ÁLVARO DE CAMPOS
Por Rogel Samuel Em: 25/01/2014, às 04H33
ROGEL SAMUEL
No “Livro do desassossego” confessa Fernando Pessoa não estar satisfeito com os versos que escreveu (frag. 217) e que sua obra era má, o que se apresentava como “uma das tragédias da alma”, - obra imperfeita e falhada, reitera ele, eis o máximo da tortura e da humilhação do meu espírito, e pergunta: então, por que escrevo? – e tem uma sua resposta extraordinária: “porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto”. A dúvida sobre si mesmo é a dos rumos de sua própria vida. O cansaço e o tédio se alternam com exaltações de gloriosa liberdade do desenvolvimento industrial, numa fragmentação e multiplicação das linguagens.
Pessoa, o grande poeta, concentrou em si todas as dúvidas e se viu despido das suas mais caras ilusões com Álvaro de Campos. Desde as odes triunfais à Whitman até as expressões depressivas, ambíguas e marginais, a desagregação subjetiva, a inapetência, «apreendidas no entanto com uma tal concentração e apetência de lucidez, que problematiza e dinamiza a unidade do eu, arreda a cômoda metafísica da substancialidade psicológica e nos leva ao limiar do conceito moderno do eu como projeto de vida a refazer-se e no de sociabilidade. A este problema do “eu” trouxe Pessoa muitas fórmulas inquietantes (“de quem é o olhar que espreita por meus olhos?”; “tenho um medo maior do que eu”), ligando aliás o desgarramento da unidade pessoal, a frustração individualista, à falta de simpatia social, à não-compenetração de que “os outros também são eu” (SARAIVA & LOPES. História da Literatura Portuguesa, p. 1048-1050)
Ali, em Álvaro de Campos, rompeu com a evolução de seus espelhos, confessou todas as suas mentiras, exteriorizou todas as vestes de sua alma, livrou-se do que não sentia, do peso de seus segredos, mentiu a si próprio revelando a sua verdade, exprimiu-se para errar, nas suas técnicas de sonhos e de consolações. Sofreu não ter mais tantas esperanças vãs. Releu algumas páginas do que escreveu e se decepcionou. Suas velas vãs lhe fogem, cada uma num sentido. Por isso, Álvaro de Campos experimenta as emoções contraditórias. Agressividade e pessimismo.
A «Ode Marítima» diz Alfredo Margarido, «remete para um universo particular, o da pirataria ou da guerra do corso, e o excesso desta actividade, a carnagem sanguinolenta, parece remeter, para o universo da antropofagia que tão frequentemente marcou a guerra dos mares. Antropofagia tanto mais cruel quanto o mar é o lugar onde o homem sobrevive mal, quando consegue fazê-lo. Daí que a língua crua dos piratas pareça confirmar o carácter profissionalmente antropofágico da primeira parte» - « Podemos já entendê-lo perfeitamente neste poema de Álvaro de Campos, mesmo se Fernando Pessoa nunca cita, na poesia ortónima o texto de Stevenson. O que podia levar a pensar em formas de dissociação psíquica, capazes de permitir, ou de impor a fragmentação da memória. Trata-se quase de um problema clínico, que não pertence ao âmbito deste comentário. Não posso todavia deixar de enunciar esta problemática interna à constituição das personalidades de cada um dos heterónimos, sobretudo face a esta nova possibilidade de leitura de a Ode Marítima. Tratando-se, como se trata, de uma operação sempre perigosa, creio que me limitarei a enunciar esta problemática. Receio, como tantos outros, que em nome de elementos exteriores, se quebre o mecanismo insubstituível do imaginário, em proveito das nosologias psiquiátricas ou psicanalíticas. Sem, todavia, esquecer a importância da contribuição psicanalítica para uma melhor compreensão da função e dos mecanismos desses imaginário». (In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 111. Lisboa, 21 de Agosto de 1984). « Significativamente, nem na obra de Alberto Caeiro nem naquela de Ricardo Reis encontramos a menor alusão ao tema da loucura, enquanto que Álvaro de Campos conserva, como veremos, vestígios do decadentismo e mantém o tema da loucura», diz Georg Rudolf Lind (In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 95. Lisboa, 01 de Maio de 1984).
Em Campos, a loucura é a utopia.
Mas, que mais queria ele? Depois de ter escrito os mais belos versos da língua portuguesa, a que maior altura desejava ele se alçar?
Álvaro de Campos, mais radical heterônimo foi também o mais próximo do seu próprio nome. A radicalidade do «sensacionismo» provém do futurismo de Marinetti.
Talvez Campos estivesse pensando nos seus amores fracassados, na solidão de sua extraordinária alma; talvez estivesse pensando no seu Marinheiro, “ainda não deu hora nenhuma...” e as três donzelas velam a virgem morta, um resto vago de luar... e as mãos não são verdadeiras nem reais... mas mistérios que habitam na nossa via, a nossa vida... “às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... veio um dia um barco... veio um dia um barco... - sim sim... só podia ter sido assim... veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro, de eterno e de belo apenas o sonho... só viver é que faz mal... não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... não, não vos levanteis... isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... neste momento... ”
“As horas têm caído e nós temos guardado silêncio.
Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela.
Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece.
Eu não sei por que é que isso se dá.
Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...”
No “Livro do desassossego” ele conta que não está satisfeito com os versos que escreveu e que sua obra era má e se apresentava imperfeita e falhada. Talvez estivesse fazendo imaginação e outridade. Uma grande alegria, cheia de repouso e liberdade paira em Álvaro de Campos. Tardei sempre, disse. Desejo apenas conseguir o que os outros conseguiram. “Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Fui o devaneio do que quis ser. O meu propósito foi sempre a ficção do que nunca fui”, conclui ele. “Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los”.