[Paulo Ghiraldelli Jr.]

O estado intervém na esfera privada e proíbe a palmada na criança, até mesmo a chamada “palmada pedagógica”. Os liberais extremados ou, digamos, os libertários mais à direita reclamam muito disso. Eles acreditam que podem cuidar bem dos filhos e, se imaginam que alguém não vá fazer isso corretamente, insistem que a melhor solução é colocar na rua uma campanha educativa para a população adulta. Ma que o estado não passe da soleira da porta. Os liberais mais à esquerda e os social-democratas não acreditam muito na campanha educativa e, olhando as estatísticas de agressão à infância preferem apostar que a soleira da porta respeitada não vá significar outra coisa que não a porta de um calabouço de tortura para os menores.

Libertários à direita, nesse caso, defendem a idéia de que os adultos, sendo pais, sabem o que fazem. O estado é que não sabe. Liberais e sociais democratas, e a esquerda em geral, imaginam que os adultos, mesmo sendo pais, podem extrapolar em suas ações. O estado pode ser mais sábio.

Os libertários mais à direita mudam de opinião sobre os adultos quando diminuímos o tamanho das crianças. Por exemplo, se transformamos as crianças em fetos, eles repentinamente começam a acreditar que os pais, tão ajuizados e sábios quando as crianças estão engatinhando pela casa e berrando, tornam-se ferozes assassinos. Esses pais pararão de tomar pílula e usar camisinha. Não usarão nem mesmo a pílula do dia seguinte ou da semana seguinte. Não serão tocados por campanhas educativas. Começarão a abortar indiscriminadamente. Os mais à esquerda também mudam: de protetores das crianças eles rapidamente passam a acreditar que o importante mesmo são os adultos, que precisam ter pleno domínio do próprio corpo para além de qualquer outra regra, até mesmo a regra de proteção dos fetos que, afinal, são crianças, não são? Então, o estado deve intervir agora em favor dos adultos, não só retirando o aborto da condição de crime, mas, também, deixando-o realizar-se pelo SUS. Os abortos legais, a esquerda acredita, serão em bem menos número que o que temos, hoje, de ilegal. Sabe-se lá por qual razão, nesse caso, esquerda acredita em campanha educativa.

Assim, do ponto de vista prático, os argumentos dos ideários políticos não se mostram capazes de poder decidir essas questões. Parece haver um empate. Há outras questões correlatas, como as leis de proteção dos animais e as leis sobre a eutanásia. Nesses casos, os argumentos proliferam tanto quanto no assunto anterior. Mas a divisão entre esquerda e direita fica mais borrada. Essa divisão, que ainda é possível de mostrar alguma nitidez quanto aos primeiros, é a que abocanha as farpas que podemos ver aparecer entre direitos individuais e proteção da infância. Por isso mesmo, é esse o quesito que pode emergir em campanhas eleitorais.

O outro ponto que ainda alimenta a divisão entre direita e esquerda, e que diz respeito aos direitos de minorias, é o atinente ao “casamento gay” e às leis contra homofobia.

Nesse caso, a direita volta a negar o que afirmou quanto à palmada pedagógica. A direita diz que os adultos não sabem o que fazem. Não se pode deixar que eles escolham a maneira de selarem uniões amorosas. Caso deixemos os adultos começarem a casar sem qualquer comando, logo a sociedade inteira poderá ter casais gays e, então, a estrutura da família tradicional ruirá levando a maioria das crianças a se tornar gay. Ao final de alguns anos não se saberá mais como ter filhos a não ser por métodos não naturais. Alguns da direita chegam até a ver o futuro segundo uma ficção perversa: milhares de mulheres de útero de aluguel, na condição de funcionárias públicas, serviriam de fábricas de bebês para “papai-titio” e “mamãe-titia” e coisas assim.

Além disso, a direita tende a associar o homossexualismo à pedofilia. As crianças que ficaram à mercê de pais agressivos e, então, sem poderem ver o estado passar a soleira da porta, repentinamente escutam vozes que pedem que o estado não apenas passe a soleira, mas entre pelas janelas e portas dos fundos para pegar inúmeros pedófilos que povoam as casas brasileiras – vindos da rua ou do próprio interior da residência.

A esquerda, por sua vez, tende a não ver nenhum problema quanto ao “casamento gay”. Mas ela está longe de tomar uma simples posição favorável. Ela diz que o “casamento gay” e, enfim, a “vida gay” em geral está sob ameaça. Nessa linha, o estado não pode apenas garantir a liberdade gay, mas, mais que isso, deve intervir favoravelmente contra vocabulários e ações que possam desencadear problemas diretos ou indiretos aos homossexuais. Não é que os homossexuais vão ocupar, então, na esquerda, o lugar que as crianças já ocupam, mas eles vão ter uma proteção contra agressores para além do que a lei atual já tenta evitar, dentro da idéia de que nenhum cidadão pode agredir o outro.

Todos esses assuntos movimentavam as eleições americanas nos anos setenta e oitenta. Continuaram a aparecer nos anos noventa. Agora, tais assuntos chegaram até nós. Estiveram presentes nas eleições em que Dilma venceu. Vão estar presentes em nossas próximas eleições, senão nas pequenas cidades, ao menos nas capitais, principalmente em São Paulo. Alguns na esquerda e, de certo modo, até na direita, irão dizer que a elevação desses assuntos à condição de temas de debate eleitoral é um retrocesso. Eu não vejo assim. O Brasil descobriu a política de minorias associada aos temas da bioética. Isso não é um retrocesso, é sinal que outros temas do passado conseguiram ir para o passado. Já não falamos mais em “classe trabalhadora” ou “luta de classes”. Mas, também – e isso é positivo – já não falamos em combate à inflação e erradicação da miséria com o mesmo nó na garganta do passado. Jargões tradicionais do espectro político perderam força. Vocabulários atinentes a problemas que não resolvemos, mas que foram ou estancados ou amortecidos deixaram de ter importância. Assim, é de se esperar que determinados temas que, para alguns, soa irrelevante, irão aparecer vitaminados.

Todavia, esses temas estão longe de serem irrelevantes e estão longe de se mostrarem realmente tão novos quanto podem parecer à primeira vista. Pois todos eles remetem a algo mais velho e até anterior a tudo na política moderna: a questão da liberdade individual. É essa questão, que emergiu lá com o liberalismo de Locke, bem antes da Revolução Francesa, e que teve de ser cozinhado depois pelas formas com que os direitos sociais foram se acoplando ao estado liberal, é o que está em jogo em toda essa nossa conversa atual. São temas que envolvem coisas que aparentemente seriam próprias da esfera privada, não pública. Mas, agora, do modo como estão equacionadas, são coisas do âmbito legítimo do jogo político.

Alguns vão querer discutir o buraco da rua X na cidade de São Paulo. Mas, outros vão querer discutir, sim, qual a opinião do candidato que estiver na frente das pesquisas a respeito do aborto e da proteção da infância ou da estruturação da família, como se o prefeito viesse a decidir algo nesse sentido. Isso não será errado, pois o prefeito de São Paulo, todos sabem, se ele jurar que não será candidato à presidência da República e, enfim, não estiver mentindo, é porque será candidato ao governo do estado antes. E um candidato assim, terá de dizer como agirá ideologicamente com os seus deputados.