa – a origem dos sindicatos, historicamente, são os “grupos de mútua ajuda”. As pessoas criadas no meio que Lula foi criado, de uma família pobre, porém grande e que buscava se complementar, se adapta bem a certo tipo de mundo sindical. Nesse mundo há aquelas pessoas que pode não pagam uma dívida, mas que podem, depois, dar para o credor um churrasco enorme, mais caro que a dívida, e achar que tudo ficou bem. Há muita gente assim no Brasil, no meio popular. São pessoas que não podem compreender aquilo que pai e mãe dizem quando falam “olha, tem gente maldosa no mundo”. Lula não acredita nisso, em gente maldosa. Hoje, quando Lula olha Zé Dirceu, mesmo sabendo que Zé pisou na bola, e que o fez por vaidade e por política pouco inteligente, ele fica com pena do Zé. Afinal, o Zé Dirceu, Lula diz para si mesmo, “é meu amigo, bebeu pinga comigo em centenas de campanhas”, “olhou para bunda de mulher em botecos” e “pegou meninas em convenções do PT”, quando o PT tinha meninas. Tudo isso forma alguma coisa que é a amizade. Isso é indestrutível.

Todavia, essa amizade com o Zé é diferente da amizade com Rose. Ele deveria ter notado isso. Ele deveria saber que Zé jamais o acusaria, mesmo que Lula fosse o autor do mensalão – coisa que ele não é. Aliás, Zé tem visão completamente política da vida e ele jamais mancharia o nome de Lula, pois ele vê em Lula a chance da revolução social no Brasil, revolução que Lula faz pelos pobres (ou fazia), mas que Zé faz por ele mesmo, para poder dar sentido para sua vida. Agora, com Rose, tudo era diferente. Ela era apenas uma secretária que tirou a sorte grande, ou seja, conseguiu ser amável com o homem que seria o presidente e, enfim, teve a chance de atendê-lo como quem atende todo líder solitário cujo casamento formal nunca acabará. Rosemary não vai poupar Lula. Não poupou. Aliás, ela nem tem cabeça para tal, pois fez corrupções por meio de seu computador, deixou pistas que ninguém deixaria. Ora, mas se é uma criminosa “pé de chinelo”, isso ocorre porque Lula é também, como sempre foi, um sindicalista, um operário, um homem do povo, um “pé de chinelo”. Um outro presidente teria uma secretária mais charmosa e com dedos mais leves. Mas, para Lula, tá muito bom Rosemary. E digo isso de modo realista, e penso que o leitor inteligente, tenho certeza, me entende. Não há nenhum preconceito aqui contra Lula, por ele ter sido pobre. Até porque eu mesmo nunca fui rico e é provável que, como professor universitário, nunca tenha ganhado mais que o Lula como operário. O que digo é que essa psicologia que traço do Lula, esboçada em outros artigos em outras épocas, é fundamental para entendermos como que se dá esse processo que FHC vem dizendo, na imprensa, que é a marca do governo Lula: a confusão entre o público e o privado.

© 2012 Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor e professor da UFRRJ