Acordos ortográficos confusos

(*) José Maria Vasconcelos 


Estou diante de saboroso vinho, na Praça de Alimentação do Teresina Shopping, rabiscando umas notas sobre Acordos Ortográficos nos  países de origem lusitana. Pago-lhe uma taça se me disser quantos Acordos já foram acertados em solenes tratados, regados a generosos néctares das vinhas.


Inicialmente, precisamos acertar os ponteiros: idioma é um patrimônio da soberania nacional. Não se pode sair por aí achando que língua, especialmente a culta e oficial, pode ser usada de acordo com o que “ eu acho, logo estou certo”. O idioma exige disciplina, regras, que só podem sofrer alteração sob a égide do Congresso, ouvidos especialistas no assunto. As línguas surgiram através de acomodações fonológicas, fenômenos climáticos, geográficos e culturais. Nas regiões frias, por exemplo, o organismo economiza o calor expelido pela voz, usando sons guturais. Observe a fala do alemão ou francês. Em regiões quentes, como Arábia, os fonemas disparam  em sílabas tônicas e graves. O idioma português, como as línguas neolatinas, nasceu de um processo lento do latim mal falado, por troca, deslocamento e fusão de fonemas, bem como simbiose com elementos linguisticos estrangeiros, numa época em que o analfebetismo beirava quase a totalidade da população, e o ato de escrever alçava o escriba aos ambientes palacianos. Depois da invenção da imprensa, os caríssimos e inacessíveis pergaminhos foram substituídos pelos livros, iniciando-se a popularização da cultura, multiplicando-se escolas, universidades e escritores. Alguns gênios como Luís Vaz de Camões, Shakespeare e Dante delinearam o perfil do idioma pátrio,nas suas obras, que serviu de base para a elaboração das gramáticas oficiais portuguesa, britânica e italiana. No Brasil, os romancistas José de Alencar e Mário de Andrade exploraram nossas raízes, despertando o interesse pela nossa identidade linguístrica. Criaram-se leis e acordos, a fim de disciplinar especialmente a comunicação oficial, científica e jurídica.


A primeira reforma foi em Portugal, 1904, Brasil presente. O filólogo português Aniceto dos Reis propunha acabar com a lei que estabelecia o uso de PH (fharmácia), RH ( rhego), TH ( Theresina) e Y ( Piauhy), de consoantes dobradas CC(facca), com exceção de RR, SS, bem como da acentuação gráfica. Esse Acordo só foi aprovado em 1911. O Brasil só aceitou em 1915. Osório Duque Estrada, autor do Hino Nacional, mobilizou a Academia Brasileira de Letras, e o Governo, em 1919, anulou o Acordo. Passamos a escrever PHILOSOPHIA, PHÓSPHORO, TYPO,  THÓRAX, TYRÓIDE.


Em 1931, internacionalizou-se o Acordo de Lisboa do início do século, caindo TH, PH, RH, Y e consoantes dobradas. O correto era FARMÁCIA e FILOSOFIA. Voltou ao que o Brasil rejeitara. Em 1932, porém, Getúlio Vargas derrubou novamente o Acordo inicial: FHARMÁCIA continuava, THERESINA também. Em 1945, o Acordo virou novamente desacordo. O Brasil fugiu a algumas modificações: Enquanto Portugal escrevia ÓPTIMO, AFECTO, ACÇÃO, o Brasil achava mais ÓTIMO, AFETO e AÇÃO.


Em 1971, Emílio Garrastazu aprovou nova Reforma, eliminando uma série de acentos, especialmente o diferencial, permanecendo apenas em algumas palavras. O atual Acordo, aprovado em 1990, sob interesses do Brasil, só em 2009 entrou em atividade, mas sob desconfianças de vários países de língua portuguesa. Os Acordos são tão mutáveis como a língua. O melhor é sentarmos e brindarmos mais um momento de devaneio intelectual. Taça é com Ç ou com dois SS?

(*) José Maira Vasconcelos - cronista [email protected]