A VINGANÇA DO ESCRAVO
Por Elmar Carvalho Em: 22/06/2011, às 18H33
Elmar Carvalho
Resolvi conhecer a localidade Boqueirão do Vento, onde nascera o poeta Mário Catunda Fontenele, vate de minha especial predileção. Fui em minha motocicleta, de 400 cilindradas, rompendo o areal da puba, onde vi dois engenhos movidos por juntas bovinas. Atravessei a chapada Soledade, de nome muito bem posto, deserta de tudo, deserta até da própria deserção, como disse o poeta. Parei apenas para fotografar um ipê roxo e outro amarelo, um pé de araticum e uma sambaíba, de folhas bem verdes e lixentas. A paisagem, os engenhos e os paus d'arcos foram cantados por Mário, em versos sublimes, modelares; as fotos se destinavam a ilustrá-los, como parte de uma monografia que eu estava escrevendo, sobre sua vida e obra.
Quando cheguei a meu destino, pedi a um nativo, de nome Josué, que me levasse até as ruínas da casa grande, onde nasceram os avoengos do poeta. Vi os baldrames, feitos de pedra jacaré. Disseram-me que ela fora construída toda de pedra, ainda no tempo do cativeiro. Segundo minhas pesquisas orais e os autos de um inventário, do qual tirei cópia de capa a capa, o imóvel pertencera a Miguel Furtado Fontenele, que tivera prole numerosa, entre os quais dona Rosa Lina Cardoso Fontenele e o cônego Gastão Cardoso Fontenele, que não deixaram descendentes. O bardo herdara a fazenda, e depois a vendera, por uma bagatela, a um grande proprietário de Boqueirão do Vento.
A fazenda, de nome Angical, tem fama de ser mal assombrada, e correm lendas a seu respeito. Dizem os moradores de Boqueirão do Vento que, nas horas mortas, se ouvem gemidos, açoites e arrastar de correntes, como se viessem da casa ou dos arredores, onde provavelmente fora a senzala. Conta-se que Rosa Lina ficara viúva ainda jovem, por volta dos trinta anos de idade. Era uma mulher alva, de olhos azuis, muito perversa e muito rica. Tinha léguas de terra e centenas e centenas de reses, além de engenhos e aviamentos. Ainda hoje são contadas histórias sobre os seus brutais castigos. Tinha como braço direito Antônio Couto Sepúlveda, famoso capitão do mato, que se celebrizou por suas atrocidades contra os negros fujões, que conseguia capturar. Esse feitor tinha uma espécie de guarda, formada por sete negros, que gozavam de privilégios, como o de dormirem e comerem na casa grande (e não na senzala) e de não executarem serviços pesados. Desse modo, o feitor conseguia deles uma fidelidade canina.
Rosa Lina não contraiu novas núpcias, mas não se absteve de sexo. Aliás, corriam rumores de que era uma mulher fogosa. Fogosa e formosa. Contudo, não se poderia dizer fosse uma messalina da caatinga, daqueles ermos sertões, pois escolhia sempre apenas um escravo, que era o seu favorito durante certo tempo, mormente enquanto se mantivesse em forma e bastante ativo nos trabalhos de fornicação. Durante esse período, mantinha e exigia fidelidade, reciprocamente. Quando o serviço de cama se tornava rotineiro, o escravo deixava de ser o favorito, e voltava para a senzala, sem nenhuma regalia, quanto à comida e quanto ao serviço, voltando a ser lavrador ou vaqueiro, conforme a necessidade do momento. Quando a viúva já estava por volta de seus 45 anos de vida, descartou mais um amante, e tomou como favorito um escravo alto, forte, musculoso, rijo como uma peroba, de nome Matias Pereira. Tinha ele apenas 18 anos quando a senhora o tomou por amante. Já então ela não era tão formosa, e começara a engordar.
Rosa nutriu por esse negro uma paixão avassaladora. Parece ter sido ele a única criatura que ela realmente tenha amado, se é que ela poderia amar alguém. Como uma sacerdotisa do amor, ensinou-lhe, em verdadeiro kama sutra prático, com lições ministradas em sábias, repetidas e exaustivas experiências, os segredos todos do sexo. Cavalgou o mancebo de ébano e foi por ele cavalgada, em noites e madrugadas de fúria e muita luxúria. Entretanto, quando o jovem escravo, já parecia dar mostras de certo enfado e fastio, como saciado ou mesmo enojado da farta carne branca da matrona, esta, certa noite, acordou e viu que ele não estava na cama, a seu lado. Sem fazer ruído, lentamente, pé ante pé, a mulher saiu a sua procura.
Foi encontrá-lo no quarto onde as selas, as perneiras, os gibões, os chicotes e os arreios eram guardados. Ele, completamente desnudo, à luz indiscreta de uma candeia, cobria uma bela escrava, de corpo escultural, de dura e curvilínea carnação, na flor de seus dezoito anos. A pequena janela estava entreaberta, de modo que Rosa Lina pode ver detalhes do jogo amoroso. A escrava se chamava Maria dos Prazeres. Matias se casara com ela, em cerimônia religiosa secreta, realizada no terreiro da senzala. O casal, na fúria da paixão, no desespero das carícias ardentes, não viu a fazendeira, que retornou a seu dormitório, onde fingiu dormir, até o retorno silencioso do amante.
A paixão doentia de Rosa Lina por Matias se converteu em ódio. Passou a odiá-lo com o mesmo desespero e intensidade com que o amara. Sentiu-se desprezada, abandonada, rejeitada, como uma botina velha e rota, trocada por uma negra jovem e bela. Nunca sentira tanto ódio e tanta fúria em sua vida, ao lado do profundo sentimento de perda. Naquela manhã chamou o feitor, com quem urdiu a sua vingança atroz.
- Quando o castigo for executado, você receberá 12 cabeças de gado bovino, de sua livre escolha. Agora, exijo que me traga a prova de que o serviço foi feito do jeito que estou mandando... - Disse a matrona ao feitor, que assentiu.
Dois ou três dias após, quando Maria dos Prazeres saía da senzala, alta noite, para se encontrar com Matias, o capataz e mais dois homens de confiança prenderam e amordaçaram a escrava. Levaram-na para o riacho Gameleira, onde a afogaram. No dia seguinte, Antônio Couto e seus sequazes simularam haver descoberto o cadáver, e o enterraram à margem do córrego. No local, perto da cova, de vez em quando, o Gameleira borbulha, razão pela qual as pessoas dizem tratar-se de gargarejos de afogado. A lenda diz que se trata da alma da escrava Maria dos Prazeres a denunciar o crime de que foi vítima, e a clamar, ainda hoje, por justiça, como se todos os seus algozes, de há muito, já não estivessem mortos.
O escravo Matias foi acometido de profunda tristeza. Sua amante, dissimulada como só os grandes pervertidos conseguem ser, nunca deu mostras de conhecer a sua traição, de modo que ele jamais suspeitou do destino trágico que a vingança de sua patroa lhe reservava. Aliviado, estranhou apenas ela não mais o procurar para satisfazer a sua lascívia, como costumava fazer. Sete dias após a morte de sua mulher, foi chamado pelo feitor, sob a desculpa de que iriam à procura de reses desgarradas, em lugar longínquo. Os cavalos estavam arreados, e a matalotagem já se encontrava nos alforges, bem como as cabaças já estavam cheias de água potável. No meio da erma chapada Soledade, Matias foi agarrado pelos companheiros do feitor, e brutalmente espancado até ficar quase morto. Por entre as chibatadas, foi-lhe revelada a causa da vingança, e como foi morta Maria dos Prazeres. Após os brutais açoites, Antônio Couto Sepúlveda, excedendo-se em seu costumeiro sadismo, com uma faca muito bem afiada, castrou o negro. Enrolou cuidadosamente em uma toalha o produto da emasculação, e colocou o embrulho no embornal, como prova de que tudo fora feito na forma acordada. Deixaram-no atado pelos pés e pelas mãos, para que ele morresse de sede, fome e insolação, sangrando como um porco que era, que nem a madame respeitara.
Cinco meses após esses acontecimentos, a casa grande da fazenda Angical foi incendiada. Quando a fazendeira e o feitor conseguiram sair, completamente desnorteados por causa do fogo jamais esperado, foram fuzilados por uns tiros certeiros, vindos de moita próxima. No dia seguinte, um dos homens que fizera parte do grupo de Antônio Couto foi até o local onde deixara Matias. Não viu cadáver nem ossada. Teve ele a certeza de que o escravo escapara. Soube-se, depois, por boatos, que ele fora encontrado por uns escravos quilombolas, que com unguentos e emplastros lhe conseguiram estancar o sangue da mutilação, e lhe deram guarida no quilombo da localidade Sambaíba, instalado num dos socavões dos morros ali existentes.
Nesse reduto de escravos fugidos, Matias conseguiu convencer um grupo de negros jovens e decididos a ajudá-lo na execução de sua vingança. Com a ajuda de cavalos e armas de fogo, a que os escravos comuns não tinham acesso, ele conseguiu planejar e executar a sua vindita. Além de sua torpe e covarde mutilação, o moveu sobretudo a morte de sua amada mulher. Outra casa grande foi erguida, por um dos herdeiros de Rosa Lina, porém em local distante da casa velha de Angical. A alma de Maria dos Prazeres ganhou fama de milagrosa, e pessoas fazem romarias a seu túmulo, em pagamento de promessas pelas graças e dádivas alcançadas. Rosa Lina, na voz do povo, se transformou em alma penada ou mula sem cabeça, a vagar sem descanso e sem paz pela chapada Soledade, pela casa velha da fazenda e pelo riacho Gameleira, onde escuta o gorgolejo da escrava afogada.