BIOGRAFIA

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AMOSTRAGEM

O CIRCO FEKETE
Afonso Ligório Pires de Carvalho
8/10/2004
 
    A presença de um bom circo em Teresina, nos anos 40, era acontecimento de agrado geral pela oportunidade de lazer oferecida a uma população quase sem divertimentos, além do cinema. Dos circos que faziam temporadas na cidade, havia os aparatosos, a exibir ricos espetáculos, e também os chamados mambembes, por vezes sem toldo, pobres até nos nomes, como o Circo do V8. Em alguns desses as apresentações causavam dó pela ingenuidade e falta de profissionalismo. Mesmo assim, todos contavam com platéia.

    Das boas casas de espetáculos circenses, sem dúvida, o Circo Fekete merece referência. Na verdade, tratava-se de extraordinário espaço de apresentações artísticas, coberto com lona de duas faces, picadeiro e palco bem dimensionados, com iluminação feérica, própria. Os holofotes dirigidos para o Globo da Morte e trapézios de metais reluzentes davam solenidade ao ambiente onde se desenrolavam as atrações programadas.

    Além de diferentes profissionais para números tipicamente circenses, havia um elenco só para exibições teatrais. Por três vezes o Circo Fekete esteve em Teresina, entre os anos de 1938 e 1945, sempre com o privilégio de casas cheias. Aos sábados e domingos havia espetáculos vesperais e noturnos, tal a freqüência.

    A última vez que o Circo Fekete foi ao Piauí demorou-se mais do que de costume, por causa da guerra, a dificuldade de transporte para seu volumoso material, além da falta de estradas e ainda a morte súbita de seu secretário e apresentador de espetáculos. Lembro-me desse senhor, um cidadão solene que trajava fraque, cartola, e abria a função chamando a platéia de “respeitável público”.

    O circo pertencia aos irmãos Johnny, Charly, Jimmy, Bobby e Billy, que herdaram o negócio do pai, o húngaro Geovanni Fekete.

    Jovens, na época, cada um dos irmãos Fekete era responsável por determinada área administrativa da empresa, além de desempenhar obrigatoriamente atividades ligadas diretamente aos espetáculos, seja como trapezistas, praticantes de acrobacias outras, ou membros do grupo teatral.

   Johnny e Charly destacavam-se no Globo da Morte. Primeiramente faziam evoluções em bicicletas, no interior da bola metálica prateada, depois passavam para as motos barulhentas e de alta velocidade que se cruzavam perigosamente no globo.

   Johnny também tocava pistom na orquestra do circo.

   Fazia o gênero Glenn Miller, então na moda. Seu “Moonlight Serenade”, solo, arrancava suspiros das moças. Sem exceção, os cinco filhos homens do velho Geovanni figuravam, de algum modo, nas peças teatrais como Paixão de Cristo, O Ébrio, D. Pedro, etc.

    Os intervalos entre um número e outro eram preenchidos pelo palhaço Chimarrão, de sapatos enormes e nariz vermelho, a imitar sem conseguir, pandegamente, os acrobatas, para a alegria da criançada.

Nos anos 50, o Circo foi desfeito no Recife. Os irmãos Fekete casaram-se todos, curiosamente, com nordestinas. Johnny com uma baiana, Normar, que trabalhava na secretaria do gabinete de Juscelino, irmã do advogado Eliomar Teixeira, este casado em Teresina com a professora de Educação Física, Yolette Pires de Carvalho.

    Quase 30 anos depois, reencontrei Johnny, em Belo Horizonte, feito comerciante, já viúvo. Ele e Normar tiveram uma filha, Cristina, hoje médica, e uma neta. Considera-se vitorioso por haver vencido um câncer de laringe há mais de 20 anos.

    Conversamos sobre suas temporadas circenses em Teresina. Ele se recorda bem da cidade tranqüila e do povo amável. Destaca, porém, três lembranças: a bela ponte sobre o Rio Parnaíba, que conheceu menino, antes de concluída, e depois, quando o trem já passava. O largo do Liceu, onde era armado o circo e, particularmente, o restaurante do “Doutor” (que não existe mais), na Rua Elizeu Martins. Ainda hoje tem saudade do saboroso leitão de aspecto dourado e da farofa cor de ouro que o cozinheiro Zé Pretinho preparava com esmero para o pessoal do circo.

 

(*) Afonso Ligório Pires de Carvalho é jornalista e escritor. autor, dentre outros, do romance Capitania do Acúcar


 

FORTUNA CRÍTICA

“Premio Letterario Internazionale
M. Paulo Nunes


Na última sessão ordinária de nossa Academia, a propósito da concessão, ao romancista Afonso Ligório Pires de Carvalho, ocupante da cadeira nº 29, do Prêmio Letterario Internazionale MARENGO D ORO, de Gênova, na Itália, com medalha de prata e diploma, obtendo o 3º lugar entre os cinco primeiros premiados, representados por escritores franceses, ingleses, portugueses e brasileiros, com o seu romance Capitania do Açúcar, disse ali algumas palavras a respeito da significação do prêmio e da obra do agraciado, que vão a seguir resumidas.

Quando ainda morava em Brasília, no final da década de 80, fiz as apresentações de dois livros de contos de Afonso Ligório, Só Esta Vez..., Histórias Contadas e A Hora Marcada, os quais foram seguidamente traduzidos para o espanhol e para o inglês.Naquelas apresentações eu o considerava um contista da chamada “família Mansifield”, segundo a classificação do saudoso crítico Álvaro Lins, adotando a terminologia de Valdemar Cavalcanti, um famoso resenhista, em virtude de seguir de perto a receita da contista neozelandesa, ao renovar o conto tradicional, com começo, meio e fim, para transformá-lo numa experiência existencial.

Depois lançaria ele, em Teresina, o ensaio Tempos de Leônidas Melo, sobre os incêndios de nossa capital, e o livro de memórias Outros Tempos, uma irretocável reconstituição de nossa cidade da memória, como costumo chamá-la, em homenagem a Saramago, de quem é a expressão.

Em seguida, já na década de 90, explode ele (foi realmente uma explosão) com o excepcional romance Capitania do Açúcar, lançado também em nossa terra e de que fui o apresentador, naquele evento acadêmico.

Trata-se de um dos melhores romances jamais escrito em nossa literatura sobre a formação social do Brasil, tomando como modelo a vida social pernambucana e tornando-se assim, no aspecto romanesco, uma réplica de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, no âmbito da sociologia brasileira.

Retomei, naquela oportunidade, a observação do excelente e saudoso crítico pernambucano Olívio Montenegro que afirmou em um estudo sobre o autor de Bangüê, que o mestre de Apipucos é o grande sociólogo da sociedade patriarcal do Nordeste e José Lins do Rego o seu romancista.

Ora, tal expressão caberia muito melhor a Afonso, nesta obra monumental, porquanto ele, sim, reconstituiu, do ponto de vista romanesco, a sociedade patriarcal do Nordeste, e Zé Lins prendeu-se apenas a um aspecto limitado dela, a vida dos engenhos. Louvores, portanto, ao agraciado, por esse grande livro.

Acrescentei ali ainda que, quando o romance apareceu, fiquei esperando que algum grande crítico do Sul a ele se referisse com o entusiasmo com que o recebemos no Nordeste e no Centro-Oeste. Nada disso ocorreu.

A explicação para o fenômeno há muito eu a tinha. Nenhum escritor, hoje em dia, se não for agasalhado nas igrejinhas do eixo Rio-São Paulo, adquire projeção nacional porque eles, os donos da cultura brasileira, não o permitem.

Como ilustração do fenômeno, há pouco dizia-me Ledo Ivo, grande poeta e velho amigo, renovador da poesia brasileira, em 45, geração de que foi o porta-bandeira, membro da Academia Brasileira, a propósito da publicação do nº 31 da revista Presença, que aqui editamos e da qual lhe enviei um exemplar: “Sabe, Paulo Nunes, Vcs., aí no Nordeste, é que estão salvando a nossa literatura. Vcs. publicam livros, editam revistas, fazem realmente vida literária. Nós aqui vivemos na “fofoca literária”.

A resposta está aí no livro do Afonso. Enquanto as capelinhas literárias do Sul do país o ignoram, seu grande livro estoura agora com a obtenção de um prêmio internacional da maior expressão, para ser editado na língua de Dante e Petrarca.

Para concluir, e numa paróquia de tribalismos, como a nossa, permitam-me uma anotação tribalista, à maneira do ensaísta Eduardo Lourenço: Sabe-me bem que Afonso Ligório Pires de Carvalho seja um dos da minha geração e que, enfim, tenha bebido as primeiras águas na matriz que foi também a minha. Não é por acaso que muito do modo de ser de Afonso é o que é. Há nele generosidade e um sentido de justiça que não se inventam.

M. Paulo Nunes é secretário-geral da Academia Piauiense de Letras