AH, É?


                           Miguel  Carqueija





     Eu e Lorpa estamos nas trevas, observando. Ele é um buldogue falante, cheio de cicatrizes e duro como uma pedra. O tipo do sujeito calejado, o que é comum aos agentes externos, isto é, mercenários que não pertencem à Organização. Eu sou mais sofisticado. Até leio Shakespeare. Que por sinal gostava de crimes...
     O vento é frio e eu levanto o colarinho. Quero terminar logo com isso. Não sou assassino por gosto.
     O embaixador está lá dentro ainda. Sabemos que não há outra saída. Os guarda-costas passeiam de um lado para o outro, mas não nos enxergam. Se formos pegos nem sei o que pode acontecer. Afinal, o embaixador que nós vamos assassinar é do nosso próprio país. E é o nosso governo quem manda matá-lo. Que angu de caroço, hein? Que será que esse homem fez? De repente a Organização foi paga por uma esposa ciumenta... tudo é possível na política do século XXI.
     Graças à velha marquise do cortiço, não somos atingidos pelas luzes do satélite-farol. Mas que demora! Certamente ele deve estar se divertindo. É por isso que esses embaixadores parecem tão sonolentos. Se esse sujeito fosse certinho jamais ficaria tão exposto. Mas visitar amantes clandestinas não permite muita ostentação — e a segurança também tem que ser discreta.
     — O boneco não está com pressa... — diz Lorpa, que está ansioso por matar. Para ele isso é uma brincadeira de criança. Fico às vezes imaginando quanta gente esse monstro já matou. Não é a primeira vez em que trabalhamos juntos... e nunca é para tarefas agradáveis.
     Dou um longo bocejo. Estou cansado, com as pernas entorpecidas. Não gosto nada de manter conversação com o carniceiro a meu lado. Fico pensando na carreira de Curt. Já foi embaixador em Marte, governador da nossa colônia lunar. Dizem que poderá vir a ser presidente. Eu sei que nunca o será, porque nós vamos matá-lo daqui a pouco.
     Lorpa me puxa pelo braço. A porta se abriu, o infeliz se despede e sai. É agora. Talvez muita gente nos tenha visto, mas normalmente ninguém se mete com desocupados parados em cantos escuros. Não numa sociedade podre e desgovernada como a nossa.
     Haverá um risco, é claro, pois os guarda-costas não estarão para brincadeiras. A gente sobe na motocicleta voadora e parte em vôo quase rasante. Temos que lançar a chuva de agulhas anestésicas antes que nos alvejem. É quase ser um kamikaze. Só que o fator surpresa está do nosso lado. Os guardas são neutralizados antes de poderem esboçar reação. Curt porém dispara uma bomba portátil contra nós, e nosso veículo é vilmente derrubado, inutilizado. Mesmo na queda no chão duro, porém, Lorpa e eu alvejamos Curt com projéteis agora mortais. Era uma vez um embaixador ambicioso e infiel...
     Só nos resta correr, mesmo contundidos, porque a mulher logo dará o alarme. Ainda bem que a motocicleta era alugada. Temos outro veículo, este terrestre, à nossa espera, lá adiante. Só que agora um "muchacho" colérico pula à nossa frente gritando palavrões em espanhol. Nem todos eu entendo, mas não tenho tempo a perder com traduções. Eu e Lorpa somos rápidos e não lhe damos tempo para atirar primeiro. Quando estou com Lorpa, aliás, nunca sei quem disparou em primeiro lugar. Prefiro pensar que foi sempre ele. Afinal, ele não se incomoda.
     Pelo visto, Curt não era tão imprevidente assim. Antes que outros capangas dispersos apareçam fugimos ambos pelas vielas escuras, em hedionda cumplicidade. Não há nenhuma estima mútua. Há o dinheiro alto que eu passo a ele, remetido pela Organização. Sempre é mais do que o meu salário. É a única razão de ser da fidelidade de Lorpa. Por mim ele não tem mais amor do que  teria pela sua barata de estimação — se tivesse uma.
     Finalmente alcançamos nosso carro, um fusca 1993, e nos adiantamos na fuga. Sei como é, hoje em dia, a polícia argentina. Tão ruim quanto a do meu país. Não nos conseguirão achar entre uma "siesta" e outra.
     — Conseguimos — comentei, nada brilhantemente, enquanto dirigia. — Agora é só ler a lousa de instruções...
     — Hein? Que é que é isso?
     — É uma invenção nova... uma pequena prancha com informação codificada. Eu passo um lápis de abertura de código em cima e a mensagem aparece em letras luminosas.
     — Puxa! Isso é interessante, eu tenho que ver!
     Paramos junto a um poste de iluminação a laser e saltamos para melhor observar. Risco o lápis, naturalmente sem revelar a ele o exato trajeto sobre a superfície da lousa. Pouco a pouco a mensagem se acende, aparece enfim, bem visível, na lousa cibernética:


"TENDO ELIMINADO O ALVO, MATE TAMBÉM O MERCENÁRIO LORPA, QUE DEVE SER SILENCIADO RAPIDAMENTE, PELAS COSTAS. DEPOIS LIVRE-SE O QUANTO ANTES DO CORPO. APÓS O QUE, RETORNE IMEDIATAMENTE À BASE. APAGUE A MENSAGEM."


     Ao longo da vida sempre cometemos muitos erros. Se são grandes ou pequenos, depende das conseqüências que atraem.
     Engulo em seco. Com um sorriso amarelo volto-me para Lorpa que, tendo lido o que eu li, já me fita com uma expressão de tiranossauro hidrófobo.
     Maldita profissão.