[Bráulio Tavares]

 


No mesmo dia, vejo na imprensa a notícia do falecimento de Almira Castilho (86 anos) e Moacyr Scliar (73 anos). É ruim começar o dia com duas perdas como estas. Talvez metade do Brasil não saiba de quem se trata, não seja capaz de reconhecer seus nomes ou suas fotos, mas o Brasil deve muito a ambos.

Almira conheceu o auge da fama nos anos 1950, quando foi casada com Jackson do Pandeiro, dividindo com ele uma carreira cheia de sucessos Brasil afora. Os dois faziam uma dupla engraçadíssima no palco, ele pequenino e arisco, ela grandona e aparentemente desajeitada (na verdade dançava bem). Os dois encenavam umbigadas e arrasta-pés, e Almira arregalava os olhos, balançava os quadris, fazia munganga... Era boa cantora, e ao que consta também compunha, pois aparece como co-autora de clássicos como “Chiclete com Banana” e outros. Vi-a, já com seus 80 anos, subindo ao palco com Silvério Pessoa no Fórum Junino de Aracaju, cantando, rebolando; e depois em mesa de restaurante contando histórias e dando risadas. Uma pessoa em paz com a vida, e que podia dizer, como disse em suas memórias o “bluesman” Honeyboy Edwards: “O mundo não me deve nada”.

Moacyr Scliar percorreu uma carreira mais discreta e mais estável, como é de praxe na literatura. Foi um dos escritores que se tornaram conhecidos na década de 1970, e nessa condição foi uma das referências literárias da minha geração, dos jovens de 20-e-poucos anos que estavam começando a escrever. E recomeçando a ler. (Quando você começa a escrever a sério, precisa aprender a ler de uma maneira diferente.) O gaúcho Scliar tinha duas condições que o particularizavam dentro de nossa literatura: era médico e era judeu. Esses dois universos a que pertencia não o limitavam (ele escrevia qualquer tipo de coisa, abordava qualquer tipo de assunto), mas forneciam, de forma intermitente, um precioso material de inspiração.

Acadêmico da ABL, ganhador de numerosos prêmios, Moacyr Scliar foi também um praticante da literatura fantástica, que já aparece em seus livros de contos mais antigos (O Carnaval dos Animais, Histórias da Terra Trêmula) e depois em seus romances. O Centauro no Jardim é uma alegoria da diáspora judaica, contando a história de um menino judeu que nasce com corpo de centauro; Cenas da Vida Minúscula retoma a lenda medieval do “homúnculo”, o ser humano criado em laboratório. Outras obras “triscam” pelo fantástico, pela alegoria, pelo realismo mágico.

O suingue e o humor de Almira, a erudição e a simplicidade imaginativa de Scliar são como luzes distantes, que iluminam áreas diferentes de nosso ser coletivo mas parecem pertencer a mundos distintos. Almira terá lido algum livro dele? Moacyr terá assistido algum show dela? Talvez não, sei lá. Talvez sejam dois Brasis unidos apenas por uma coincidência do calendário, dois Brasis que poderiam se iluminar mutuamente. Como iluminaram a nós, os privilegiados que conhecemos os dois.