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Algumas notas sobre o Barão de Itapari

 

Rogel Samuel

 

Em plena crise econômica mundial, uma agência de classificação de risco elevou a nota do Brasil. A grande imprensa brasileira, que só gosta do negativo, se escandaliza. A crise da mentalidade ainda pensa que somos colônia portuguesa. Ainda vêem a Europa como “os países desenvolvidos”, os “países do primeiro mundo”, enquanto ainda acham que o Brasil é a república de bananas.

Isso me lembra uma página das “Memórias inacabadas” de Humberto de Campos:

Freguês de luxo era, igualmente, o Barão de Itapari, que morava nos Remédios, em um casarão rodeado de janelas, e que fazia canto com a pra­ça em que se levantava a estátua do Cantor dos Timbiras. O conhecimento deste fidalgo da Monarquia constituiu, entretanto, uma das minhas mais fortes e irremediáveis desilusões.

“Eu tinha me habituado a imaginar os reis, as rainhas, e todos os de­mais personagens de uma corte, pelas figuras que eu havia visto nas cartas de baralho. Quando eu era menino, o valete era conhecido, também, com a denominação de conde. E como o conde usava, na carta, coroa, gabão de veludo, cabeleira e um bastão de ouro na mão enluvada, eu tinha a ideia de que todos os fidalgos deviam afinar pelo mesmo padrão, em indumentária. Os livros que eu havia lido diziam-me que não era assim. A impressão da infância ficara, porém, no subconsciente, e de tal modo, que preponde­rava, sempre, na minha imaginação. Um dia, “seu” Zé entregou-me uma conta, dentro de um envelope, dizendo-me:

– Vá à casa do Barão de Itapari, e receba isto. Ele pediu que a man­dasse agora pela manhã.

“Subi a Rua da Paz com a imaginação escaldando. Via-me à porta da casa, que eu já conhecia. Bateria palmas. E logo apareceriam dois pajens vestidos de veludo azul, calças presas acima do joelho, meias até à altura das calças, os quais me levariam à presença do Barão, numa grande sala de enfeites dourados. Sentado em uma cadeira de grande espaldar, colocada sobre um estrado, o Barão me receberia, de cara fechada. Entregar-lhe-ia a conta. O fidalgo voltar-se-ia, então, para o tesoureiro, e diria:

– Pague isso a esse menino.

“O tesoureiro faria uma reverência, curvando-se todo, eu faria outra, e, ao fim de pouco tempo, eu me veria na rua, trazendo o dinheiro.

“O coração batia forte, quando cheguei ao fim da Rua dos Remédios. Bati palmas à porta. Achei a pequena escada um pouco suja, mas era pos­sível que aquilo fosse para disfarçar a riqueza que reinava lá dentro... Um instante mais e entreabre-se a porta do corredor escuro, dando passagem à cabeça de uma preta gorda, e beiçuda, que indaga, numa voz gritante:

– Qui é?

Disse ao que ia. E ela:

– “Seu” Barão saiu agora mesmo... “Sinhô” corre que ainda pega ele no canto... Ele foi esperá o bonde no largo...

Desceu os dois ou três degraus. Chegou à porta. Estendeu os olhos e, em seguida, o braço:

– Ói, tá-colá ele...

Olhei. Em frente à igreja dos Remédios, ainda cercada de velhos andaimes, um cavalheiro vestindo paletó preto e comum, fumava um fim de cigarro, ao mesmo tempo que esgaravatava a terra com a ponta do guarda-chuva. Bigode negro, e, se bem me lembro, uma barbicha curta, da mesma cor. Figura vulgar de burguês. Cara de comerciante da Praia Grande. Encaminhei-me para ele. Entreguei-lhe o envelope quase com desprezo. Ele o abriu, examinou a quantia, cinqüenta ou sessenta mil réis, meteu a mão no bolso da calça, pagou-me com displicência.

Agradeci surdamente, e retirei-me. O homem continuou a esgarava­tar a terra, e a fumar o seu cigarro. Olhei ainda de longe, para certificar-me. E sorri, superior:

– Sim, senhor!... Isto é que é um barão!...

Eu acabava de vender, na verdade, por cinquenta ou sessenta mil réis, que nem seriam meus, uma das mais lindas ilusões da minha meni­nice...”

                                     *  *  *

Por essas e outras é que eu sempre digo que, para conhecer o Brasil, devemos começar por ler as obras esquecidas de Humberto de Campos...