Adeus, Primeiro de Maio

 [Paulo Ghiraldelli Jr.]

“Dia do trabalho”. Qual dia que não é de trabalho? Feriados e fins de semana? Mentira! Caso você não esteja trabalhando no lugar convencional, está se dedicando às tarefas caseiras, domésticas, paternais e maternais, religiosas ou coisas semelhantes. Você trabalha e então se irrita quando um filósofo lhe diz que o trabalho não importa – não importa mais!

Filósofos começaram a dizer isso até mesmo antes do tempo. Falaram isso já no próprio iniciar do êxito do “mundo do trabalho”, quando este se instituiu não como um lugar de trabalho, mas como uma expressão para denominar as características de uma era.

 

Não à toa, esse tal “mundo do trabalho” enquanto marca registrada de uma era, também gerou seu reflexo teórico: a sociologia, e com ela a teoria sociológica clássica, a dos três porquinhos: Marx, Durkheim e Weber. Grosso modo (e põe grosseria nisso!), juntos, eles diziam que “a modernidade” estava marcada pelo trabalho como o caracterizador do humano. Marx falou que se quiséssemos entender a psicologia humana, que olhássemos para a fábrica. Durkheim disse que se quiséssemos entender nossos costumes morais, que levássemos a sério a divisão do trabalho. Weber fechou o quadro contando que certas doutrinas religiosas não punham as pessoas para rezar somente, mas para trabalhar e para criar o trabalho como um valor que deveria mostrar socialmente quem estava no caminho do céu. Entramos o século XX com bem menos pessoas – minha avó à frente da reação – dizendo do tipo “como alguém pode ser uma boa pessoa se precisava trabalhar?” A maioria das pessoas (até mesmo os ricos) começou a se ver a palavra “trabalhador” não como apontando para uma condição de fato mas como fato para uma boa condição moral.

 “Sou trabalhador” – gritava já o brasileiro, ao menos após os anos trinta, para a polícia. Caso fosse branco, a polícia acreditava e o deixava seguir. Isso mudou pouco. Um negro pode gritar isso que até piora, soa como “sou vagabundo e malandro e estou mentindo”. Por isso mesmo, por ser vagabundo e, além disso, mentiroso, não ganha a punição que lhe era devida, uma sova, mas algo mais, um tiro. Todavia, dito em outro contexto, por exemplo, no seio da família de classe média, a frase “ele é trabalhador minha filha”, significa alta aprovação! Agora, até mesmo algo como “ela é trabalhadora”, é uma aprovação. No entanto, ainda que muita coisa do que disseram os clássicos do pensamento social continue válido e ainda que tais frases todas aí sejam citações que escutamos, é difícil não ver que há algo do “mundo do trabalho” que se esvoaçou mesmo, e que talvez não estejamos mais na “era do trabalho”. Os filósofos – Lyotard e Habermas à frente – tiveram lá sua razão ao dizerem, há quarenta anos pelo menos, que o “mundo do trabalho” não nos dá mais as nossas características.

O que realmente mudou? Habermas acertou em cheio: as “energias utópicas” do mundo do trabalho é que se extinguiram. Ele não disse que energias todas tinham acabado. Nem todas as utópicas. Ele disse que as que vinham do trabalho se esgotaram. Ninguém iria desenhar uma utopia do trabalho para o futuro. Jovens leitores, vocês não imaginam o quanto alguns que deveriam comemorar isso, ao contrário, ficaram tristes – estranhamente!

Todavia, de certo modo, Habermas também errou um pouco. Pois uma última utopia ainda assim, vinda do “mundo do trabalho”, ergueu sua cabeça. Não se tratava mais do comunismo, do nazismo e da social-democracia, os três grandes movimentos doutrinários e políticos do século XX, mas do patinho feio da família, que só para alguns era cisne: o libertarismo conservador. Nozick o trouxe pela via filosófica, se contrapondo à teoria da justiça de cunho liberal e com forte apelo social democrata, de John Rawls. Ele anunciou aquilo que, depois, quis se transformar em uma última metanarrativa, pois empurrada à força, como filosofia social, para o abraço a outros movimentos. Essa aglutinação ainda viria da “era do trabalho”.

Mas a que me refiro quando falo em aglutinação?

Muitos o confundiram o que Nozick dizia com o “pós-modernismo”. Mas esse erro teórico foi devido às confusões mentais típicas de um fim de século agitado quando já não se esperava agito algum. O libertarismo conservador, o neoliberalismo econômico e o pós-modernismo eram forças distintas. A esquerda que sobrou após as revoluções que puseram fim ao comunismo e à própria URSS como país (imaginem!) ficou tão diminuta que, para não aparecer como inexistente, inventou um inimigo gigantesco. Ela uniu como sendo “a direita” essas três forças. Não foi um completo erro, essas forças, uma vez somadas aqui e ali, em determinadas conjunturas, davam a impressão de uma nova metanarrativa. O erro maior foi absorver o libertarismo de Nozick e a diversidade do pós-modernismo ao neoliberalismo.

O libertarismo até tinha alguma coisa a ver com o neoliberalismo econômico, uma vez que a lição moral de Nozick era manter a ideia – liberal, claro – que dizia que se há distribuição de renda na sociedade isso não é problema, mas se há distribuição de renda pela mão do estado, isso é ilegítimo e no limite é um roubo. Não era a propriedade um roubo, como disseram os socialistas de antes de Marx, mas o roubo era justamente colocar o estado a serviço de alguma classe, em especial dos pobres. Mas, por sua vez, o pós-modernismo não tinha a ver com o projeto que lhe quiseram dar, exatamente porque o que ele anunciava era o fim de todas as metanarrativas e, portanto, ele próprio, não se via como mais uma metanarrativa ou como peça de uma metanarrativa. Ele não via seu anúncio pela colagem extrema e pela diversidade e contrariedade como sendo marcas gerais de uma era, mas parte de uma era que se abriria para formas de raciocínio típicas do que vivemos hoje, as da era da informatização.

Lytoard não falava a língua de Nozick e menos ainda a dos economistas ligados a Thatcher e Reagan. Nozick fez sucesso. Lyotard também. Mas os yuppies que deveriam substituir a geração de trabalhadores sindicalizados dos anos setenta e oitenta e eliminar de vez a geração anterior a de hippies e revolucionários urbanos (inclusive terroristas ocidentais), não colocou os livros de Lyotard e Nozick nas sua bolsas. Ao contrário, eles colocaram apostilas de MBA e, depois de um tempo, voltaram a pentear o cabelo como gente e não como passarinho. O yuppie foi uma figura dos anos noventa, mas muito mais passageira e bem menos marcante do que a do hippie, do revolucionário e o sindicalista. O patinho feio nunca virou cisne.

Chegamos então no que chegamos. Agora, realmente a profecia se concretizou. O “mundo do trabalho” não marca mais nossa época e as energias utópicas vindas dele se encerraram de vez. Ninguém, sem mentir em algum grau, diz que se realiza no trabalho. Ninguém se move politicamente pelo que vem do trabalho ou só do trabalho. A movimentação do desejo de nossa época é de ordem diversificada: direitos de minorias como quase sinônimo de direitos humanos tomaram conta de nossas vidas e fazem hoje do mundo, não mais dividido em capitalismo e comunismo, mas muito mais dividido entre estilo ocidental e outros estilos, um lugar em que gente como Norberto Bobbio tinha mesmo de dizer o que disse: vou morrer, tenho de morrer, não tenho mais nada a ver com esse mundo.

É assim que chegamos a mais um Primeiro de Maio. Os mais velhos, vendo tudo isso que eu escrevi com nariz torto, os mais novos, querendo saber do que eu estou propriamente falando. Mas todos vão passar o Primeiro de Maio como eu descrevo, como o dia equivalente (Labor Day, 5 de setembro) ocorre nos Estados Unidos, como um feriado a mais de um setor social restrito. Não se trata de um dia espetacular no qual se deve comemorar a vinda de Deus para a Terra, como já foi o caso para várias gerações no passado.

© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ