A vivência trágica feminina em Corpo Vivo

(*)Sandra Maria Pereira do Sacramento

Professora doutora pela UFRJ, titular do Departamento de Letras da UESC em Teoria da Literatura.

Corpo vivo de Adonias Filho é uma narrativa ambientada no Sul da Bahia e centra-se nas desditas de Cajango e sua família. Como nossa tematização circunscreve-se à figura feminina, daremos destaque a duas personagens que são a mãe de Cajango e seu grande amor, Malva.

Um problema de base que se coloca em Corpo Vivo, a partir do qual toda a trama romanesca se desenvolve, é a posse da terra. Cajango procura a vida toda por aqueles que mataram os seus, movidos pela cobiça em relação à produção cacaueira.

“A excelente performance do cacau na pauta de exportações até 1910 valorizou consideravelmente as terras existentes e aumentou bruscamente a procura de novas. Práticas inescrupulosas de apossamento de terras devolutas e lutas pelas já ocupadas incorporaram-se ao cotidiano da lavoura [...]”. ( FALCÓN,1995:57)

Mas, paradoxalmente, se rende às leis do coração em um processo mítico, como se o livre arbítrio não fosse possível estar presente. E a morte se coloca sempre à espreita a ditar os acontecimentos, levando os enamorados a agirem como se estivessem fora da esfera física.

Neste processo, não é difícil identificar o trágico na obra de Adonias Filho, enquanto junção à vida.

O amor entre Malva e Cajango ancora-se em preceitos arcaicos, em que a moral pauta-se em valores que não são os da modernidade tout court, ainda que o patriarcalismo agrário se faça presente. Nesta dimensão, este sentimento assume o trágico, com viu Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, ao ir contra a filosofia socrática:

Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico – racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. (p. 10)

Logo, a saída para o homem está na aceitação do trágico., passando necessariamente pela vontade de potência, ao abrir espaço para a aceitação dionisíaca do terrível e do incerto na vida. Para a problematização trágica, nada é em definitivo e, ao contrário da épica, o conflito radica-se, não entre o bem e o mal, mas entre bens diferentes com valores heterogêneos, com escolha sempre dolorosa. A verdade trágica, pois, não opta por uma particularidade unilateral, uma vez que a solução do conflito não ocorre de maneira límpida, mas sempre com perdas.

Tratando-se de país colonizado como nosso, não é de estranhar que, devido às questões relacionadas ao processo acomodatício dos valores externos, tornados internos, a resposta do colonizado não ocorre de acordo com a matriz, assim, o ethos ligado à modernidade, como a valorização da subjetividade, o livre arbítrio, a racionalidade , ganham peculiaridades próprias em nações periféricas como a nossa , em que os dados internos não são pautados por cânone imposto . Malva foi capaz de  desafiar o patriarcalismo local, mesmo sabendo que o pai e o irmão foram mortos pelo grupo de Cajango, para seguir seu grande amor.

Ali está, a mulher. Pode estender os braços e levantá-la do chão, apertando-a, para escutar o coração batendo. Fita-a, ouvindo o fogo mordendo a lenha, os olhos subindo como tomados de vontade própria. Descalços, no chão, os pequenos pés. O ventre, os seios, o pescoço fino. O rosto que se oferece, úmidos os lábios, curioso e sem medo o olhar . Anda, três passos, para deter-se muito perto. Ouve a respiração e sente o hálito. Você demorou . ( pp. 95-96)

A exclusão e a hieraquia começaram lentamente a declinar quando se impõe a todo o Ocidente o novo ideal de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Mesmo que as mulheres tenham sido as últimas beneficiárias, a mudança ideológica introduzida pela Revolução Francesa, a mais decisiva das revoluções do mundo ocidental, portanto um golpe mortal a todo poder imposto pela graça de Deus e pela mesma a toda idéia de superioridade, natural de Um sobre o Outro. (BADANTER, 1986: 201)

Na “ civilização grapiúna”, porém, impulsionada por guerras sangrentas pela posse de terra, os acontecimentos não ocorreram na mesma coordenada histórica : “O mundo é grande – Alonso – mas querem as terras de Januário. “( p.5 ) “Sangue de gente, como o estrume , começava a se misturar com a terra.” (p.16) . Ali, o cacau, elemento propiciador de riqueza e poder, impunha a sua própria Lei, através da força, e não do estado de direito. “Eu ia me convencendo de uma verdade: o mundo  começava naquele pedaço do Sul da Bahia.” (p.20). “Os patrões têm tantos homens e armas quanto cacau nas roças.” (p.38)

Em Corpo Vivo, o que se percebe é que o poder patriarcal, advindo da ampliação latifundiária, ganha uma dimensão outra devido à relação amorosa entre Malva e Cajango. Sua mãe, por exemplo, chegou a advertir o marido quanto à possível invasão das terras, mas não obteve adesão. “Ainda no almoço a mãe insistira, temia uma desgraça, o pai não podia lutar sozinho contra a tropa dos jagunços. Facilitara, porém, o homem prevenido”. (p.9)

 Malva, por sua vez, se insurge contra a ordem estabelecida, ainda que o narrador a descreva como um ser frágil e dócil diante do amado. (...) Cajango põe a mulher de pé. É mais um entre os seus pertences. O rifle, a mulher, a cartucheira, a faca. Volta-se, após fechar a porta, para deter-se face à criatura que o contempla – passiva e humilde – como uma cadela ao dono. ( p.70 )

Cajango ainda que reforce, em alguns pontos, os valores locais, presos à condição de gênero, como o exemplo acima, demonstrarem outros momentos, forte oposição. Neste sentido, acaba assumindo seu amor, após a concretização de seu projeto de vingança, para se refugiar em “seu ninho de amor”. As florestas como que se encolhem para o sono nas trevas. O ninho, ele pensa [João Caio ]”. (p.91) Assim , a terra , objeto de disputa e causadora de toda sorte de desavenças é também local de acolhimento dos amantes .

A morte do pai de Malva ocorre, não para vingar a chacina ou a indevida apropriação das terras de Januário, antes pela necessidade premente da realização  afetiva do casal. Neste processo, é justificável, enquanto argumentação romanesca, a morte do pai literalmente, para que Malva optasse por seu amor.

É interessante notar que o Brasil e especificamente o Sul da Bahia ganham reveses próprios. A colonização européia, ainda no século XVI, bem como aquelas que a sucederam, não ocorreram alinhadas ao pensamento etnocêntrico exterior; houve antes uma dialética processual em que o interno não foi capaz de manter-se íntegro, ganhando em multiplicidade híbrida, bem como o externo. Tanto um, quanto o outro foram ressematizados em um processo polifônico em oposição ao discurso monológico.

Ora, insistir na origem da nação é privilegiar um projeto da modernidade, noção “construída”, de acordo com Benedict Anderson em Imagined Comunities (1991) como algo político, que não levou em conta o processo, na medida em que se prende a um conceito essencialista, ao desconsiderar outras narrações propícias a historicidades e etnografias distanciadas das centrais. É aquilo que Bhabha chama de disseminação.

As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras- tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recebem identidades essencialistas. (...) (BHABHA, 2001:211)

Logo, o Brasil, por sua condição de país colonizado, com formação étnica e cultural heterogêneas, apresenta saídas interpretativas ao logos europeu, colocando-nos em uma pós- modernidade avant la lettre. (YUDICE: 1991,88).

As prerrogativas dispensadas ao gênero humano pela Ilustração, com a valorização do eu, tiveram em contrapartida o assujeitamento da individualidade, ou seja, um ideário que, em princípio, seria de libertação só fez amesquinhar, condicionando as 6 ações aos discursos legitimados. E, em se tratando de nação colonizada como a nossa, estes discursos ganham uma dimensão outra.

A personagem Malva, por exemplo, ao se insurgir contra o patriarcalismo, como este se colocou por aqui, subverte toda sorte de imposição. Malva encarna o projeto burguês do amor romântico, mas, ao mesmo tempo, despreza os envolvimentos daí advindos. O amor romântico, em seu bojo, traz também algum tipo de comprometimento com o Antigo Regime, quando neste as alianças se firmavam por interesses, que não os sentimentais.

Malva contraria esta condicionante, mas na região cacaueira, entre aqueles que detinham latifúndios, os casamentos ocorriam como manutenção dos interesses de classe. O chefe familiar, detentor do poder, utilizava-se dos mecanismos sustentados em torno de sua pessoa, aglutinando o ideal de vários segmentos economicamente independentes.

(...) , os casamentos internos contemplam a continuidade de um passado ancestral. Tal proposição remete-nos ao modelo familiar da Roma Antiga e à sua relação com a religião, e a relutância à alienação da terra-patrimônio, para a qual era necessário a organização de ritos de emancipação. De acordo com a teoria que analisa o parentesco como uma linguagem, a descendência é fundamentalmente uma questão ideológica. A endogenia não surge de preceitos de castas, mas de padrão de herança para que a terra permaneça com a família. (RIBEIRO, 2001:30)

Neste processo, o que sobressai é a possibilidade da tomada da palavra, por uma personagem do gênero feminino, que não ocupando o centro irradiador da cultura, 7 pôde colocar-se enquanto sujeito periférico que busca a construção de uma identificação a partir de referenciais próprios, porque internos.

Isto ocorre porque, em nome da razão comunicativa, há a tomada da palavra pelo “vencido” ; havendo então a possibilidade de inserção das vozes silenciadas. Neste processo, o discurso monológico, calcado na razão sistêmica, é refutado e valoriza-se o dialogismo. E a figura feminina colonizada, enquanto sujeito da enunciação, reivindica sua forma de interpretação dos códigos sociais em que está inserida e colocando-se como ser construtor da sua própria historicidade.

Não tenta afastar-se. Com as mãos nos cabelo de Cajango, nas mãos dele a sua cintura, recua a cabeça. O fogo, que está no chão, reflete em seus olhos. Pede em tom baixo que abra a porta, andarão na noite, ficarão deitados na relva. A porta, ao ser aberta, mostra o campo em trevas e encolhidas estarão as árvores. Devia Ter sido assim com o pai e a mãe. Anda, ao lado do homem, vencida por seu corpo de mulher. ( p.96 )

Malva e Cajango encarnam a moral de senhores, pois esta é positiva por estar baseada no sim à vida, e se configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Segundo ainda Nietzsche, a moral aristocrática, a moral de senhores é voltada para os instintos da vida .

Malva faz prevalecer a visão trágica da vida, isto é, apresenta-se transgressora dos valores locais e temporais: patriarcalismo, castidade; por optar por Cajango, mas a moira volta a agir ,pois o futuro de ambos não fica determinado, somente, a partir de suas opções, de suas volontés . Aos deuses, cabe o destino de ambos.

Neste sentido, os valores locais detectados não são europeus, já plenamente capitalistas. Há uma re-alocação destes no país colonizado. Naquele momento  histórico, final do século XIX e início do XX, o Sul da Bahia ainda se encontrava sob a égide do ruralismo, enquanto a Europa já havia alcançado a solidificação do Liberalismo e da vida urbana. Não poderia expressar outra reação a nossa personagem Malva, quando produz uma dissidência e um distanciamento na matriz simbólica em desarticulação. Isto porque, ainda que transite pela NORMA, no caso com valores patriarcais bem delineados na sociedade cacaueira, transgride- os, ao optar por seu grande amor. Age movida, não pela razão sistêmica da “cogito”, mas pelo instinto. Não possui a moral ascética da modernidade; ainda que laica.

Referências bibliográficas :

ANDERSON. B. Imagined Commu Imagined Commu Imagined Communities. London and New York: Verso, 1991.

BADANTER, E. L’un est l’autre : Des Relations entre hommes L’un est l’autre : Des Relations entre hommes e L’un est l’autre : Des Relations entre hommes et femmes et femmes t femmes. Paris : Odile Jacob,1986.

BHABHA, H. O Local da Cultura O Local da Cultura O Local da Cultura. Trad. Myriam Àvila , Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte:UFMG,2001.

FALCÓN, G. Os coronéis do cacau Os coronéis do cacau Os coronéis do cacau . Salvador: CED ( Centro Editorial e Didático da UFBA), 1995.

FILHO, A . Corpo Vivo. Corpo Vivo. Corpo Vivo. 27ª ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1997 NIETZSCHE,F. Obras Incompletas. Seleção de Gérard Lebrun. Trad. E notas Rubens Rodrigues Torres Filho. Posfácio de Antonio Candido, São Paulo: Nova Cultural,1996.

 RIBEIRO, A . Família, poder e mito : o município de Sã Família, poder e mito : o município de São Jorge de Ilhéus o Jorge de Ilhéus (1880 - 1912). Ilhéus: Editus, 2001 1912).  

YUDICE,G, Posmodernity and transnatioanl Capitalism in Posmodernity and transnatioanl Capitalism in Latin Amer Latin America. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Niterói, v.1, 1991.