No contexto dos 80 anos de Lêdo Ivo e do lançamento de sua poesia completa, reunida num só volume, apresentado há pouco na Academia Brasileira de Letras, desejo falar hoje do romance do mesmo autor traduzido na Inglaterra.

Há uma unidade orgânica - tal como a unidade normal à vida - que se reproduz na obra de ficção, mesmo quando esta voluntariamente se esfacela e se subdivide, em parcelas, contrapontos, saltos, regressos, inesperados volteios no tempo e no espaço. Chama W. P. Kerr a atenção para as "Sagas" - e ele faz questão de usar maiúscula inicial na palavra Saga - que já possuíam os elementos essenciais dessa unidade narrativa. Foi o que primeiro me causou admiração no romance de Lêdo Ivo, "Ninho de cobras". A unidade precisa, díspare, firme, diversificada, em que personagens, ruas, casas, móveis, lugares, se juntam e logo se afastam, em conflitos e súbitas pacificações que têm sua linha central na raposa que, no começo do dia, entra na cidade aparentemente tranqüila dos homens onde tudo pode acontecer, e acontece.
 
Quando o li pela primeira vez, como presidente da comissão julgadora do Prêmio Nacional Walmap, onde os originais se apresentavam com pseudônimo, não tive dúvidas de que estava diante do vencedor. Premiado o romance, foi ele considerado, pela crítica em geral, como o que de melhor apresentava a ficção brasileira na década de 70.
 
Mais tarde, abro um dia "The Times", para ler as páginas literárias, e deparo com uma crítica de Stuart Evans ao livro "Snake's nest", que vinha a ser o título do romance de Lêdo Ivo, traduzido por Kern Krapohl e editado por Peter Owen. Logo no primeiro parágrafo diz Evans:
 
"Uma raposa se perde no centro de Maceió, cidade principal de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O animal é visto, reconhecido, confundido com um cachorro, desconsiderado por muita gente até que é morto violentamente a pauladas. Torna-se, assim, a raposa, o elo deste romance bravio, soberbamente bem construído em que as vidas, preocupações, obsessões de um professor presunçoso, uma prostituta, uma bondosa freira de hospital e um anônimo escritor de cartas venenosas (que permanece sem identificação) obliqua e sutilmente se ligam ao suicídio de um Alexandre Viana, cidadão comum, razoavelmente bem respeitado."
 

 

Antes de terminar sua análise, usa o critico inglês duas expressões para completar o artigo: "Grande romance" e "O estilo é magnífico". Sabe-se que a apreciação normal dos jornais ingleses sobre romances "de fora", isto é, traduzidos, é muito reticente. Raramente os elogiam e, quando o fazem, têm cuidado especial na enumeração de possíveis defeitos do livro apreciado.
 
A tradução de Ken Krapohl manteve o ritmo da narrativa, em que Lêdo Ivo consegue dar às palavras uma fluência que realça os pontos dramáticos de cada movimento do romance. Existe uma verdade estética intimamente ligada aos símbolos. A vida de uma região, de uma comunidade, num determinado tempo, entra num livro e pode, nele, ganhar uma universalidade que o transforme em símbolo. O importante - e é o que Lêdo Ivo faz - é que o narrador reflita uma realidade impregnada de permanência. Chega ele a esse resultado no mostrar as sensações básicas do homem e no dominar a matéria de sua arte de tal maneira que possa reduzir a dureza convencional de toda forma ou fôrma.
 
A força vocabular do romance, em "Ninho de cobras", é eminentemente não discursiva. A história que ela narra surge em cenas essenciais, nada intelectualizadas, em técnica parecida com a dos antigos gregos que matavam por vingança e morriam pela necessidade inarredável da luta.
 
Fora do mundo em que vivemos e, contudo, a ele intimamente ligado, ergue o romancista um pedaço de tempo, em que pessoas se movem, em que as coisas se dispõem no espaço, em que sentimentos se jogam contra a neutralidade geral das coisas. O ficcionista faz sua gente ter medo, fome, frio, amor, alegria, vinganças. Quando Aristóteles falou de narrativa, disse: "Toda felicidade e miséria humanas tomam a forma de ação". Embora se referisse mais ao drama grego - e à poesia narrativa da época - o sentido da frase aristotélica é válido ainda hoje. A ação sinuosa, tormentosa, contudo magistralmente conciliada consigo mesma, de "Ninho de cobras", dá ao romance de Lêdo Ivo uma permanência de obra definitiva. Ele conquistou, com esse livro, a verdade mesma da ação. Ou a verdade da ficção.