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Nós não perdemos os mortos, os mortos é que nos perdem.
Mario Quintana
Quando a mãe de uma amiga faleceu de repente, em decorrência de um AVC, ela me fez a seguinte pergunta: “Será que algum dia essa dor diminui?”. Lembro que na época essa amiga também estava doente e, portanto, bastante fragilizada. Assim, eu poderia ter dito qualquer uma daquelas frases clichês que todo mundo conhece, no entanto, preferi dizer o que, para mim, era e é a verdade: “Não. A dor não diminui e muito menos desaparece. A gente só aprende a conviver com ela”.
A dor da perda é um buraco aberto na alma. Não se consegue, realmente, fechá-lo, apenas se aprende, com o tempo, a fingir que ele não existe. No entanto, qualquer lembrança, por menor que ela seja, pode chamar a nossa atenção para o sofrimento que esse espaço – nunca preenchido – ainda é capaz de nos infligir.
Perdoem-me se não estou oferecendo muito conforto, mas quem já conheceu esse tipo de dor entende o que estou dizendo. Para quem sofre não há palavras de consolo que amenizem a angústia que sufoca, dificultando as ações mais simples do nosso dia-a-dia. Talvez gestos sinceros – um abraço apertado, um toque carinhoso ou a lágrima silenciosa que não se consegue conter – tenham um efeito mais tranquilizador. Quem sabe, afinal a forma de vivenciar o luto é, sem dúvida nenhuma, uma experiência única. Nascimento e morte, como disse Milton Nascimento, na música “Encontros e Despedidas” são “lados diferentes de uma mesma viagem”, é preciso demonstrar valor para enfrentá-los.
Para muitas pessoas as religiões, com seus rituais e crenças, são um caminho seguro no processo de aceitar o inevitável. Crer no paraíso, lugar onde a pessoa amada estará livre do sofrimento, pode ser um bálsamo para essa sensação de vazio que passa a existir dentro do peito de quem ficou para trás. A convicção de que tudo tem um propósito oculto também ajuda. Entregamo-nos nas mãos do destino, tentando assim diminuir, não só a dor e o vazio, mas a culpa que sentimos sem nem mesmo saber por quê.
Os vivos querem o consolo de saber que, mesmo com a perda do corpo físico, o ente querido continua existindo, e que aquela separação forçada é resultado de um “plano cósmico” do qual somos não só ignorantes, mas impotentes. Daí a necessidade ancestral das cerimônias que envolvem os enterros. Quem continua vivendo precisa desse ponto final. Mortos insepultos é tristeza que não tem fim, um sofrimento que prolonga a dúvida de que nada mais a esperar. Do mesmo modo, os velórios. Eles não existem para satisfazer os mortos, mas para dar tranquilidade e paz de espírito aos vivos.
Voltando a minha amiga. Após a morte da mãe ela ainda viveu mais alguns meses. Entre saídas e entradas do hospital, períodos de dor e calmaria, ela ia também concluindo a sua jornada. A família e os amigos, abalados pela primeira perda, negavam-se a admitir que o destino (Deus?) pudesse ser tão impiedoso. Duas mortes em menos de um ano era algo difícil de aceitar. E, novamente, todos se agarraram aos rituais, abraçando até mesmo crenças que nem mesmo eram as suas. Havia uma necessidade de barganhar com Deus, na tentativa de conter e assim impedir que mais uma pessoa querida lhes fosse tirada.
Entretanto, parece que “O Velho”, muitas vezes, se faz de surdo a qualquer tipo de súplica, pois o resultado foi o que todos desde o início temiam: a morte a levou, antes do tempo, aumentando ainda mais o “buraco” que já existia no coração de todos.
E a pergunta da minha amiga, retorna para me assombrar: “Será que essa dor um dia diminui?”. A resposta, infelizmente, continua sendo a mesma. Não há esquecimento e o alívio é algo bastante subjetivo, pois a dor sempre está presente, nos fazendo lembrar o que podíamos ter feito e não fizemos, do que podíamos ter dito e não dizemos.
Conviver com a ausência é a grande lição que a passagem do tempo nos oferece. Sei que é outro clichê, mas o fato é que aprendemos muito com a dor. Quem perde alguém amado se transforma, pois sabe que um pedaço seu foi levado para longe. Quem fica consola-se com o pensamento de que um dia haverá um reencontro e esse pedaço lhe será devolvido. Bem, pelo menos é assim que eu penso. Um dia reencontrarei meus entes queridos, incluindo minha amiga, e quando estivermos juntos não tenho dúvidas que voltarei a ser novamente inteira.
Dedico esse texto à minha amiga L.P.