A vida e a vida de Jorge Amado

Ana Maria Machado

O autor fazia questão de dizer que “Navegação de cabotagem” não é um livro de memórias. Segundo Jorge Amado, tratava-se apenas de “Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei”. É essa a denominação que escolheu para subtítulo da obra. Grande saída, belo exemplo de baianidade — podem dizer alguns. Assim, não precisou se preocupar com ordem cronológica, verificação de datas, nomes de lugares ou pessoas citadas, ou com a exatidão minuciosa de todo e qualquer detalhe concreto verificável por jornalistas curiosos ou historiadores futuros. Ficou dispensado de preencher lacunas. Avisou desde as primeiras páginas que não assumia qualquer responsabilidade pela precisão das datas. Pronto, ficou livre de cobranças.

O resultado acabou sendo um livro gostosíssimo de ler, saltitante de um assunto para outro como tico-tico no fubá, e sem qualquer compromisso com um encadeamento narrativo. Evidentemente, não é uma autobiografia. Também não são memórias no sentido estrito do gênero literário. Tampouco é uma obra de ficção — a não ser na medida em que Jorge Luis Borges já alertava: toda memória é uma seleção recontada e, portanto, uma narrativa ficcional.

As reminiscências evocadas, porém, constituem um belo livro de lembranças compartilhadas. Trazem o tempo reencontrado na memória e oferecido ao leitor, aos 80 anos do autor, num tom de prosa na varanda. Ou no convés de um pequeno navio, de porto em porto, como se viajava na juventude do autor, num país cujas distâncias não se venciam por rodovias ou ferrovias. Para ir de uma cidade a outra embarcava-se num daqueles vapores de navegação costeira chamados Itamaracá, Itapemirim, Itaiatuba. Um tempo em que o jovem provinciano que sonhasse com os grandes centros tinha de fazer como na canção do parceiro Caymmi: “Tomei um Ita no Norte/ Pra vir pro Rio morar/ Adeus meu pai, minha mãe,/ Adeus Belém do Pará”.

Enquanto desliza pelos mares desse tempo, Jorge Amado vai contando casos, celebrando os amigos, revelando sua concepção do mundo e do Brasil, numa conversa interessantíssima e irresistível. Aqui afloram indiscrições sobre os bastidores do Nobel, ali acompanhamos a convivência com os grandes de seu tempo (como Picasso, Neruda, Sartre), acolá revivemos as contradições do período Vargas e da redemocratização de 1945, mais adiante participamos da dor das perdas de ilusões políticas ou aprendemos como funcionavam as confrarias partidárias — naquele contexto a que recentemente se referiu de maneira divertida João Paulo Cuenca em mesa-redonda em Nova York, ao dizer que queria ter sido um escritor comunista em meados do século XX, porque poderia viajar pelo mundo inteiro com a certeza de se enturmar com os grandes nomes da cultura local e encontrar todas as portas abertas para sua obra. As indiscrições eróticas saem pela tangente ficcional: o autor dá a todas as personagens dessas situações o nome de Maria e se concentra elegantemente nos episódios anteriores à entrada de Zélia Gattai em sua vida.

Ao mesmo tempo, nos encharcamos de Brasil. Sobretudo, dessa capacidade nossa de fundir dualidades, que Jorge Amado encarna tão bem. Simultaneamente incapaz de tolerar o menor atentado à liberdade e capaz de ser amigo de pessoas das mais variadas posições no espectro político. Ao mesmo tempo, cosmopolita e obá no candomblé (em língua iorubá, sábio da sabedoria do povo), avesso a qualquer purismo venha ele de onde vier, celebrante da mestiçagem cultural como a grande contribuição que o Brasil tem a dar ao mundo. Um sujeito de bem com a vida, a confessar candidamente: “Nenhum de meus detratores, esses tantos que não perdem vaza para dizer mal de mim, sabichões cuja missão crítica é negar qualquer valor a meus livros, nenhum deles conhece tão bem minhas limitações de escritor quanto eu próprio, delas tenho plena consciência, não permito que me iludam os ouropéis e os confetes. Sei também, de ciência certa, existir nas páginas que escrevi algo imperecível: o sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e sim, orgulho.”

É disto o que esse livro de Jorge Amado nos recorda: sua imprecisa cabotagem é uma navegação de que o país precisa. 



*Ana Maria Machado é escritora, presidente da Academia Brasileira de Letras, autora de “Romântico, sedutor e anarquista — Como e por que ler Jorge Amado hoje” (Objetiva)