Alan Sampaio ou o fetichismo da Câmera

      Por Wanderson Lima - especial para Entre-textos

      Como os personagens de “Os Sonhadores”, de Bertolucci, Alan Sampaio não vê a realidade no cinema; ele vê cinema na realidade.
     Quem assistiu ao documentário deste jovem sobre o Cine Rex, deve lembrar o final emblemático. A cena, tecnicamente sem nenhum atrativo especial, revela no entanto o que significa o cinema para ele. O cinema como compensação ao mundo desmitificado. O cinema como possibilidade de reencantamento do mundo.
      “Um homem sem uma câmera”, curta que acaba de lançar, é, ao meu ver, o trabalho mais considerável de Alan até agora. Ainda não é uma obra plenamente madura, mas nela Alan acumula vitórias significativas. A primeira delas é conseguir plasmar na película suas angústias pessoas sem cair em autocomiseração. Alan evita que sintamos pena de seu protagonista e alter-ego, Glauber, protagonizado por Aristides Oliveira. Fã da nouvelle vague francesa, especialmente de Godard, Alan evita o melodrama. O núcleo da história – a busca sequiosa de Glauber por uma câmera para realizar um filme – poderia produzir algum drama barato ou alguns arroubos de indignação social à maneira de um neo-realismo italiano de segunda mão. Alan, porém, é firme e exorciza esse fantasma.
       O filme de Alan é sobre o poder demiúrgico da câmera. É ela que inventa mundos, é ela que colore a vida, que nos dá a dimensão da complexidade da realidade que nos rodeia. Alan, através de seu filme, nos sussurra ao ouvido que a vida é incompleta sem o olho mágico da câmera. A câmera poetiza o mundo, cria mundos paralelos mais habitáveis porque mais poéticos.
       Este tema, claro, não é nada novo. Para não encompridar a lista, basta lembrar Vertov (“Um Homem com uma Câmera”) e Hitchcock (“Janela Indiscreta”). No entanto, o mérito de Alan é ter ousado retomar esse topos, e fazê-lo com competência, apesar das limitações de ordem técnica e financeira. Fã de Welles e de Godard, de Glauber Rocha e de Júlio Bressane, Alan enfatiza constantemente, por meio de  ângulos anti-convencionais ou de movimentos bruscos, a existência da câmera ¬– a materialidade da câmera –, rompendo com a ilusão realística típica do cinema comercial. 
       É preciso alertar, porém, que “O Homem sem uma Câmera” não se restringe a uma apologia da câmera. Alan apropria-se de topos consagrado na tradição cinematográfica e conjuga-o a uma problemática local: as agruras de se fazer filme no Piauí, mercê das dificuldades financeiras. Neste ponto reside o outro lado da moeda, isto é, outro tema que dá sustento ao filme. E este outro lado da moeda faz-nos lembrar a consagrada idéia da “alegoria de terceiro mundo”, de Fredric Jameson, segundo a qual as produções romanescas e cinematográficas do “terceiro mundo”, por mais fantasiosas e subjetivistas que pareçam, acabam alegorizando uma situação sócio-política. Em relação ao filme de Alan, esta observação de Jameson se confirma: por mais que ele queira se deleitar num esteticismo que fetichiza a câmera como agente demiúrgico, sua história não deixa de ser a ilustração da relação entre arte e capital num espaço de baixo desenvolvimento socioeconômico. Podemos, assim, interpretar a película de Alan por um viés, digamos, mais politizado: a odisséia algo quixotesca de um aspirante a cineasta num espaço onde não se consolidou nem a consciência do valor intrínseco da arte nem, principalmente, as condições socioeconômicas que fariam manifestações artísticas dispendiosas (como é o caso do cinema) florescerem com vigor. 
      Apesar de todos esses méritos, o filme de Alan Sampaio, ao que me parece, poderia ser reconsiderado em alguns pontos. Em relação ao roteiro, por exemplo, Alan poderia ter aprofundado a dimensão quixotesca do seu protagonista; se fosse mais escavado, o conflito entre a visão subjetiva do protagonista e a realidade que o circunda daria ao filme mais densidade sem tirar-lhe a leveza do humor. Alan também descuida em relação ao figurino. Talvez por temor ao clichê, ou mesmo por dificuldade financeira, o cineasta não tipifica seus personagens através da roupa e da maquiagem. Nota-se, porém, que o protagonista, se tivesse um estereótipo mais característico de um cineasta (um cineasta “pobre”), convenceria mais. O promissor Aristides Oliveira transmite-nos bem a angústia ingênua e sincera do seu personagem, mas o ritmo e tom de sua fala quebram às vezes a verossimilhança de sua atuação.
      
Wanderson Lima – professor e escritor. - [email protected]