A vingança de Sandoval
Por Antônio Francisco Sousa Em: 18/02/2008, às 13H16
- Que bom tê-lo encontrado, amigo. Preste atenção ao que vou lhe falar e, depois, diga-me se tenho cura. Foi assim que Sandoval me abordou, outro dia, antes mesmo de nos cumprimentarmos.
Semana passada, começou, fui convidado por um conhecido nosso, de quem não vou declinar o nome, pois você não estava lá, para a festa de aniversário dele. Na verdade, eu nem o tomava por amigo; achava-o, mesmo, antipático e arrogante, do tipo que não gosta de levar desaforo para casa. Bom, deixa isso para lá. O fato é que, quando chegamos – eu e a patroa – o moço fez questão de nos levar a todas as mesas de seus convidados ilustres e de me apresentar exatamente como sou: um pequeno e honesto comerciante que faz suas amizades sem deixar de ser o que é: um cara emburrado e sempre desconfiado. Você também acha isso de mim, claro, e tem razão. Perguntou e respondeu sem me deixar falar: assim é Sandoval. E prosseguiu.
- Mais tarde chegaram duas figuras – num cochicho, contou-me seus nomes -, folhas dos meus cadernos de fiado que, vez em quando, eram promovidas à lista de caloteiros, parecendo donos do mundo. Por estarem servindo, ou melhor, desservindo ao governo, talvez cressem que todos lhes deviam deferência. O anfitrião não precisou apresentá-los a ninguém. Lá foram eles, logicamente, às mesas das autoridades, saltando as dos comuns, como a nossa. Parecia que tinhamos lepra ou outra doença contagiosa. Notei que Sandoval ainda estava aborrecido e tentei mudar de assunto. Debalde.
- O que estou lhe dizendo, já retomando o monólogo, espero que o amigo entenda, não significa que tenha ficado constrangido ou enciumado pelo fato de tão insignes personalidades não me terem dirigido a palavra. Mentira minha: fiquei deveras encabulado, mesmo compreendendo que cada um age de acordo com sua consciência. A propósito, pude confirmar um antigo adágio que minha avó citava: quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. Olhe, juro a você: tivesse eu na condição deles, prestando serviços a um governo que ajudara a eleger, sendo útil, certamente, me tornaria um cristão ainda mais feliz. Que é isso? Não me surpreenderia se começasse a bater papo até com inimigos. Como certas pessoas não sabem, sequer, ser agradecidas! O velho Sandoval estava sendo sincero. Por que os idiotas não foram falar com ele?
- Mas, e daí, meu camarada, viu os malandros depois daquele dia? Quis saber.
- Pois é, dia desses as figuras deram as caras lá no barzinho. Ainda hoje penso que somente encostaram porque a casa estava lotada. É que depois de conseguirem dinheiro que dava para pagarem suas contas nunca mais haviam aparecido. Estavam muito alegres. Pediram duas cervejas. No trajeto até o freezer, diversas idéias me passaram pela cabeça. Quase lhes digo que meu estoque estava vendido aos clientes ali presentes ou reservado a outros que haviam combinado passar mais tarde. Fiz algo mais cruel: levei-lhes as duas mais geladas cervejas que havia. Os danados beberam-nas de goladas. E pediram mais duas. Fingi que não era comigo que falavam. Eles insistiram, aos gritos. Fui até à mesa deles e, baixinho, falei-lhes que tinha ficado sem cervejas, porém, se esperassem uns quinze minutos, iria pegar em um amigo. Outra mentira, os freezers estavam cheios. Sabe o que fizeram? Mandaram pendurar a conta, alegando que eu não teria troco para sua cédula de cinqüenta reais. Foi como me dar um soco. Você sabe que um dos meus defeitos é sempre ter troco. Para completar minha ira, disseram que o dinheiro deles era para tomar todas. Aproveitei a deixa e lhes disse: e tomaram mesmo. E continuei: sem problema, companheiros – então, já falando alto para que todos ouvissem – como oferta desta humilde bodega, não precisam pagar por estas duas; agora, quanto às dezenas que estão neste velho e ensebado caderno – que fiz questão de mostrar -, há meses penduradas, se quiserem acertar, a casa agradece. Resolveram ir embora. Na saída, tenho certeza de que me viram levar uma cerveja gelada, empoada, que retirara de um freezer ao lado deles, a um cidadão lá no fundo do bar. Não sei o que pensaram, nem me preocupei com o fato: fiquei de alma lavada. Mas só a princípio, complementou com um ar de tristeza.
- Apesar da compreensão dos amigos, que perceberam ter agido daquela maneira porque os caras tentaram me humilhar, confesso-lhe: foram momentos horrorosos os que vivi a seguir. Sou um homem rústico e até mal-educado, só não sabia que poderia ser tão vingativo. Comecei a ter medo de mim mesmo, meu amigo. E aí, será que tenho cura?
Pobre Sandoval. Como é duro tentar ser ruim ou injusto quando se tem boa índole e um coração amanteigado.
Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal
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