Algumas notas primaveris sobre haicai

[Paulo Franchetti]

Um amigo que se dedica seriamente ao estudo e ao caminho do haicai, comentando minha última postagem neste blog disse que os haicaístas brasileiros que se dizem discípulos de Bashô, na verdade o são de Shiki. Eu não poderia dizer de forma mais precisa e direta. 

Shiki, considerado por muitos o renovador do haicai, foi, do meu ponto de vista, um reformador que, em muitos aspectos, esteve muito distante de Bashô e não raras vezes contra ele. Pode ser apenas um erro de perspectiva de quem, embora tenha passado anos lendo e meditando sobre o assunto, não tem acesso aos estudos japoneses modernos. Mas a minha impressão é que, a começar pela afirmação do haiku como poema independente da sequência, do diário e do desenho – ou seja, do haiku entendido como literatura, no sentido que entendemos como literatura um soneto –, há em Shiki uma orientação e um objetivo muito diferentes dos que animavam a escola de Bashô. E creio que o sentido dessa nova orientação está presente já na criação do termo haiku.

Pode ser que seja só um engano de perspectiva, mas a minha impressão é que a diferença fundamental é que para Bashô a prática do haicai não estava separada de uma prática espiritual, no sentido amplo da palavra. Pelo contrário, sua obra principal me parece justamente ser que ele enfatizou o haicai como uma prática vinculada ao aprimoramento do espírito.

Se não tiver sido assim na verdade, foi sempre essa na minha forma de entender o que o haicai teria a nos oferecer, desde que li as recolhas de orientação do mestre e seus principais discípulos. Porque fora disso, na minha opinião, não há mais nada a ganhar com a sua importação, que se reduziria a uma mera afetação exotista, uma “japonnaiserie”. 

Na minha presente concepção, um bom poema é aquele em que tanto a forma do verso quanto a junção de suas partes parecem tão leves como um rio raso fluindo sobre um leito arenoso .

O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu.

O haikai deve ser composto sem reflexão, por um impulso do espírito

Os versos de alguns, porque eles querem atribuir-lhes brilho, carecem precisamente de brilho. O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza. É porque eles querem atribuir-lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde.

As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.

Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência. Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade. 

Se souberem como se abate uma grande árvore, como se desarma um adversário, como se corta uma melancia ou se come uma pera, as trinta e seis estrofes [do haikai-renga] não oferecerão dificuldade.

Enquanto tiverem nas entranhas alguma coisa que resista, vocês ainda não estarão prontos. 

[...]

...um bom poema deve ser composto segundo as circunstâncias da hora e, para isso, deve-se aguardar o momento e levar em consideração aquilo que [no poema anterior] não está expresso em palavras, sentindo as mil variações e as dez mil nuanças do inexpresso, e depois disso basta se deixar levar pela inspiração do instante

Também esta formulação de Zeami, o grande mestre de Nô, merece ser lida e meditada:

No que se refere ao Nô, é preciso saber o que é substância [tai = corpo] e efeito imediato [yô = aparência]. A substância pode ser comparada à flor; o efeito, ao perfume. O mesmo com relação à lua e sua claridade. Quando tiveres assimilado perfeitamente a substância, o efeito se apresentará por si só. Ora, o conhecedor vê o Nô com o espírito; o não-conhecedor, com os olhos. O que se vê com o espírito é a substância. O que se vê com os olhos é o efeito. Assim, o estreante vê o efeito e o imita. Trata-se de uma imitação que desconhece o princípio do efeito. O efeito é por definição inimitável. Aquele que conhece o Nô imita sua substância, pois o vê com o espírito. A imitação correta da substância contém o efeito secundário. Quando o não-conhecedor imita o efeito, que ele imagina ser o estilo a tomar como modelo, ele ignora que, ao ser imitado, o efeito se torna substância. Como não se trata de substância autêntica, substância e efeito lhe escapam definitivamente e não subsiste aí nada do estilo [que o iniciante tomou por modelo]. Em tal caso se diz que se trata de Nô sem Lei nem Caminho.

As referências completas dessas citações estão na introdução do livro Haikai – antologia e história. Valeria a pena, a todo iniciante que reivindica a herança de Bashô, bem como a todos aqueles veteranos que se vangloriam com a invocação do seu nome, ler com atenção os livros aí referidos, na íntegra. Quem o fizer, verá que há aí muita matéria para reflexão, e basta se demorar um pouco sobre eles para ver o abismo que há entre uma prática orientada para a busca de uma forma de estar no mundo e na linguagem e a adoção ou uso do haicai como mera forma literária (uma espécie de ultramicro-soneto ou quadrinha truncada de um verso) que, pela facilidade propiciada pela redução à forma fixa simplória, atrai tanta vaidade, banalidade e autocomplacência no trato da palavra e do espírito.

Quanto a mim, já se vê por estas anotações, uma das pedras de toque da poética de Bashô está nesta formulação, que eu penso que deveria ser objeto de reflexão de todo sério aspirante à prática do haicai segundo o caminho do mestre: As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.

Nem vou referir aqui uma prática bem brasileira, que junta convenientemente a preguiça e a arrogância, que é a daqueles que, sem estudo nem empenho, usam a palavra haicai para designar o que quer que queiram dignificar com esse nome.

Tampouco creio que é aqui o lugar e a hora de debater um lado persistente da herança de Shiki, que é a afirmação da forma acima de tudo, ou a curiosa fixação pela tradução da forma fluida do haicai japonês ritmado pelas palavras de corte na rigidez do terceto recortado em versos estritamente medidos à maneira de cada uma das línguas em que ele é praticado. São pontos que valeriam a discussão e o desmonte. Mas creio que o passo inicial e necessário é outro: é voltar aos textos da escola de Bashô e, a partir deles, decidir o que vale e o que não vale a pena importar, imitar ou transformar quando falamos em haicai.