Algo se oculta nas trevas

( Miguel Carqueija)

Na Arkham brasileira, Pedra Torta...

ALGO SE OCULTA NAS TREVAS


     Pedra Torta, 5 de janeiro de 2010


     Meu caro amigo Ameixeira:


      É com grande prazer que volto a lhe escrever, apesar de todos os assuntos horrendos e hediondos que compõem a base de nossa correspondência. É que, ao pegar a pena para tratar de matéria tão disforme perante nossa moral, sinto no íntimo do meu ser o gosto pelo desafio às coisas macabras que cercam a humanidade e a emboscam do país das sombras, sem que praticamente ninguém desconfie. A Humanidade, é fato, segue no geral as trilhas do pragmatismo, senão do mais puro ceticismo, relegando o extraordinário e o sobrenatural às diversões esotéricas como horóscopos, tarôs etc. Os governos são pragmáticos, monetaristas, e pouco se importam com as sombras. E no entanto elas existem, medonhas e ameaçadoras.
     Você e eu, como membros que nós somos da Liga de Defesa da Humanidade, sabemos até certo ponto quem são essas sombras. Sabemos que os Grandes Antigos, como Yog-Sothot e Cthulhu, estão vivos e possuem seguidores fanáticos e cruéis, em plena “terra dos homens” de Exupéry. Sabemos que o Necronomicon tratam de coisas reais, ainda que muitas de suas páginas comportem erros de tradução, interpolações ou mentiras e exageros do próprio autor. O mal também usa propaganda... e se diz mais forte do que de fato é.
     E nesse ponto, meu caro Ameixeira, eu faço votos que você esteja bem treinado no código secreto da LDH! Pois eu jamais ousaria assinalar por escrito o que segue em linguagem comum, correndo o risco de a mensagem cair em mãos erradas, inclusive por extravio do correio.
     Quero lhe falar um pouco sobre a evolução das minhas investigações e também sobre as teorias que desenvolvi e que podem talvez explicar muita coisa. O que me chama atenção no Grande Cthulhu e outros monstros é o seu caráter de super-raças, já que não se reproduzem e não são aparentados entre si. Na minha opinião – e aí peso as minhas palavras – Cthulhu é um demônio encarnado. Explicando melhor: quando da primitiva rebelião contra o plano divino, Satã liderou uma hoste inumerável de anjos caídos, visando estabelecer o reino das
trevas no plano espiritual. Inicialmente seu seguidor, Cthulhu entrou em dissidência por motivos semelhantes aos de Lúcifer: querer ter o seu próprio reino. E assim, em tempos imemoráveis, Cthulhu e outros diabos – que viriam a ser conhecidos como os Grandes Antigos – materializaram seus atuais corpos físicos, teoricamente imortais mas sujeitos às limitações da matéria. Que o Grande Cthulhu é imortal depreende-se do fato extraordinário de permanecer vivo após 50 milhões de anos de submersão e letargia, lá em R’lieh, conservando até hoje a capacidade de manter contato telepático com seus seguidores fanáticos e assassinos.                                                    
     Contudo, eu sou de opinião que Cthulhu pode ser morto e despachado de volta para o reino de Satanás, que não deve estar de boa maré com ele. Um dia eles terão que acertar contas. Se Cthulhu é um ser material ele pode ser morto, ainda que não morra de velhice. Acredito que bastaria um míssil atômico para destruir o dragão-polvo. Eis aí, caro Ameixeira, uma tese extraordinária e até revolucionária, se levarmos em conta que, até aqui, os Grandes Antigos vinham sendo considerados invencíveis. Espero que o consenso da Liga siga nessa direção, pois vale a pena matar a besta.
     Mas falemos agora sobre as Lesmas.
     Você sabe que a pista mais importante sobre as Lesmas foi localizada no raríssimo Necronomicon 2, escrito por um misterioso armênio do século XVIII. Mesmo em Miskatonic não existe, que eu saiba, exemplar do segundo volume do Necronomicon. A raridade desse livro, que supomos relacionada à ação oculta dos Saltodontes (*), protegeu da curiosidade humana certos segredos terríveis que agora a LDH está começando a desvendar. As Lesmas existem em grande número e habitam os bolsões ocultos sob a superfície da Terra e acima da região das cidades subterrâneas. Geralmente a Lesma possui um comprimento aí por uns dois metros e uma estatura que atinge um metro e meio.  
     A figura de uma Lesma – uso a inicial maiúscula, é evidente, para diferenciá-la dos simples escargots da vida – é, de per si, tão horripilante que desafia a imaginação e até a tolerância humana. Muitas pessoas decerto morreriam se encontrassem pela frente esses monstros asquerosos. Por que a Criação inclui seres tão abomináveis é uma difícil questão filosófica, mas eu creio ter achado a inesperada resposta. Eles são seres criados pela engenharia genética e consequentemente, apesar de certas aparências, não possuem raciocínio. São robôs biológicos.
     Tudo para mim indica que as Lesmas foram programadas pelos Grandes Antigos e que deveriam ter impedido o surgimento da Humanidade sobre a Terra. Algo, porém, não deu certo e as Lesmas permaneceram em geral confinadas nos bolsões e túneis subterrâneos – como o que liga a Espanha ao Marrocos, passando sob o Estreito de Gibraltar – à espera de melhor oportunidade. A aparência de uma Lesma, como eu disse, é algo terrível, alucinante. Uma pele enrugada, encarquilhada e viscosa, pegajosa ao tato; dois chifres grossos como galhos, por onde afloram olhos em quantidade, que também desaparecem sob a superfície; umas patas gosmentas e cheias de garras cartilaginosas. O bicho emite também um som feiíssimo e assustador, embora não muito alto; uma espécie de ronco afrontoso, que parece vir de profundos antros de abominação. Sei de tudo isso porque já vi de perto várias delas e sei do que são capazes. Pois a Lesma está programada para matar seres humanos e, se elas se libertassem das suas moradas atuais e subissem à superfície, poderiam dizimar a civilização. Esta a espada de Dâmocles que Azothoth e Ithaqua, através de misteriosos agentes, deixaram para emboscar a raça humana.
     O que me preocupa é que as Lesmas já sobem à superfície. Na alta Amazônia, na selva espessa, têm já sido vistas. Ao que parece o dia em que essas repelentes criaturas sairão das trevas e nos atacarão, já não se encontra distante. A questão é: poderemos com elas?
     Meu caro, isto tudo é muito sério. Pois a verdade é que, se essas criaturas acertarem com o caminho, poderão penetrar até no túnel que agora liga Inglaterra e França. O pior porém será quando chegarem à superfície, e começarem a se multiplicar. Isso porque, na superfície, elas são mais prolíficas. Seus agentes avançados nas grandes florestas já devem estar se reproduzindo. A Liga de Defesa da Humanidade deve começar a agir já – ou o mundo correrá grande perigo. Lembre-se que o mal é subterrâneo, que se oculta na escuridão e no silêncio das trevas. Nós passeamos alegremente em nossas ruas movimentadas e nos esquecemos de olhar para baixo, de pensar no que ocorre debaixo de nossos pés, a algumas dezenas de metros, a centenas e a milhares de metros. Todos os horrores dos séculos estão lá em baixo, enclausurados, contidos, à espreita e à espera... e contra tudo isso, um dia lutaremos. Porque nós somos a Raça Humana – a mais impávida e obstinada raça do universo. Nós não viemos ao mundo para perder.   

“Não é humano”, conto do mesmo autor.