Por Bráulio Tavares

(continuação)

 
FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA
 
Foi um ano em que também li pouca FC, por variadas razões, mas teve muita coisa boa.
 
A Trilogia de Terramar, de Ursula LeGuin (A Wizard of Earthsea, The Tombs of Atuan e The Farthest Shore) era uma leitura que eu vinha procrastinando há anos. Iniciada em 1968, a trilogia foi uma contribuição essencial de LeGuin à formação da literatura de fantasia nos EUA, registrando três fases sucessivas da vida do mago Ged. Uma das contribuições principais de LeGuin foi cristalizar a noção da magia como uma espécie de energia, onde nada se cria, tudo se transforma, cada prodígio tem um custo, e os riscos são proporcionais aos prêmios. Sem falar na prosa da escritora, um inglês límpido e clássico que evita os excessos retóricos de outros bons fantasistas.
 
Where Late the Sweet Birds Sang, de Kate Wilhelm. A morte de minha ex-professora na Clarion Workshop me levou a pegar de novo e desta vez ler até o fim este romance que já foi chamado, na época, de “o melhor livro sobre clones”. Num cenário pós-apocalipse, Kate imagina uma fazenda de uma família com dinheiro, tecnologia e coragem, onde os humanos-como-nós vão sendo substituídos por clones de si mesmos, a quem cabe viajar para longe do seu vale de origem e examinar o que restou da civilização. Um romance onde se contrapõem, em novas circunstâncias, a Sociedade Racional Antiemotiva e o Selvagem Instintivo-Individualista.
 
Mnemomáquina de Ronaldo Bressane (São Paulo, Ed. Demônio Negro). Bressane usa a prosa eletrificada, pop e intensa de autores como Thomas Pynchon e D. F. Wallace para falar de uma São Paulo pós-apocalipse, cibernética, delirante, numa cachoeira de pequenos detalhes que vão desde o surrealismo da FC new-wave até o hiperrealismo dos quadrinhos contemporâneos. Aquilo que os críticos chamam de trapézio sem rede, num ritmo de entontecer.
 
The Magic Toyshop de Angela Carter é o tipo de história que só essa autora seria capaz de levar a cabo: o rito de passagem de uma adolescente que a morte dos pais obriga a viver na loja de artigos mágicos de um tio tirânico e brutal, na companhia de primos que ele acha ameaçadores e fascinantes. Uma mistura de Charles Dickens com Neil Gaiman, com um ponto de vista feminino.
 
Nova de Samuel R. Delany. Uma space-opera com narrativa intrincada mas coerente, idéias ousadas de física e de astronáutica, prosa brilhante. É o que toda space-opera deveria ser, com personagens “maiores que a vida” mas verossímeis, lances teatrais, perseguições e vinganças ferozes, civilização galáctica bem imaginada. Um romance da mesma estatura de Duna de Frank Herbert ou de The Stars My Destination de Alfred Bester.
 
Piquenique na Estrada (Ed. Aleph, São Paulo) de Arkády e Bóris Strugátski. Um romance muito bom e que me pareceu uma fanfic de Stalker, de Andrei Tarkóvski, porque compartilha o ambiente e a premissa, mas se prende a outros episódios. (O livro, é claro, é bem anterior ao filme.) Alguns lugares da Terra receberam uma visita breve de alienígenas que nem se deram conta da presença da humanidade e foram logo embora, deixando atrás de si as Zonas, que são verdadeiros campos minados onde acontecem alterações bizarras da realidade.
 
peixes coloridos de alto-mar (Ed. Kafka, Curitiba) de Paulo Sandrini, é outro romance pós-apocalíptico, num vago Brasil futuro corroído pela chuva ácida e vítima de mutações bizarras. Um pai tenta criar a filha num ambiente brutal e decadente, em meio ao escambo constante de produtos essenciais, ao saque e à sujeira.
 
Clans of the Alphane Moon de Philip K. Dick é mais um que traduzi para a Suma de Letras. É a história de uma colônia manicomial terrestre, numa lua distante, onde os clãs se dividem pela doença mental de cada um: os esquizofrênicos, os paranóicos, os maníacos obsessivos, etc. As habituais quebras de realidade de Dick aparecem a todo instante, bem como sua mistura da filosofia existencial e a pulp fiction mais escancarada: boa parte das reflexões filosóficas vem de um “lodo viscoso de Ganimede”, uma gosma amarela que se esgueira por baixo das portas e se comunica por telepatia.
 
 
AUTORES PARAIBANOS
 
Se eu fosse botar aqui os cordéis que tenho lido ou relido, ia faltar espaço. Deixando os cordéis de lado, registro estes três títulos, para quem se interessar:
 
Memórias tristes do Rói-Couro de Pombal, de Jerdivan Nóbrega de Araújo. São as memórias de um freqüentador da zona boêmia de Pombal, contadas na velhice. Tem um viés nostálgico, mas sem embelezamento, e sem condenações morais. A vida de puteiro rememorada com carinho e dor por quem freqüentou puteiros sem culpa. O autor se inspirou em Garcia Márquez e suas Memórias de Minhas Putas Tristes.
 
Viajantes do Purgatório de Eilzo Matos. Uma cidadezinha do interior, suas fofocas, seu “muído” permanente de sexo e dinheiro, brigas por terras. Um cotidiano bem vivido, bem observado e bem descrito, cheio de detalhes verossímeis e observação de ambientes concretos. Alguém já disse que certas cidades interioranas são como um avião que roda, roda, e não levanta vôo. O mundo descrito por Eilzo Matos é exatamente isso.
 
As Conchambranças de Quaderna (Ed. Nova Fronteira, “Teatro Completo”) de Ariano Suassuna. A última peça de Ariano reúne três aventuras do anti-herói do Romance da Pedra do Reino, onde Quaderna deixa de lado sua face mística e cósmica e age como um autêntico trambiqueiro, enganador, costurador de intrigas, mentiroso, sedutor de moças entediadas... Mais uma vez é o cotidiano mesquinho e sem horizontes das cidades regidas com mão de ferro pela política, o poder e a corrupção.
 
(continua)