[Miguel Carqueija]

Eu sou a Pesquisadora dos Arcanos. Nunca tive o hábito de escrever diários ou memórias de minha vida; se ouso agora fazê-lo é porque resolvi, após madura reflexão, colocar no papel, enquanto estou viva e posso fazê-lo, a estranha experiência que vivi em minha adolescência e determinou o rumo de toda a minha existência futura. Embora eu seja ainda muito jovem, aquele evento parece perder-se nas brumas de um passado remoto, ancestral, como se fosse uma outra vida, contudo fazem poucos anos, nem dez, e tudo hoje, quando puxo pela memória, afigura-se um filme — onde eu mesma apareço – que eu tenha assistido numa tenra infância...

O que até aqui escrevi parece loucura, e o que vou contar parece loucura. Mas sei que não estou louca. E sei, hoje, qual é a grande e verdadeira insânia do universo. É a rebelião contra o Deus de bondade e justiça.

Aprendi, graças a Deus, a essência da bondade. Consiste em amar até os seres mais simples, em não invejar os outros, e tratar a todos com benevolência. Eu era assim, até à ingenuidade, antes que certas circunstâncias me mostrassem a força do mal e me colocassem numa atitude defensiva que se tornou permanente. Nessa época eu estudava Geografia, entre outras matérias, numa cidade litorânea que aqui prefiro não designar, situada no Espírito Santo. Nosso professor de Geografia era um homem idoso, mas bonachão e bem disposto fisicamente. Para preservar certas pistas, não revelarei o seu verdadeiro nome. Chamá-lo-ei Professor Gusmão — um nome bom para um mestre.

Vejam bem, eu era um adolescente cheia de vida, sem grilos, saudável como se pode imaginar. Gostava de namorar, de andar ao ar livre, em contato com a natureza; gostava de escrever e também de receber versos. Mas sempre me interessei pelas ciências físicas e por assuntos misteriosos.

O Professor Gusmão era alto, bem talhado de corpo, e, embora visivelmente velho, não excessivamente enrugado. Era dado a esportes e muito popular entre os jovens. Costumava organizar excursões com seus alunos, moças e rapazes, pelas praias, montanhas e campos; colhia tatuís, escavava a areia, analisava flores e plantas silvestres, explicava o açafrão, contava coisas sobre as marés e os ventos. Era fabuloso. Nós o adorávamos porém poucos sabíamos da sua vida particular.

Constava, ou melhor, corria a boca pequena, que o professor tivera na juventude uma grande decepção amorosa, que por isso renunciara ao casamento e se tornara um solteirão inveterado. Tratava-nos de forma bem paternal mas eu julgava notar qualquer coisa de artificial ou de superficial naquilo tudo. Era imponderável. Não saberia dizer porque, mas parecia-me que o nosso amigo carregava oculto um ceticismo entranhado em relação ao nosso modo de vida alegre e despreocupado – algo de que ele participava, mas complacentemente.

Entendeu? Não sou uma verdadeira escritora e talvez não tenha me expressado bem. Mas eu tinha consciência da existência de alguma coisa oculta no passado daquele homem estranho e, de certa forma, desconcertante.

Às vezes, sentindo o vento frio das tardes através do pulôver ou enfrentando-o com roupas mais leves, eu me aproximava dele, aproveitando ocasiões em que os demais do grupo não se encontravam muito perto. Eu estava com 16 anos e sem namorado; o último quisera uma “prova de amor” que eu, como membro da Legião de Maria, recusava-me a dar. O professor brincava às vezes comigo: “Se eu tivesse menos vinte anos e você mais dez, nós nos casaríamos. Mas nascemos em tempos errados.” E eu até imaginava que, fossem outras as circunstâncias, gostaria disso. Mas para mim ele era um amigo ou irmão mais velho, eu o estimava deveras e me preocupava por adivinhar-lhe um sofrimento íntimo.

—Professor – disse eu certa vez – você teve muitos amores em sua vida?

Era uma pergunta atrevida. O “você” ia por conta da permissão que ele nos dava fora das salas de aula. O conteúdo da pergunta, porém, não pareceu perturbá-lo.

—Houve muitos. Centenas. Eu era o mais paquerado em minha querência...

 

 

 

 

Referia-se ao sertão da Bahia de onde vinha. Até aqui ele mantivera-se na esportividade – aquele jeito que as pessoas têm, de responder perguntas sérias com brincadeiras. Então, levada por um misterioso impulso íntimo, eu fui mais direta:

—E o seu amor secreto... seu verdadeiro amor... me fale dele.

Gusmão pareceu ficar meio espantado e olhou em volta, mas da colina em que estávamos víamos apenas rapazes e moças mais abaixo, na areia da praia, e um barco a vela bem ao longe, na linha do horizonte.

—Ora, eu não tive esse amor... isso é lenda que corre a meu respeito...

—As lendas sempre têm um fundo de verdade, não é assim, Gusmão?

—Curioso que você tenha falado isso. É o que eu muitas vezes disse.

—Sim. De modo que essa também deve ter. Por que não me conta alguma coisa? Afinal eu sou sua melhor amiga.

E segurei-lhe o braço, afetuosamente.

—Vamos sentar um pouco – disse ele.

Sentamo-nos nas pedras e o encarei, percebendo o quanto ele estava inclinado a evitar revelações:

—Você é um homem misterioso, sabe? E o mistério é uma coisa que me atrai.

—Verdade? Não tinha notado isso. Você sente atração pelo mistério?

Sorri.

—É algo que eu não sei explicar. Algo dentro de mim. Eu sinto como se tivesse a obrigação de investigar, pesquisar, documentar todos os mistérios do mundo. Ah! Você já deve estar me tomando por louca, não é? Daqui a pouco terá medo de ficar a sós comigo.

Gusmão feche os olhos por um instante, sem dúvida refletindo.

—E que tipo de mistério você gosta de estudar?

—Discos voadores, monstros, como o de Loch Ness, o Yeti e o Kraken, civilizações perdidas, conhecimentos esquecidos, profecias, um pouco de tudo.

Senti que ele se admirava.

—Se eu soubesse antes dessa  sua inclinação... teríamos já conversado muita coisa.

—Bofé! – falei, imitando o cacoete de utilizar, por gozação, palavras de todo em desuso (essa eu havia tirado de Monteiro Lobato). —Pode crer que é verdade. Eu gosto de pesquisar coisas antigas, os arcanos do mundo...

—Pois continue assim. Só não conte muito comigo. Eu já não pesquiso essas coisas... às vezes a gente pode se deparar com coisas perturbadoras...

—Você já teve alguma experiência assim?

Ele hesitou e olhou em volta.

—Rápido! Fale antes que alguém se aproxime... – disse eu, rindo. —E antes que chova também – acrescentei, ao sentir uma gotícula na ponta do nariz.

—A simples leitura de um livro pode ser perturbadora – desconversou ele.

—Então você não descobriu nada de perturbador?

—É claro. Você. Você é uma pessoa perturbadora.

Ele era esperto, mas tinha uma certa dificuldade em mentir abertamente. Contornava o assunto, habilmente. A conversa voltou ao tema dos seus amores e seu celibato:

—O pessoal pensa até que eu não gosto de mulheres. E não é nada disso. Eu não quis constituir família por ser cético em relação ao mundo.

—Como assim?

—Que mundo os nossos filhos e netos irão herdar? As perspectivas não são boas. O mundo caminha para o desastre.

—Não seja tão pessimista. Ainda existe muito amor no mundo.

—Sim, mas não terá forças para impedir o que virá – falou num repente.

Segurei-lhe o pulso com força. Agora eu sabia que ele sabia de algum coisa.

Já me disseram que os meus olhos têm qualquer coisa de hipnóticos. Se isso for verdade, naquele momento, fitando-o intensamente, devo ter usado o meu poder oculto:

—O que virá? O que você quer dizer, de fato? Por que você não casou? Tem relação direta com o que está tentando dizer, não é?

—Eu acredito – admitiu por fim, pronunciando lentamente as palavras – que o Mal, com letra maiúscula – o princípio do Mal – está para dominar o mundo. Está prestes a fazê-lo, e eu não quero a minha descendência sob este poder.

—Gusmão, isso é um disparate. A não ser, é claro, que você tenha argumentos objetivos. Que mal é esse que vai nos dominar? É o demônio?

—Eu não sei o demônio existe. Mas você não lê jornais e revistas, não vê televisão, não ouve rádio? O mal está em toda parte. Imoralidade, prostituição infantil, corrupção dos políticos, crime organizado e poderoso, armas atômicas, guerras e revoluções, crimes sexuais, desprezo pelos velhos e doentes...

—É a esse mal que você se refere? Mas tudo isso pode ser combatido... e pode passar...

—Não creio muito na reversão do mal. Só um cataclismo muito grande...

—Gusmão! Fale a verdade! Você não está se referindo ao mal social, sexual ou político! Você fala do mal metafísico! E isso eu quero saber também!

Alguns colegas se aproximavam, dispostos a perguntar se estávamos namorando. Silenciamos. Haveriam outras ocasiões.

 

________ x ________

 

E assim, de dica em dica, de confidência em confidência, fui me aproximando da verdade do Prof. Gusmão. Mostrei-lhe os meus cadernos de pesquisa, os meus recortes e livros, fiz de tudo para convencê-lo a se abrir. Este cerco amável durou algum tempo; até que um dia, em sua residência – eu adquirira o hábito de visitá-lo às vezes para que falássemos com mais liberdade – encontrei-me, certa tarde de domingo, examinando sua biblioteca.

Havia de tudo um pouco lá: edições raras, na língua original, de autores como Balzac, Hugo e Prosper Merimée; “Os noivos”, de Alexandre Manzoni; obras históricas de autores como Rocha Pombo; a Suma Teológica, de São Tomás de Aquino; revistas médicas, geográficas e outras; romances policiais baratos e alguns de melhor nível, como a “Estranha Maldição” de Dashiell Hammett; várias edições da Bíblia, e uma do Alcorão. Deparei porém com uma seção folclórica, que incluía, por exemplo, Câmara Cascudo; perto, “O Saci”, de Monteiro Lobato, e diversos livros de ufologia, ou sobre o Triângulo das Bermudas, ou ainda Nostradamus. Se alguém quiser saber, direi que não – eu não vi por lá, e se vi não causou impressão em minha memória, o tristemente célebre “Necronomicon”. Só anos depois tomei conhecimento de sua tenebrosa existência, mas hoje não me surpreenderia se o Prof. Gusmão realmente o possuísse. Em tal caso, porém, ele não o deixaria à vista: isso eu garanto.

Vendo que aquela parte da estante estava repleta de obras folclóricas como “Somanlú - o viajante das estrelas”, de Abguar Bastos, chamei o meu amigo e comentei o fato.

—Gusmão, você gosta muito de folclore , não é mesmo?

—Ah, sim. E depois, as lendas sempre têm...

—...alguma coisa de verdade – completei sorrindo.

—Sim. Até mesmo nesse folclore brasileiro, tão bobo na aparência...

—Que quer dizer? – observei de bom humor. —Não me diga que você acredita no Curupira!

—Quase... depois do que eu vi!

—O que você viu? Agora você me contará, não é?

—Você me julgaria louco...

—Gusmão, deixe de besteiras. Eu sei de saída quem é louco e quem não é. E você não é, pronto.

Então ele convidou a sentar e fez a revelação:

Havia um índio chamado Manuel. Era xavante, e seu nome verdadeiro fôra um dia do conhecimento do professor. Mas este já o esquecera; só se lembrava do  nome “civilizado” de seu amigo, e das pesquisas biológicas feitas nas proximidades das nascentes do Araguaia. Contou-me o Prof. Gusmão, em resumo, que ele e Manuel encontraram um dia, numa clareira e já em adiantado estado de decomposição, um cadáver horrendo. Para Manuel, que ficara tremendo e batendo com os dente embora fosse um homem corajoso, aquele ser, de dentes pontiagudos como os de uma fera, e garras nas mão e nos pés, era um representante do povo das águas, que raramente ou nunca saía em terra firme. A descoberta daquele cadáver, provavelmente deixado por uma cheia recente, era portanto uma coisa raríssima. Assim, de uma hora para a outra a lenda indígena dos “mulatos d’água”, seres maléficos que atacavam as pequenas embarcações e arrastavam seus ocupantes para o fundo dos rios, assumira foros de verdade para o Prof. Gusmão, abalando toda a sua estrutura de pensamento.

Eles deixaram por lá o corpo até porque, segundo Manuel, “os companheiros deles poderiam vir buscá-lo.”

E Manuel, que gostava muito do professor, contou-lhe segredos dos índios e como a selva amazônica guardava mistério terríveis que o homem branco precisava respeitar.

—As forças que se ocultam na floresta – disse Manuel – são antigas, e muito antigas, e podem destruir a humanidade. Não é bom mexer com a selva como estão fazendo, podem vir a desentocar o Mal da sua toca e isso não vai ser bom para o homem branco. Libertar o Mal, que está preso na selva, só vai servir para dar mundo ao Mal, e aí não tem mais lugar para homem branco. Talvez nem para índio.

Um cientista, quando abalado em suas convicções científicas, pode nunca mais voltar a ser o mesmo. Nos anos que se seguiram o Prof. Gusmão  levantou o que pôde, um imenso número de dados sobre os seres da mitologia indígena e sobre as histórias que correm pelo interior, buscando um fundo de verdade em tudo aquilo. Não chegou propriamente a conclusões, mas adquiriu a convicção íntima da existência de seres das trevas que, ocultos da humanidade, somente aguardavam uma oportunidade qualquer para voltarem à superfície e recuperarem o antigo poder, o poder que o Mal possuía na Terra nas épocas do Caos. Gusmão acompanhara com angústia a construção da Transamazônica e sentira alívio quando a mesma fôra abandonada. Para ele, mexer com a Amazônia era um salto no escuro.

—Mas a civilização humana é irreversível – concluiu ele. —Nada poderá impedir a devastação da Amazônia, é só uma questão de tempo. E quando isso acontecer, o mal que lá se encontra se desencadeará pelo mundo humano. Outros males existem, espalhados pelo mundo – veja o caso de Lord Carnavon – e simplesmente não devem ser mexidos. Um dia os homens irão longe demais e será tarde. É por isso que eu desisti de tudo na vida, não me casei, não quis ter filhos. Perdi a esperança no futuro, pois compreendi que a raça humana não é a dona do planeta e pode ser descartada ou derrubada por outras raças. Não quis deixar minha semente para um futuro tão incerto, um futuro dominado pelas forças malignas.

—Compreendo, Prof. Gusmão – respondi, sentada, algo constrangida, sem olhar para ele. —É uma pena que o senhor não seja cristão, não possa compreender que o Mal é poderoso mas o Bem é mais poderoso ainda e que as portas do inferno não irão prevalecer.

Eu também nunca mais fui a mesma depois dessa conversa. Ampliei minhas pesquisas e descobri o Necronomicon, os seus dois volumes, fiquei sabendo da conspiração dos Grandes Antigos e dos seus agentes humanos. Hoje eu tenho um amplo conhecimento das forças que se emboscam contra a Humanidade. Creio que o pior está para vir, que virá um dia em que o mal em estado puro se revelará de alguma forma. Quando este dia chegar, e eu já tiver tombado há muito tempo, a raça humana verá contestada a sua soberania na Terra. E só Deus sabe o que acontecerá. Ao contrário do Prof. Gusmão, não sou uma pessimista. Quero apenas ser realista. Não sei o que virá. Só sei que o amanhã virá... algum dia.

 

 

Valquiria Cruz

 

 

“A Pesquisadora dos Arcanos”

 

(NOTA: o Necronomicon é criação de H.P. Lovecrafto (EUA, 1890-1937)